Jornal
da Unicamp – Quais os objetivos da segunda edição da
Clacmesa em relação à primeira, realizada em 2007, na
Colômbia?
Ana Segall – Na primeira conferência,
o objetivo era desenvolver uma escala de medida de segurança
alimentar que tivesse validade para a América Latina. De
lá para cá, muitos países do continente fizeram a validação
de uma escala própria e adequada. Também foi desenvolvida
a Elcsa [Escala Latino-Americana e Caribenha para Medida
da Segurança Alimentar], que foi baseada nas adaptações
brasileira e colombiana da HHFSSM [Household Food Security
Scale Measurement-EUA].
A ideia de uma escala para a América Latina era porque
os pesquisadores envolvidos com o tema tinham a convicção
da necessidade de um instrumento eficaz para medir a segurança
alimentar. Naquele instante, vários países do continente
começavam a desenvolver programas de combate à fome, mais
ou menos inspirados na experiência brasileira do Fome Zero.
Daí a necessidade de ter um instrumento para identificar
as populações mais vulneráveis à fome e acompanhar o
impacto dessas políticas públicas. A segunda conferência
vai trabalhar com a necessidade de aprimorar essa escala,
mas também vamos avançar na discussão e análise do impacto
da insegurança alimentar nas condições de vida e saúde
das pessoas e ver como podemos medir isso.
JU – De que ordem são esses impactos?
Ana Segall – Nós pretendemos desenvolver
novas investigações. A conferência terá uma parte que
trabalhará essa questão. Nós já temos pesquisas que
indicam que a insegurança alimentar interfere nas situações
de violência doméstica, por exemplo. Também pode ter
reflexo no comportamento antissocial na escola. As crianças
cujas famílias têm pouco acesso ao alimento tendem a ser
mais agressivas no ambiente escolar.
Outros estudos demonstram, ainda, a associação entre
insegurança alimentar e problemas psicológicos, como depressão
e ansiedade. Os estudos mais frequentes sobre o impacto
do baixo acesso aos alimentos estão ligados à questão
nutricional. Alguns deles demonstraram a ocorrência de
sobrepeso e obesidade simultaneamente à insegurança alimentar.
São abordagens muito importantes, sobretudo no contexto
da redução da desnutrição e aumento da obesidade, fenômeno
que está ocorrendo em praticamente todos os países em
via de desenvolvimento.
São pesquisas que abrem novas oportunidades de políticas
públicas. Além disso, outro aspecto que nos interessa
estudar, e que tem sido mais frequente na África, é o
impacto das condições de saúde na insegurança alimentar.
Lá, a epidemia da Aids concorre para a insegurança alimentar,
tanto em razão do adoecimento que reduz a capacidade para
o trabalho, quanto por resultar em maior custo para a família
e a sociedade, entre outros aspectos.
Resumindo, esta segunda conferência tem por meta avançar
nas possibilidades de compreender melhor, nos dias de hoje,
a insegurança alimentar e fome, seus determinantes, sua
freqüência nas diversas populações e as consequências
para os indivíduos, as famílias e a sociedade.
JU – Ou seja, a discussão já não se concentra
mais no aspecto da disponibilidade de alimentos...
Ana Segall – Quando se começou a falar
em segurança alimentar, na época da 2º Guerra Mundial,
os países tinham uma grande preocupação quanto à autonomia
para assegurar a disponibilidade de alimentos às suas populações.
Ou seja, uma nação não queria depender da outra no caso
de novos conflitos. Então, quando o conceito começou a
ser formulado, a preocupação maior era essa. Tanto é
assim que após ser criada, a FAO [Organização das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentação] estabeleceu um
importante indicador de segurança alimentar, que era a
disponibilidade calórica per capita de cada país. Entretanto,
essa disponibilidade não tem nada a ver com acessos das
pessoas aos alimentos necessários à sua sobrevivência
e bem-estar. Pode haver grande disponibilidade de alimentos
no país, mas esse alimento pode estar concentrado numa
faixa pequena da população. Ou seja, a média per capita
pode ser de três mil calorias diárias, mas há quem consuma
5 mil e há quem consuma apenas 1.000 ou menos.
A questão do acesso passou a ser discutida mais fortemente
a partir do trabalho do médico brasileiro Josué de Castro,
na FAO. Ele dizia que a fome não era algo natural, que
era produzida pelos homens, muito em razão das desigualdades
sociais. Na sequência, também cresceu a discussão em
torno da qualidade. Ou seja, não basta ter acesso a determinada
quantidade de comida, se esta não tiver qualidade. Com
isso, avançou também a ideia de que os alimentos teriam
que ser obtidos de forma social e ambientalmente aceitável.
Trata-se de um progresso ao longo do tempo.
Mais recentemente, em 2006, o Brasil acrescentou mais um
ponto importante a essa relação, que é reconhecer a segurança
alimentar como um direito básico do ser humano. A definição
de segurança alimentar, segundo essa proposta, é o direito
de todos ao acesso a alimentos em quantidade e qualidade
adequadas, sem comprometer outras necessidades básicas,
obtidos de forma sustentável e socialmente aceitável.
Há uma matéria tramitando no Congresso Nacional que propõe
a inclusão na Constituição de um artigo que defina a
alimentação como um direito básico do ser humano. Com
isso, o Estado passaria a ser obrigado a atender as necessidades
da população quanto ao acesso aos alimentos.
JU – Como é feita atualmente a identificação
das famílias em situação de insegurança alimentar ou
fome? Além da renda, que fatores são levados em consideração?
Ana Segall – Vários fatores serão
levados em conta. A renda é um deles. Ocorre que esse dado
coloca um ponto de corte. Informa que abaixo de determinado
valor as pessoas estão em situação de insegurança alimentar
ou fome. Mas não faz nenhuma outra distinção. As escalas
aprimoram esse diagnóstico, porque informam com maior precisão
quais pessoas em tais faixas de rendimentos e com tais características
estão mais sujeitas à insegurança alimentar ou à fome.
Assim, famílias com crianças têm mais insegurança alimentar
do que as sem crianças, na mesma faixa de renda. Idosos
que moram sozinhos têm mais insegurança do que aqueles
que vivem com familiares, na mesma faixa de renda. Uma família
cujo chefe é analfabeto também está mais sujeita à insegurança
alimentar do que aquela cujo chefe tem algum nível de instrução.
Ou seja, a renda é um marcador importante, mas não é
o único. A escala brasileira identifica quem está com
restrição e contempla dados como posse de bens duráveis,
educação do chefe da família, condições de saneamento,
número de pessoas na casa etc.
JU – A partir da adoção de programas como
Fome Zero e Bolsa Família e da criação da escala brasileira,
que conclusões podem ser tiradas. O país tem avançado
em direção à meta de garantir a segurança alimentar
para a camada mais carente da população?
Ana
Segall – O primeiro diagnóstico realizado no
Brasil com o uso da escala foi em 2004, por ocasião da
PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, aplicada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)].
Depois disso, não tivemos outra PNAD. O ideal é medirmos
da mesma forma, para termos um parâmetro de comparação.
Em setembro começa a pesquisa de campo da PNAD 2009, que
também aplicará a escala. Ou seja, a partir do final de
2010 nós teremos a melhor condição para comparação.
Aí poderemos identificar diferenças mais facilmente.
Mas a escala também foi incluída na Pesquisa Nacional
de Demografia e Saúde, a PNDS de 2006, financiada pelo
Ministério da Saúde-Decit e coordenada pelo Cebrap [Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento]. Ocorre que a PNDS
analisa apenas domicílios em que existem mulheres em idade
fértil, de 15 a 49 anos. O que estamos fazendo agora é
comparando os resultados da PNAD e PNDS, mas tendo como
referência somente os domicílios com mulheres em idade
fértil, que é para garantirmos a comparabilidade.
Embora o período de tempo seja pequeno, de apenas dois
anos, os dados iniciais indicam uma redução importante
da insegurança alimentar grave. Diminuiu a proporção
de pessoas com insegurança alimentar grave e moderada e
aumentou a proporção com insegurança leve. Ou seja, houve
uma migração entre as faixas. Houve melhora para as populações
de menor rendimento, mas a situação geral de insegurança
alimentar ainda preocupa. O país precisa avançar mais,
para conseguir garantir acesso adequado aos alimentos tanto
em quantidade quanto em qualidade. Por enquanto, esses são
os únicos estudos que nos possibilitariam analisar e, de
certa forma, monitorar a insegurança alimentar no nosso
país.
JU – Ou seja, a situação apresenta melhora,
mas não no ritmo e na dimensão desejáveis. O que está
faltando para que a população em geral alcance a condição
de segurança alimentar?
Ana Segall – Essa é uma questão importantíssima.
As políticas públicas de segurança alimentar estão fortemente
baseadas no mecanismo da transferência de renda. No bojo
dessas políticas houve também um importante apoio à agricultura
família e à assistência aos idosos. Paralelamente, ocorreu
o aumento real do salário mínimo. Tudo isso gerou um impacto
positivo em relação à redução da insegurança alimentar,
principalmente na sua forma mais grave. Mas as políticas
multissetoriais que deveriam acompanhar essas iniciativas
ainda não tiveram eficácia. O Bolsa Família exige que
o usuário do programa cumpra determinadas condicionalidades:
a mulher, por exemplo, tem de fazer pré-natal e amamentar
seus filhos.
O Ministério de Desenvolvimento Social tem a política
de apoiar os municípios que conseguem comprovar que estão
assistindo as pessoas. Entretanto, ao analisarmos os serviços,
percebemos que eles não estão dando qualquer assistência
adicional ou especial às pessoas mais vulneráveis. Quando
olhamos os beneficiários e os não-beneficiários dos programas
de transferência de renda, tendo em conta a mesma faixa
de renda, concluímos que os segundos estão sempre em melhores
condições de segurança alimentar do que os primeiros.
Isso não acontece porque os programas não cumprem seus
objetivos. Eles cumprem. Mas certamente essas pessoas apresentam
outras condições desfavoráveis, que implicam maior vulnerabilidade
e que precisam ser atacados com políticas e ações efetivas.
Ou seja, ainda precisamos de políticas públicas mais integradas
e integrais. Ao identificar um grupo populacional que tem
dificuldade de acesso a alimentos, é preciso dispor de
um leque de ações para poder tirar essas pessoas dessa
situação.
A transferência de renda é muito importante, mas não
tem sido suficiente para resolver integramente o problema.
Uma questão fundamental ainda a ser atacada é a geração
de oportunidades, especialmente para as pessoas cujas características
sociais as afastam das possibilidades do trabalho formal
e da renda suficiente e permanente. Estudos apontam que
a partir de um salário mínimo per capita, as famílias
não sofrem mais de insegurança alimentar grave, mesmo
apresentando outras condições de vulnerabilidade.
JU – A segunda Clacmesa contará com a participação
de representantes do poder público, para que eles tomem
conhecimento dessas e de outras discussões?
Ana Segall – Nós convidamos os prefeitos
da Região Metropolitana de Campinas e representantes do
Ministério de Desenvolvimento Social, do Consea [Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] e de outros
órgãos e instituições públicas. Nosso objetivo é juntar
o meio acadêmico e os gestores de políticas públicas.
O esforço de pesquisa que estamos fazendo é justamente
para dar suporte às políticas públicas, para que elas
sejam as mais eficazes possíveis.
JU – A conferência tem a proposta prévia
de firmar um documento com propostas aos gestores públicos?
Ana Segall – Não temos essa preocupação prévia. Mas
teremos uma sessão final de recomendações. Pode ser que
isso acabe gerando um documento, uma carta, mas essa não
foi uma ideia a priori. Nosso intuito é colocar as informações
de forma mais clara e chamar a atenção das autoridades
para as questões que estaremos debatendo e que julgamos
de grande relevância.
JU – O grupo da Unicamp coordenado pela senhora
teve e continua tendo um papel importante nas discussões
sobre segurança alimentar, tanto em nível nacional quanto
internacional. Que temas esses pesquisadores estão trabalhando
no momento?
Ana
Segall – O esforço que estamos fazendo é de
integrar grupos dentro da Unicamp. A conferência é produto
da ação de pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas,
mais especificamente do Departamento de Medicina Preventiva
e Social, do Instituto de Economia e do NEPA [Núcleo de
Estudos e Pesquisa em Alimentação]. Na Unicamp tem vários
grupos e pesquisadores que abordam, direta ou indiretamente,
a questão da insegurança alimentar e da fome.
Temos parceria desde 2003 com pesquisadores da Feagri [Faculdade
de Engenharia Agrícola]. Além disso, estamos desenvolvendo
no momento um estudo que conta com a participação de duas
antropólogas, uma pesquisadora do Nepo [Núcleo de Estudos
de População] e outra da Faculdade de Educação Física.
A proposta é desenvolver um instrumento para medir a segurança
alimentar das populações indígenas. As pesquisas já
estão em fase de finalização. Queremos, com isso, desenvolver
um modelo capaz de captar a percepção particular das populações
indígenas do Brasil. Na penúltima edição da SBPC, realizada
na Unicamp no ano passado, por exemplo, indígenas de Boracéia
organizaram oficinas de alimentação, por meio das quais
o cacique e outros integrantes da aldeia fizeram demonstração
de alimentos tradicionais e seus conceitos de alimentação
foram expostos.
Dentre todos os vulneráveis à fome no Brasil, os índios
são os mais vulneráveis. É um trabalho complexo, pois
o acesso às informações é muito difícil. Estamos trabalhando
com os guarani que vivem no litoral Norte e Sul de São
Paulo. Nossa experiência com eles mostra que existem conceitos
semelhantes aos da população em geral, mas, por outro
lado, existem particularidades que precisam ser incorporadas.
Para eles, por exemplo, o conceito de alimentação suficiente
é sempre coletivo. O alimento é apenas suficiente quando
pode ser dividido com os demais. Se tem para um e não para
os outros, eles se julgam em situação de carência alimentar.
Outra condição importante é a questão da autonomia.
Para eles, a alimentação tem um elemento sagrado, assumindo
uma dimensão cosmológica. Logo, a produção dos alimentos
com seus próprios meios é muito importante. Esperamos
que, validado o instrumento, nós possamos estender a pesquisa
para o âmbito nacional, a partir do ano que vem. Ou seja,
as oportunidades de contribuição da Unicamp são muitas
e a intenção é constituir um grupo com pesquisadores
das várias unidades afins, porque o problema da insegurança
alimentar e da fome é certamente de natureza multidimensional
e, portanto, interdisciplinar.
JU – No ano que vem nós teremos eleições
para a escolha do novo presidente da República. No seu
entender, a questão da insegurança alimentar deve ser
um tema central dos debates?
Ana Segall – Sem dúvida. Esse é um
assunto que exige estar na pauta de qualquer candidato.
E nós temos a obrigação de fazer com que o tema se mantenha
vivo. Precisamos que os governantes se comprometam em adotar
políticas públicas de Estado e não apenas de governo.
As ações precisam ser coordenadas e ter continuidade,
independente de quem esteja no poder.
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