CARMO
GALLO NETTO
Em
que pese o fato de os avanços das últimas décadas permitirem
melhorias significativas no diagnóstico do câncer, alguns
dos seus tipos ainda são refratários ao tratamento. A progressiva
disponibilidade de ferramentas biológicas, químicas e físicas
tem aberto novas possibilidades para seu melhor entendimento,
para seu diagnóstico mais preciso e para a avaliação molecular
da eficácia de seu tratamento. Particularmente, a detecção
e identificação de novos marcadores moleculares constituem
elementos de suma importância para o diagnóstico, acompanhamento
e predição do prognóstico. Além disso, a determinação da
estrutura desses marcadores protéicos torna possível o desenvolvimento
de drogas que atuem sobre eles de maneira anti-tumorigênica.
Em pesquisa desenvolvida no Centro de Biologia Molecular
Estrutural (Cebime) e no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron
(LNLS), com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp), o biólogo Daniel Maragno
Trindade fez estudos estruturais e funcionais inéditos da
proteína stanniocalcina-1 (STC1), um novo marcador de microambiente
de leucemia linfóide aguda infantil e realizou análises
estruturais e funcionais dessa proteína que vem sendo cada
vez mais associada ao câncer. Algumas proteínas podem ser
usadas para prognóstico do câncer, pois, se produzidas em
quantidades significativamente maiores que o normal, podem
ser utilizadas como marcador molecular tumoral.
Orientado pelo professor Jörg Kobarg, o trabalho deu origem
à tese apresentada ao Instituto de Biologia (IB) da Unicamp
para a obtenção de titulo de doutor em biologia funcional
e molecular. A pesquisa, que partiu de alguns resultados
prévios obtidos pelo seu co-orientador, professor José Andrés
Yunes, do Centro Infantil Boldrini, levou ao primeiro estudo
estrutural e funcional da STC1 que, como já se sabia, possui
forte expressão, ou seja, se revela em maior abundância
em casos de leucemia e quadros de isquemia e cardiovasculares
quando comparada com as condições encontradas em pacientes
sadios.
A detecção e identificação de novos marcadores moleculares
são de suma importância para o acompanhamento e predição
do diagnóstico do câncer, além de tornar possível o
desenvolvimento de novas drogas que atuem sobre eles.
Trindade diz que os estudos existentes mostram que a STC1
aparece em maior quantidade nos contextos leucêmicos, mas
não se sabe o papel exercido por ela. O objetivo do trabalho
a que se propôs foi o de verificar a importância dessa
proteína na manifestação do câncer, pois os indícios
são de que ela tenha forte implicação no exercício desse
papel.
O pesquisador diz que o trabalho teve como escopos, primeiro,
validar estudos prévios do professor Yunes, mostrando que
a alteração de expressão é verdadeira e, depois, entre as
proteínas estudadas, selecionar uma de que não se tinha
informação estrutural porque, com base na estrutural tridimensional,
existe a possibilidade de se prever e em seguida determinar
a sua função. O pesquisador explica que as proteínas podem
ser entendidas como polímeros de aminoácidos, dos quais
se originam várias formas estruturais que definem seu comportamento
e função no organismo.
Em vista da falta de informações funcionais sobre a STC1,
o pesquisador se propôs a encontrar algumas proteínas que
interagem com ela e a realizar sua caracterização estrutural.
As proteínas encontradas se apresentam em vários compartimentos
celulares nos quais a STC1 já se sabia presente.
Os estudos, realizados em colaboração com o grupo da professora
Íris Concepcion Linares de Torriani (Unicamp/LNLS), forneceram
informações sobre a forma geral da proteína em solução,
até então desconhecida. Com base na estrutura de uma proteína,
explica ele, é possível inferir sobre sua função, a qual
é posteriormente comprovada através de outros ensaios.
De posse de informações sobre como uma molécula se comporta
ao exercer determinadas funções é possível, por exemplo,
desenhar uma droga que atue sobre ela. O professor Kobarg
esclarece que “ainda não é possível dizer o que a STC1 faz,
mas já temos indícios de que ela tenha um papel importante
no câncer; contudo, ainda não temos condições de saber de
que modo ela efetivamente atua”. Trindade lembra que um
desses indícios é a ocorrência do aumento da sua expressão
em situações de angiogênese (promoção da vascularização
da região afetada pelo tumor e que permite seu crescimento).
Para desenhar a droga que poderá atuar sobre a STC1 é necessário
detalhar a sua estrutura tridimencional, chegando ao nível
de detalhamento da distribuição atômica da molécula. Deste
modo, na próxima etapa da análise, o pesquisador se proporá
ao detalhamento atômico, porque o trabalho até agora desenvolvido
permitiu chegar a uma ideia geral da forma da molécula caracterizando
seu contorno.
Faz parte ainda do projeto do grupo do professor Kobarg
descobrir e determinar a função de outras proteínas com
as quais a STC1 interage. Este é o caminho, diz o professor,
embora entenda que os resultados até aqui realizados sejam
preliminares, pois a descoberta da STC1 é relativamente
recente e existem no mundo poucos grupos que trabalham com
ela, sendo dois deles no Brasil. Apesar da implicação da
STC1 em muitos processos celulares, existe uma enorme lacuna
no que diz respeito a estudos aprofundados de suas propriedades
moleculares e estrutura tridimensional.
Os pesquisadores esclarecem que na pesquisa básica procura-se
fornecer o conhecimento de como um sistema funciona, a partir
do qual é possível alterar ou corrigir o que se julgar interessante
ou necessário, possibilitando intervenções diversas.
O desenvolvimento do câncer
O número de células em um organismo adulto é mais ou menos
constante e se mantém estável devido a processos de divisão
e morte celular. A vida média dos diferentes tipos de células
do corpo humano varia de alguns dias (como no caso de células
do sangue) até anos (como as células do sistema nervoso
central). O câncer é causado por defeitos no material genético
que afetam a expressão (a quantidade) ou o funcionamento
de genes envolvidos na regularização do crescimento e diferenciação
celular.
As células cancerígenas apresentam três diferenças em relação
às normais: não têm limitação no crescimento e divisão celular,
não se diferenciam de acordo com os padrões de normalidade
e não se comportam segundo um programa de morte celular.
Certas células que acumulam mutações podem ter o crescimento
acelerado e fora de controle. De outra forma, os genes supressores
de tumor podem causar a perda das funções celulares e contribuir
para o progressivo desenvolvimento tumoral.
Quando comparadas com as células normais, as cancerosas
apresentam genes ou proteínas com expressão ou função alteradas,
constituindo o que se denomina marcadores moleculares. Estes
marcadores são detectados por biópsia seguida de análise
do tecido tumoral ou localizados através de exames de fluidos
biológicos como, por exemplo, no sangue.
Ademais, a seleção de marcadores específicos para um dado
tipo de câncer pode permitir a classificação de pacientes
em diferentes grupos de risco, de acordo com o grau de progressão
da doença, permitindo a adequação, antes do início do tratamento,
do nível de agressividade do regime terapêutico a ser adotado.
A leucemia
Leucemia é um termo que abrange um amplo espectro de doenças
que se incluem entre as chamadas neoplasias hematológicas.
Oriundo do grego leukos, branco, e aima, sangue, o termo
é usado para nomear o câncer do sangue ou da medula óssea,
que se caracterizam por uma proliferação anormal de células
sanguíneas, geralmente leucócitos, que são as células brancas
do sangue.
As stanniocalcinas constituem uma pequena família de hormônios
encontrados em todos os vertebrados. A stanniocalcina-1
(STC1), o primeiro membro identificado, foi originalmente
descoberta em peixes e posteriormente em humanos, nos quais,
ao que parece, exerce papel na carcinogênese e na angiogênese.
Do mesmo modo que em tumores sólidos, as células leucêmicas
apresentam dependência da vascularização, tornando a angiogênese
essencial para a progressão do câncer.