LUIZ
SUGIMOTO
O
que o mais perfeito e valioso dos diamantes tem em comum
com o açúcar que usamos no café? Ambos possuem estruturas
cristalinas, assim como todos os materiais sólidos que nos
cercam, incluindo os alimentos que comemos. Pesquisas realizadas
no Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp e
no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), a pedido
de pesquisadores da Faculdade de Engenharia de Alimentos
(FEA) e da Faculdade de Engenharia Química (FEQ), investigaram
as fases cristalinas das manteigas de cacau e de cupuaçu,
demonstrando cientificamente como suas moléculas se comportam
a partir do derretimento até atingir o estado sólido e saboroso
de um chocolate.
A professora Iris Torriani, do Departamento de Física da
Matéria Condensada do IFGW, explica que a cristalografia,
uma ciência com quase 200 anos de desenvolvimento, é a ferramenta
fundamental para desvendar estruturas moleculares. “A cristalografia
ganhou enorme impulso com a descoberta dos raios-X em 1895.
A partir de 1912, os aparelhos que inicialmente tinham aplicações
médicas passaram a ser usados pela Física no estudo de estruturas
cristalinas recorrendo ao fenômeno de difração. Esta área
avançou a ponto de reunir o maior número de prêmios Nobel
dentro das ciências físicas, químicas e biológicas, visto
que todas focam a determinação de estruturas moleculares”.
Como estudante de pós-graduação em física, a pesquisadora
optou pela área de cristalografia de raios-X por achar maravilhoso
poder descrever a matéria no nível atômico. “Lidava ainda
com moléculas pequenas, mas quando passei a estudar moléculas
orgânicas, com estruturas maiores, a exemplo das que formam
materiais vivos, verifiquei que esse tipo de pesquisa pode
se tornar bastante complicada e desafiadora. É algo fascinante
e inspirador”.
De acordo com a docente da Unicamp, assim como o diamante,
a rolha de cortiça, o enxofre do vapor que sai do vulcão
ou os cristais de gelo, os alimentos – a manteiga em cima
do pão, o azeite, o chocolate – são formados por moléculas
que se organizam como se fossem cristais. “O que nos motivou
a fazer esse trabalho foi uma solicitação de pesquisadores
da FEA e da FEQ para que realizássemos experiências de raios-X
em função da temperatura para caracterizar as fases cristalinas
da gordura de cupuaçu”.
Iris Torriani observa que o fato de o cupuaçu ser um fruto
similar ao cacau, por conter as mesmas moléculas orgânicas
(triacilglicerídios), torna grandes as possibilidades de
que se comporte da mesma maneira. Para explicar a similaridade
dos dois produtos vegetais é necessário estudar a estrutura
das várias fases cristalinas que pode adotar a gordura de
cupuaçu, utilizando-se a difração de raios-X.
Como acrescenta a professora, o estudo das transições de
fase nas manteigas de cacau e de cupuaçu, de forma independente
e seguindo o mesmo protocolo utilizado para se chegar ao
material sólido destinado a produzir doces, chocolates e
outros produtos, poderia dar base científica a esta semelhança.
“Uma vez derretidos, esses materiais têm todas as suas moléculas
desordenadas. Elas ganharão uma ou outra conformação, dependendo
do protocolo de resfriamento e da estrutura cristalina da
fase polimórfica formada”.
Instrumentação
As experiências foram realizadas nas linhas de espalhamento
de raios-X a baixo ângulo (SAXS) do Laboratório Síncrotron,
com instrumentação especial que permite registro simultâneo
das mudanças estruturais e calorimétricas (DSC) dos materiais
in situ. O doutorando Júlio César da Silva, que começou
a desenvolver o projeto ainda na graduação e concluiu as
experiências durante o mestrado, sob orientação de Iris
Torriani, explica que, em relação à manteiga de cacau, a
temperagem influencia na forma final de organização das
suas moléculas cristalinas. “Dependendo da temperatura em
que a manteiga é solidificada e do tempo em que permanece
nesta temperatura, ela ganha textura e sabores diferentes”.
Segundo
o doutorando, os experimentos permitiram entender, inclusive,
porque o chocolate fica esbranquiçado e tem o sabor alterado
quando colocado na geladeira ou guardado por muito tempo.
“Se a manteiga de cacau é usada como matéria-prima para
sorvete ou creme hidratante, precisa ter uma consistência
pastosa. Já no chocolate em barra, as moléculas da gordura
devem estar organizadas não só para que fiquem sólidas,
mas para que o produto derreta na boca, facilitando sua
digestão”.
Júlio César da Silva informa que no caso do cacau, os gráficos
da identificação das fases cristalinas por difração de raios-X
demonstram a organização molecular que proporciona consistência,
sabor e cheiro à manteiga de cacau, e pautam atualmente
a indústria do chocolate e de outros derivados. “Há chocolates
no mercado com apenas 60% de manteiga de cacau e complementados
com outro tipo de gordura, o que compromete a qualidade.
O interesse no cupuaçu para substituir ou complementar o
cacau não se deve somente às possíveis aplicações na indústria
de alimentos, mas principalmente ao fato de a planta ser
menos sujeita a pragas”.
A professora Iris Torriani, que é também pesquisadora
do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, assina um artigo
sobre este estudo já submetido a publicação, juntamente
com Júlio César da Silva e Tomás Plivelic (LNLS), Maria
Herrera (Faculdade de Ciências Exatas e Naturais da Universidade
de Buenos Aires), Nirse Ruscheinsky e Theo Kieckbusch (Faculdade
de Engenharia Química/Unicamp) e Valdecir Luccas (Instituto
de Tecnologia de Alimentos – ITAL).