Jornal
da Unicamp – Como surgiu a ideia do livro?
Eni Orlandi – O livro é resultado dos projetos de pesquisas
que tenho desenvolvido ao longo dos anos. A produção da
obra propriamente dita, porém, remonta aos cinco últimos
anos. Ela coincide com o período em que cresceu a discussão
em torno da relação da nossa língua com as outras línguas,
por conta do fenômeno da mundialização. No texto, eu trato
de várias questões, mas creio que o ponto principal é a
discussão em torno de como a língua se constitui e como
a história do conhecimento sobre essa língua também se constitui.
No meu entendimento, esses dois processos ocorrem conjuntamente.
JU – O título do seu livro registra “língua
brasileira”. Nós já não falamos mais a língua portuguesa?
Eni Orlandi – A língua falada atualmente no Brasil é muito
diferente da falada em Portugal. O que eu trabalho, no campo
teórico, é que temos diferenças suficientes tanto na materialidade
da língua quanto no âmbito discursivo que já nos permitem
falar em uma língua brasileira. Nós produzimos discursos
diferentes, com sentidos igualmente distintos. Nossos processos
de significação também são diferentes. Ou seja, nossa língua
está muito distante daquela que era ou ainda é falada em
Portugal. E veja: não se trata de patriotismo. É apenas
uma questão de reconhecer as mudanças. De situar-se diante
do quadro de relações internacionais de estados e línguas,
ou seja, de saber avaliar as questões postas pelo multilinguismo.
Penso que é chegado o momento de produzirmos teorias próprias,
e não mais usar as teorias de países colonizadores sem refletir
sobre o lugar dessas teorias na história das ciências e
na história social.
JU – As diferenças são tão profundas assim?
Eni Orlandi – São, sim. Mas essas diferenças não têm merecido
a devida atenção. Alguns autores até falam dessas distinções,
mas as classificam como “variedades”. Penso que não estamos
mais no momento de falar em variedades, pois isso não mostra
que falamos uma língua própria. Temos que falar em mudanças.
Por que admitimos mudanças entre o latim e o português que
se constituiu na Europa, mas não fazemos isso em relação
ao português e a língua falada no Brasil?
JU – A recente reforma ortográfica teria sido
uma forma de resistência a essa discussão sobre língua brasileira?
Eni Orlandi – De certa forma. Penso que precisamos rediscutir
o que é lusofonia. Temos que pensar a lusofonia como um
campo heterogêneo de línguas. É preciso tratar das diferenças
entre a língua brasileira e o português, assim como das
diferenças do português para o latim. Ambas são filiadas
ao latim, mas são distintas deste. Mas veja: não se trata
de negar a filiação da nossa língua, mas sim de destacar
as singularidades dela. Ou seja, lusofonia é um campo heterogêneo
de línguas que resultaram do processo de colonização, mas
que se “independentizaram” ao longo do tempo. A língua brasileira
é filiada ao português, que por sua vez é filiado ao latim.
Ocorre, porém, que nossa língua também traz elementos das
línguas indígenas, africanas, de imigração e de fronteira.
Temos uma língua que se individualizou à sua maneira no
processo de sua historicização.
JU – Pela sua hipótese, o português começou
a sofrer transformações desde que os primeiros colonizadores
aportaram em terras brasileiras. É isso?
Eni Orlandi – Quando os portugueses aportaram por aqui,
eles depararam não apenas com seres diferentes, mas também
com uma variedade de línguas faladas pelos índios e com
um mundo muito diferente do seu. Esses portugueses precisaram
nomear coisas que não conheciam, que não estavam na memória
linguística deles. Precisamos lembrar que, naquele momento,
nomear era também administrar. Ou seja, o que não era nomeado
poderia fugir ao controle. Assim, os primeiros colonizadores
perceberam que não poderiam manter a língua portuguesa como
ela era, pois precisavam se fazer entender. Havia, enfim,
um mundo novo a ser descoberto, a ser conquistado, a ser
nomeado. Aí já ocorrem as primeiras transformações da língua.
A materialidade do mundo começa a interferir na materialidade
da língua e vice-versa.
JU – Ou seja, a língua tem uma dimensão política
e ideológica importante.
Eni Orlandi – Exatamente. É nesse embate político, ideológico
e social que a língua vai sendo constituída. Para poder
administrar, os portugueses foram obrigados a alterar a
própria língua e a dominar a língua dos indígenas. Entretanto,
no início da colonização as autoridades portuguesas começaram
a perder o controle sobre os próprios patrícios, que passaram
a dominar as línguas indígenas localmente e a formar pequenos
feudos, nos quais davam as cartas. Para superar essa dificuldade,
a corte portuguesa enviou os jesuítas ao Brasil, com a missão
de colocar “ordem” e dar visibilidade deste país para a
coroa. O que os religiosos fizeram? Eles pegaram uma das
línguas indígenas, o tupi, e a adaptaram, mesclando com
um pouco do português e do latim. Foi criado, assim, o tupi-jesuítico,
língua geral que foi falada no Brasil todo. No entanto esse
processo se voltou contra a própria corte, pois os jesuítas
passaram a ter um enorme controle sobre a população brasileira
e sua língua. Daí sua expulsão dos religiosos e a proibição
de se escrever nessa língua. Mas nenhuma língua desaparece
sem deixar traço. Como se vê, as mudanças vêm de muito tempo.
Livro
mostra
que português
europeu
sofreu mudanças
desde a chegada
dos primeiros
colonizadores
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JU – Essas transformações não foram apontadas
anteriormente? Por que só agora está surgindo uma discussão
mais ampla sobre a existência de uma língua brasileira?
Eni Orlandi – Com a independência do Brasil, eclodiu
um movimento, promovido por gramáticos, de organização de
um conhecimento sobre a nossa língua que já mostrava essas
modificações. Mas o mais importante naquele momento não
era tanto destacar descritivamente essas diferenças, e sim
reivindicar o reconhecimento à nossa escrita, à nossa literatura,
ao conhecimento produzido por brasileiros, nossos gramáticos,
sobre a língua no Brasil, à nossa língua nacional, sinal
de nossa soberania. Assim, foram produzidas gramáticas e
dicionários com o objetivo principal de legitimar uma língua
nacional, que obviamente pudesse nos representar no plano
internacional. Ocorre que essa língua chamava-se língua
portuguesa. Assim, as obras receberam títulos como “Gramática
Portuguesa”, “Gramática da Língua Portuguesa” e “Gramática
Brasileira da Língua Portuguesa”. Mas no final do século
19 e principalmente no início do século 20 é que gramáticos
como João Ribeiro e Said Ali registraram com maior destaque
essas transformações da língua. Said Ali, por exemplo, escreveu
um livro chamado “As dificuldades da língua portuguesa”.
Essas dificuldades nada mais eram do que as diferenças entre
o português do Brasil e o de Portugal. É a partir da análise
do discurso desses especialistas que eu mostro como temos
diferenças, que já vêm sendo registradas por gramáticos,
sobretudo desde o século 19, que nos permitem falar em língua
brasileira, embora isso quase nunca seja dito.
JU – Se a questão quase não tem sido discutida
no plano intelectual ou acadêmico, imagino que em sala de
aula ela sequer é considerada. É isso mesmo?
Eni Orlandi – Um dos objetivos do livro é atingir
o ensino. Os linguistas são muito fechados nesse sentido.
Eles resistem em chamar a nossa língua de língua brasileira.
Ainda em razão da ideologia da colonização, há professor
que considera como “língua correta” o português de Portugal.
Acham que, no Brasil, a língua é mal falada. Nada disso.
Nós temos nosso padrão. Como disse anteriormente, o nosso
falar sofreu influências das línguas indígenas, africanas,
de imigração e de fronteira. Isso não é defeito, muito pelo
contrário. Não só por essas influências, mas porque é próprio
de uma língua que ela mude, que nossa língua, como qualquer
outra, também mudou. É assim que as línguas se constituem.
As línguas estabelecem relações entre si. É isso que confere
riqueza e singularidade a cada uma. Ademais, a língua conta
a sua própria história. Não podemos ficar parados na época
da colonização. Penso que o livro contribui para essas discussões.
Nesse sentido, ele é provocativo: propõe, de certo modo,
que nos livremos dessa camisa-de-força que já está posta
na maneira como nomeamos nossa língua.
Título:
Língua Brasileira e Outras
Histórias – Discurso sobre
a língua e ensino no Brasil
Autora: Eni P. Orlandi
Editora: RG
Número de páginas: 204
Preço médio: R$ 35,00 |
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