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O corpo e a ‘nobre arte’

O professor Eusébio Lôbo da Silva, autor do livro: “A capoeira se faz no corpo que faz a capoeira”(Foto: Antonio Scarpinetti)Responda rapidamente: a capoeira é dança, arte marcial, jogo, manifestação artística ou expressão cultural? Se você assinalou uma, duas ou mesmo três das opções oferecidas, é bem possível que tenha ficado a léguas de distância da definição mais adequada. “A melhor definição que eu conheço para a capoeira, cunhada por Almir das Areias, é a que a compara a uma árvore. Dependendo da necessidade ou motivação da pessoa, a árvore pode servir para lhe fornecer sombra para o descanso, frutos para a alimentação e madeira para a construção”, afirma Eusébio Lôbo da Silva, professor do Departamento de Artes Corporais do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Capoeirista há 50 anos, o docente acaba de concluir a coleção intitulada O corpo na capoeira, constituída por quatro livros. Nos volumes, o autor aborda uma série de questões relacionadas às origens, histórias e fundamentos da capoeira. “Minha preocupação foi produzir uma obra que fosse acessível a todas as pessoas, em especial aos capoeiristas”, esclarece.

De acordo com Eusébio, que no universo da capoeira é mais conhecido como Mestre Pavão, embora os livros dialoguem entre si, eles são “independentes” e podem ser lidos de forma isolada e em ordem aleatória. Ele conta que optou por dividir a obra em quatro volumes justamente para facilitar a leitura. “Assim, as pessoas podem ir diretamente os temas de seu interesse. Minha expectativa, porém, é que, ao terminar um volume, o leitor se sinta estimulado a tomar contato com os outros três, visto que trato de temas considerados polêmicos ou que estão em permanente discussão entre os capoeiristas”.

No texto, o docente do IA apresenta ao público algumas hipóteses. A mais importante delas talvez seja a que considera a capoeira como a primeira forma genuína de dança brasileira. De acordo com Eusébio, ao chegarem ao Brasil, os negros africanos, que pertenciam a variadas etnias, trouxeram diversas manifestações culturais, às quais ele denomina de “saberes corporais”. Aqui, por meio de processos de hibridação e bricolagem, eles teriam produzido uma dança original, que contou com a contribuição dos indígenas e portugueses. A partir dessa conjectura, o autor analisa também os princípios ou conceitos básicos da capoeira. No entender dele, essas questões não partem de postulados ou do que é dito pelos mestres. “Os tais princípios ou conceitos têm origem no jogo corporal. É no corpo que eles se estabelecem, e não numa ideia ou teoria formulada a priori”, sustenta.

Ainda a esse respeito, Eusébio tem uma frase lapidar. Segundo ele, “a capoeira se faz no corpo que faz a capoeira”. Dito de outro modo, não é um conjunto de suposições que definem o fenômeno, mas o fenômeno que se resolve nele mesmo. “Para chegar a essas conclusões, eu busquei um distanciamento do objeto analisado, aproveitando as ferramentas oferecidas pela dança, inclusive o estilo clássico. A essa metodologia, eu agreguei outros recursos, como a análise do discurso e a memória, sempre com o objetivo de analisar os principais movimentos da capoeira”, explica o docente do IA. Por não se encaixar numa explicação única, insiste o autor, a capoeira não pode ser observada a partir de um paradigma cartesiano, eurocêntrico e maniqueísta.

Ilustrações: Reprodução

Essa “nobre arte”, como ele a qualifica, exige outra postura. “Não dá para definir a capoeira somente como dança, luta, terapia ou expressão cultural. Ela é tudo isso e muito mais. Não existe essa dicotomia entre ser dança ou arte marcial. Quer um exemplo nesse sentindo? Alguns povos africanos vão para o protesto ou o conflito cantando, dançando e vestidos com roupas coloridas. E aí as pessoas se perguntam: eles estão indo para a guerra ou para uma festa? Eles estão indo para a guerra, mas não fazem separação entre uma coisa e outra”.

Em relação aos chamados estilos de capoeira [os mais conhecidos são o Angola e Regional], Eusébio defende em um dos volumes da coleção que mais do que pensar em características gerais, é preferível considerar as diversas capoeiras praticadas no Brasil. A rigor, destaca ele, cada pessoa tem a sua capoeira. Esta é jogada segundo o repertório de vida, interesse e aspirações do praticante. “Não temos apenas alguns estilos, mas muitas capoeiras. Cada pessoa é uma capoeira. Para entender melhor, nas artes marciais a coisa funciona mais ou menos assim: quando se é jovem, você ora bloqueia e ora ataca; quando se está na meia idade, você bloqueia e ataca conjuntamente; na idade madura, você somente a­taca. A capoeira já nasce nesse último estágio. É aí que os estilos próprios se manifestam. O estilo, no caso, é a externalização dessa prática”, detalha o docente do IA.

Quanto aos princípios éticos que regem a capoeira, Eusébio também considera que eles são determinados pelo jogo corporal. De acordo com ele, o capoeirista sabe que, estando em pé, não deve chutar quem está embaixo. “O que define isso é a relação do corpo no espaço, e não um postulado. Na capoeira, tanto faz a pessoa estar de cabeça para baixo ou numa posição que, em tese, seria mais favorável em relação ao oponente. Na capoeira, não existe esse tipo de valoração. Todas as posições têm o mesmo valor. Mais uma vez, é o corpo que define os conceitos, que não permanecem estáticos”.

Atualmente, a capoeira encontra-se difundida em várias partes do mundo. Por conta do crescente interesse que provoca nas pessoas, tem sido ensinada com cada vez mais frequência nas academias de ginástica. “Eu vejo esse fenômeno com naturalidade, e aponto isso num dos livros da coleção. Eu aprendi a jogar capoeira na rua e no fundo do quintal. A presença da capoeira nas academias é uma atualização. Isso não desmerece a nobre arte. Tenta-se, nesse espaço novo, reproduzir o que acontecia na rua ou no fundo do quintal. Não há problema nisso. O problema é quando o mestre tenta definir a capoeira a partir do seu estilo, a partir de uma visão única. Nesse caso, o problema não é da academia, mas do professor. Não existe uma capoeira única e nem a melhor capoeira. Existem capoeiras, que podem ser praticadas por pessoas de qualquer idade, peso e altura. É uma arte que serve a todos”.

O lançamento oficial da coleção O corpo na Capoeira ocorrerá em breve, em data ainda a ser definida. Conforme o professor Eusébio, a ideia é promover sessões de autógrafos em varias localidades, entre as quais Campinas e Salvador, cidade natal do autor. Quem quiser adquirir antecipadamente a obra completa ou mesmo um dos volumes pode entrar em contato com a Editora da Unicamp, pelo site, para fazer a encomenda. Os preços de capa variam de R$ 20 a R$ 22.

SERVIÇO

Título: O corpo na capoeira – 4 volumes

Autor:
Eusébio Lôbo da Silva

Editora: Editora da Unicamp

Preço de capa: entre R$ 20 e R$ 22

 


 
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