CLAUDIO SALVADORI DEDECCA
Nos
últimos quase 40 anos, o pensamento conservador conquistou
hegemonia política e se moveu recorrentemente contra o
gasto público na área social. Políticas visando redução
ou contenção dos gastos com os programas sociais foram
regra geral adotadas. O resultado observado, tanto nos países
desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento, tem sido a
deterioração contínua dos serviços públicos, bem como
um aumento progressivo da desigualdade social. Tal processo
foi reconhecido recentemente tanto pela ONU como pela OCDE.
Argumentos econômicos e sociais foram brandidos pelo pensamento
conservador e pelas organizações de interesse do grande
capital para justificar o ataque contra a política social.
A preferência pelo não trabalho, o desestímulo ao investimento
e o desinteresse pela formação profissional apareceram em
sua linha de frente. A defesa da prevalência da regulação
de natureza privada foi veiculada aos quatro ventos como
de grande virtuosidade e contraposta à regulação de natureza
pública, acusada de paquidérmica.
A consequência da hegemonia conservadora foi a constituição
de uma economia- cassino, assentada em um movimento de deterioração
recorrente do emprego e dos salários da grande maioria da
população ativa, que permitiu ganhos de renda mais que extravagantes
para poucos. Neste processo se desvalorizou a produção e
o trabalho manual, sob o argumento que as atividades e ocupações
da sociedade da informação emergente caracterizariam o futuro
do capitalismo no século XXI. A vida seria guiada pelas
efemérides de um mundo intangível, apesar de ficar sem resposta
a indagação sobre quem consertaria nossos carros, quem faria
a manutenção de nossas casas ou quem repararia a rede elétrica
em dia de chuva pesada.
Na segundo semestre de 2008, a economia-cassino se mostrou
um verdadeiro castelo de cartas ou um gigante de pés de
barro. Sua virtuosidade se transformou da noite para o dia
em um desastre sem precedente. Os governos dos países desenvolvidos
injetaram dinheiro no setor privado em volumes jamais vistos.
Reduziram a taxa de juros reais para o campo negativo. Promoveram
aumentos explosivos do déficit e da dívida pública. Fizeram
alguma ameaça de controle da economia-cassino, mas foram
de uma generosidade incomensurável com sua farra, penalizando
pontualmente as empresas e seus dirigentes naquilo que era
inevitável. A taxação dos ganhos obtidos na jogatina financeira
ou a adoção de medidas para pôr fim à promiscuidade generalizada
que caracteriza os conselhos de administração das grandes
empresas, que permitiu a elas venderem à sociedade situações
inexistentes de rentabilidade, não foram além da esfera
do discurso político de dia-a-dia.
Passado um ano, existem sinais razoavelmente claros que
o pior da crise passou e que a recuperação econômica, mesmo
que lenta e demorada, pode estar a caminho. A injeção de
recursos públicos permitiu, de um lado, fazer algum saneamento
rápido das empresas e a volta de alguma rentabilidade e,
por outro, estimular a demanda e a recuperação do nível
de produção. As empresas e, em especial, os grandes bancos
já apresentaram algum lucro ou prejuízo reduzido no segundo
trimestre de 2009, indicando os resultados positivos da
política pública.
É óbvio que a recuperação é bem-vinda, pois ela permite
ao menos conter a deterioração dos níveis de produção, emprego
e renda. E é lógico que cabe aos governos envidarem esforços
em favor da sua continuidade. Contudo, duas questões devem
ser olhadas com muita atenção.
A primeira refere-se a muito provável socialização dos
custos da farra financeira para toda a população. Uma parte
dela já se realizou através da elevação do desemprego e
da queda da renda. Entretanto, o processo mais pesado pode
estar por vir. O aumento da dívida pública, e de seu custo
futuro devido à provável elevação da taxa de juros nos próximos
anos, demandará dos Estados um esforço fiscal cavalar. Como
a maioria dos países já possui uma carga tributária elevada,
haverá a pressão para que tal esforço, mesmo com o aumento
da receita propiciado pelo crescimento, se realize através
da austeridade do gasto. Portanto, corre-se o risco de uma
nova fase de deterioração da política social. Mantido o
quadro atual de organização dos interesses e da política
econômica, é muito provável que teremos mais do mesmo em
termos de regulação da economia.
A outra se refere à ausência de sinais de reconstrução
efetiva da regulação pública e, em consequência, de controle
daquela de natureza privada. Apesar das manifestações de
boa vontade e de consciência social feitas pelos governantes
de impedirem a reemergência da economia-cassino, somente
medidas pontuais e limitadas foram adotadas até o presente
momento. O pensamento conservador e o grande capital, que
fizeram não ser com eles a intervenção na economia que os
governos promoveram nestes últimos 12 meses e nem reclamaram
do derrame de dinheiro público generosamente ofertado às
empresas, já começam a argumentar sobre a virtuosidade do
mercado para viabilizar uma recuperação econômica mais rápida.
Enquanto isso, é claramente ausente a existência de interesses
coletivos críticos e com força política capazes de defender
uma regulação pública que inviabilize a economia-cassino
e que reconstitua a política social de modo a recompor um
contexto real de alguma justiça social.
Assim, tem-se observado a recomposição da economia-cassino
e da regulação privada. De um lado, o movimento rápido
de recuperação das bolsas de valores e dos preços das
commodities observado nos últimos meses é um sinal
candente da sua reativação. Não existe, até o momento,
indício de recomposição da produção e dos lucros das
empresas que possa justificar tal movimento, mesmo que se
considere que os preços dos ativos e dos insumos tenham
caído muito no momento mais agudo da crise. Por outro,
nas últimas semanas pipocam notícias como a mencionada
no início deste artigo, amplamente veiculadas nos grandes
meios de comunicação, que a política de ganhos extravagantes
nas grandes empresas continua ativa. Segundo matérias recentes
do The New York Times, dois grandes bancos americanos
que receberam um belo maná de recursos públicos, BofA
e Citicorp, já informaram que manterão a política de
grandes ganhos para seus dirigentes e traders, sem qualquer
manifestação de descontentamento nem mesmo do governo
americano.
A facilidade com que reemerge a economia-cassino expressa
a fragilidade presente do interesse mais progressista em
nossas sociedades, cuja força depende menos do poder do
dinheiro e principalmente da existência de organizações
coletivas. É profunda a fragmentação e enfraquecimento político
destas organizações, ao mesmo tempo em que parte delas participa
de instâncias da economia-cassino através de seus fundos
de previdência privada, via presença de representantes em
conselhos de administração das grandes empresas.
Na grande parte dos países desenvolvidos, a taxa de sindicalização
do setor privado não supera 10% da força de trabalho. Na
última eleição européia, mais de 60% dos jovens não compareceram
à urna. Como apontou estudo da American Polical Science
Association, o enfraquecimento das organizações coletivas
permitiu que aquelas de interesse específico (lobbies) dominassem
a política em todos os níveis. São inclusive nestas instituições
que os partidos ancoram seu financiamento. Sendo que são
elas que propagam e financiam a defesa da virtuosidade da
regulação privada que produziu a economia-cassino.
Em suma, existem sinais razoáveis que a recuperação da
economia tenha de fato começado, porém outros também indicam
que a economia-cassino inicia a retomada de sua plena forma.
Assim, é reduzida a probabilidade de uma nova fase de crescimento
com menor injustiça social. Esta esperança deverá esperar
por uma outra crise, ou melhor, parece que ficará para uma
próxima vez.
Claudio
Salvadori Dedecca
é professor titular do
Instituto de Economia (IE)
da Unicamp. Atualmente
é pesquisador visitante da
Université de Paris XIII
e do Centre d’Études
de l’Emploi, França.
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