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Conferência internacional investiga
impactos da insegurança alimentar
Evento vai reunir cientistas e gestores públicos de 2 a 4 de setembro

A Unicamp sediará de 2 a 4 de setembro, no auditório da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), a II Conferência Latino-Americana e Caribenha de Medidas de Segurança Alimentar (Clacmesa). O evento reunirá cientistas e gestores públicos para discutir questões ligadas à insegurança alimentar, flagelo que ainda atinge uma parcela significativa das populações dos países que constituem o bloco. De acordo com a presidente da II Clacmesa, a médica Ana Maria Segall Corrêa, docente da FCM, os principais objetivos da conferência são aprimorar a escala que mede o grau de segurança alimentar dos diversos grupos populacionais e analisar o impacto dessa mesma segurança alimentar nas condições de vida e saúde das pessoas.

A especialista considera que, especificamente no Brasil, as políticas públicas voltadas ao enfrentamento do problema geraram resultados positivos em relação à redução do número de pessoas que sofrem de insegurança alimentar grave, mas não foram suficientes para mudar totalmente o quadro. “Uma questão fundamental ainda a ser atacada é a geração de novas oportunidades de trabalho e da renda”, diz. Na entrevista que segue, Ana Maria Segall Corrêa fala, entre outros temas, do esforço dos pesquisadores para fornecer dados confiáveis que possam auxiliar na definição de políticas públicas de combate à fome.


A médica Ana Maria Segall Corrêa, docente da FCM e presidente da II Clacmesa: “Uma questão fundamental ainda a ser atacada é a geração de novas oportunidades de trabalho e da renda” (Foto: Antoninho Perri)Jornal da Unicamp – Quais os objetivos da segunda edição da Clacmesa em relação à primeira, realizada em 2007, na Colômbia?

Ana Segall – Na primeira conferência, o objetivo era desenvolver uma escala de medida de segurança alimentar que tivesse validade para a América Latina. De lá para cá, muitos países do continente fizeram a validação de uma escala própria e adequada. Também foi desenvolvida a Elcsa [Escala Latino-Americana e Caribenha para Medida da Segurança Alimentar], que foi baseada nas adaptações brasileira e colombiana da HHFSSM [Household Food Security Scale Measurement-EUA].

A ideia de uma escala para a América Latina era porque os pesquisadores envolvidos com o tema tinham a convicção da necessidade de um instrumento eficaz para medir a segurança alimentar. Naquele instante, vários países do continente começavam a desenvolver programas de combate à fome, mais ou menos inspirados na experiência brasileira do Fome Zero. Daí a necessidade de ter um instrumento para identificar as populações mais vulneráveis à fome e acompanhar o impacto dessas políticas públicas. A segunda conferência vai trabalhar com a necessidade de aprimorar essa escala, mas também vamos avançar na discussão e análise do impacto da insegurança alimentar nas condições de vida e saúde das pessoas e ver como podemos medir isso.

JU – De que ordem são esses impactos?

Ana Segall – Nós pretendemos desenvolver novas investigações. A conferência terá uma parte que trabalhará essa questão. Nós já temos pesquisas que indicam que a insegurança alimentar interfere nas situações de violência doméstica, por exemplo. Também pode ter reflexo no comportamento antissocial na escola. As crianças cujas famílias têm pouco acesso ao alimento tendem a ser mais agressivas no ambiente escolar.

Outros estudos demonstram, ainda, a associação entre insegurança alimentar e problemas psicológicos, como depressão e ansiedade. Os estudos mais frequentes sobre o impacto do baixo acesso aos alimentos estão ligados à questão nutricional. Alguns deles demonstraram a ocorrência de sobrepeso e obesidade simultaneamente à insegurança alimentar. São abordagens muito importantes, sobretudo no contexto da redução da desnutrição e aumento da obesidade, fenômeno que está ocorrendo em praticamente todos os países em via de desenvolvimento.

São pesquisas que abrem novas oportunidades de políticas públicas. Além disso, outro aspecto que nos interessa estudar, e que tem sido mais frequente na África, é o impacto das condições de saúde na insegurança alimentar. Lá, a epidemia da Aids concorre para a insegurança alimentar, tanto em razão do adoecimento que reduz a capacidade para o trabalho, quanto por resultar em maior custo para a família e a sociedade, entre outros aspectos.

Resumindo, esta segunda conferência tem por meta avançar nas possibilidades de compreender melhor, nos dias de hoje, a insegurança alimentar e fome, seus determinantes, sua freqüência nas diversas populações e as consequências para os indivíduos, as famílias e a sociedade.

JU – Ou seja, a discussão já não se concentra mais no aspecto da disponibilidade de alimentos...

Ana Segall – Quando se começou a falar em segurança alimentar, na época da 2º Guerra Mundial, os países tinham uma grande preocupação quanto à autonomia para assegurar a disponibilidade de alimentos às suas populações. Ou seja, uma nação não queria depender da outra no caso de novos conflitos. Então, quando o conceito começou a ser formulado, a preocupação maior era essa. Tanto é assim que após ser criada, a FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação] estabeleceu um importante indicador de segurança alimentar, que era a disponibilidade calórica per capita de cada país. Entretanto, essa disponibilidade não tem nada a ver com acessos das pessoas aos alimentos necessários à sua sobrevivência e bem-estar. Pode haver grande disponibilidade de alimentos no país, mas esse alimento pode estar concentrado numa faixa pequena da população. Ou seja, a média per capita pode ser de três mil calorias diárias, mas há quem consuma 5 mil e há quem consuma apenas 1.000 ou menos.

A questão do acesso passou a ser discutida mais fortemente a partir do trabalho do médico brasileiro Josué de Castro, na FAO. Ele dizia que a fome não era algo natural, que era produzida pelos homens, muito em razão das desigualdades sociais. Na sequência, também cresceu a discussão em torno da qualidade. Ou seja, não basta ter acesso a determinada quantidade de comida, se esta não tiver qualidade. Com isso, avançou também a ideia de que os alimentos teriam que ser obtidos de forma social e ambientalmente aceitável. Trata-se de um progresso ao longo do tempo.

Mais recentemente, em 2006, o Brasil acrescentou mais um ponto importante a essa relação, que é reconhecer a segurança alimentar como um direito básico do ser humano. A definição de segurança alimentar, segundo essa proposta, é o direito de todos ao acesso a alimentos em quantidade e qualidade adequadas, sem comprometer outras necessidades básicas, obtidos de forma sustentável e socialmente aceitável. Há uma matéria tramitando no Congresso Nacional que propõe a inclusão na Constituição de um artigo que defina a alimentação como um direito básico do ser humano. Com isso, o Estado passaria a ser obrigado a atender as necessidades da população quanto ao acesso aos alimentos.

JU – Como é feita atualmente a identificação das famílias em situação de insegurança alimentar ou fome? Além da renda, que fatores são levados em consideração?

Ana Segall – Vários fatores serão levados em conta. A renda é um deles. Ocorre que esse dado coloca um ponto de corte. Informa que abaixo de determinado valor as pessoas estão em situação de insegurança alimentar ou fome. Mas não faz nenhuma outra distinção. As escalas aprimoram esse diagnóstico, porque informam com maior precisão quais pessoas em tais faixas de rendimentos e com tais características estão mais sujeitas à insegurança alimentar ou à fome. Assim, famílias com crianças têm mais insegurança alimentar do que as sem crianças, na mesma faixa de renda. Idosos que moram sozinhos têm mais insegurança do que aqueles que vivem com familiares, na mesma faixa de renda. Uma família cujo chefe é analfabeto também está mais sujeita à insegurança alimentar do que aquela cujo chefe tem algum nível de instrução. Ou seja, a renda é um marcador importante, mas não é o único. A escala brasileira identifica quem está com restrição e contempla dados como posse de bens duráveis, educação do chefe da família, condições de saneamento, número de pessoas na casa etc.

JU – A partir da adoção de programas como Fome Zero e Bolsa Família e da criação da escala brasileira, que conclusões podem ser tiradas. O país tem avançado em direção à meta de garantir a segurança alimentar para a camada mais carente da população?

O médico brasileiro Josué de Castro, para quem a fome estava associada às desigualdades sociais: novas abordao longo do tempo (Foto: Reprodução)Ana Segall – O primeiro diagnóstico realizado no Brasil com o uso da escala foi em 2004, por ocasião da PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, aplicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)]. Depois disso, não tivemos outra PNAD. O ideal é medirmos da mesma forma, para termos um parâmetro de comparação. Em setembro começa a pesquisa de campo da PNAD 2009, que também aplicará a escala. Ou seja, a partir do final de 2010 nós teremos a melhor condição para comparação. Aí poderemos identificar diferenças mais facilmente.

Mas a escala também foi incluída na Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde, a PNDS de 2006, financiada pelo Ministério da Saúde-Decit e coordenada pelo Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento]. Ocorre que a PNDS analisa apenas domicílios em que existem mulheres em idade fértil, de 15 a 49 anos. O que estamos fazendo agora é comparando os resultados da PNAD e PNDS, mas tendo como referência somente os domicílios com mulheres em idade fértil, que é para garantirmos a comparabilidade.

Embora o período de tempo seja pequeno, de apenas dois anos, os dados iniciais indicam uma redução importante da insegurança alimentar grave. Diminuiu a proporção de pessoas com insegurança alimentar grave e moderada e aumentou a proporção com insegurança leve. Ou seja, houve uma migração entre as faixas. Houve melhora para as populações de menor rendimento, mas a situação geral de insegurança alimentar ainda preocupa. O país precisa avançar mais, para conseguir garantir acesso adequado aos alimentos tanto em quantidade quanto em qualidade. Por enquanto, esses são os únicos estudos que nos possibilitariam analisar e, de certa forma, monitorar a insegurança alimentar no nosso país.

JU – Ou seja, a situação apresenta melhora, mas não no ritmo e na dimensão desejáveis. O que está faltando para que a população em geral alcance a condição de segurança alimentar?

Ana Segall – Essa é uma questão importantíssima. As políticas públicas de segurança alimentar estão fortemente baseadas no mecanismo da transferência de renda. No bojo dessas políticas houve também um importante apoio à agricultura família e à assistência aos idosos. Paralelamente, ocorreu o aumento real do salário mínimo. Tudo isso gerou um impacto positivo em relação à redução da insegurança alimentar, principalmente na sua forma mais grave. Mas as políticas multissetoriais que deveriam acompanhar essas iniciativas ainda não tiveram eficácia. O Bolsa Família exige que o usuário do programa cumpra determinadas condicionalidades: a mulher, por exemplo, tem de fazer pré-natal e amamentar seus filhos.

O Ministério de Desenvolvimento Social tem a política de apoiar os municípios que conseguem comprovar que estão assistindo as pessoas. Entretanto, ao analisarmos os serviços, percebemos que eles não estão dando qualquer assistência adicional ou especial às pessoas mais vulneráveis. Quando olhamos os beneficiários e os não-beneficiários dos programas de transferência de renda, tendo em conta a mesma faixa de renda, concluímos que os segundos estão sempre em melhores condições de segurança alimentar do que os primeiros. Isso não acontece porque os programas não cumprem seus objetivos. Eles cumprem. Mas certamente essas pessoas apresentam outras condições desfavoráveis, que implicam maior vulnerabilidade e que precisam ser atacados com políticas e ações efetivas. Ou seja, ainda precisamos de políticas públicas mais integradas e integrais. Ao identificar um grupo populacional que tem dificuldade de acesso a alimentos, é preciso dispor de um leque de ações para poder tirar essas pessoas dessa situação.

A transferência de renda é muito importante, mas não tem sido suficiente para resolver integramente o problema. Uma questão fundamental ainda a ser atacada é a geração de oportunidades, especialmente para as pessoas cujas características sociais as afastam das possibilidades do trabalho formal e da renda suficiente e permanente. Estudos apontam que a partir de um salário mínimo per capita, as famílias não sofrem mais de insegurança alimentar grave, mesmo apresentando outras condições de vulnerabilidade.

JU – A segunda Clacmesa contará com a participação de representantes do poder público, para que eles tomem conhecimento dessas e de outras discussões?

Ana Segall – Nós convidamos os prefeitos da Região Metropolitana de Campinas e representantes do Ministério de Desenvolvimento Social, do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] e de outros órgãos e instituições públicas. Nosso objetivo é juntar o meio acadêmico e os gestores de políticas públicas. O esforço de pesquisa que estamos fazendo é justamente para dar suporte às políticas públicas, para que elas sejam as mais eficazes possíveis.

JU – A conferência tem a proposta prévia de firmar um documento com propostas aos gestores públicos?
Ana Segall – Não temos essa preocupação prévia. Mas teremos uma sessão final de recomendações. Pode ser que isso acabe gerando um documento, uma carta, mas essa não foi uma ideia a priori. Nosso intuito é colocar as informações de forma mais clara e chamar a atenção das autoridades para as questões que estaremos debatendo e que julgamos de grande relevância.

JU – O grupo da Unicamp coordenado pela senhora teve e continua tendo um papel importante nas discussões sobre segurança alimentar, tanto em nível nacional quanto internacional. Que temas esses pesquisadores estão trabalhando no momento?

Integrante de tribo guarani do litoral paulista durante oficina na edição do ano passado da SBPC, realizada na Unicamp: percepção que indígenas têm da segurança alimentar guarda peculiaridades” (Foto: Luis Paulo Silva)Ana Segall – O esforço que estamos fazendo é de integrar grupos dentro da Unicamp. A conferência é produto da ação de pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas, mais especificamente do Departamento de Medicina Preventiva e Social, do Instituto de Economia e do NEPA [Núcleo de Estudos e Pesquisa em Alimentação]. Na Unicamp tem vários grupos e pesquisadores que abordam, direta ou indiretamente, a questão da insegurança alimentar e da fome.

Temos parceria desde 2003 com pesquisadores da Feagri [Faculdade de Engenharia Agrícola]. Além disso, estamos desenvolvendo no momento um estudo que conta com a participação de duas antropólogas, uma pesquisadora do Nepo [Núcleo de Estudos de População] e outra da Faculdade de Educação Física. A proposta é desenvolver um instrumento para medir a segurança alimentar das populações indígenas. As pesquisas já estão em fase de finalização. Queremos, com isso, desenvolver um modelo capaz de captar a percepção particular das populações indígenas do Brasil. Na penúltima edição da SBPC, realizada na Unicamp no ano passado, por exemplo, indígenas de Boracéia organizaram oficinas de alimentação, por meio das quais o cacique e outros integrantes da aldeia fizeram demonstração de alimentos tradicionais e seus conceitos de alimentação foram expostos.

Dentre todos os vulneráveis à fome no Brasil, os índios são os mais vulneráveis. É um trabalho complexo, pois o acesso às informações é muito difícil. Estamos trabalhando com os guarani que vivem no litoral Norte e Sul de São Paulo. Nossa experiência com eles mostra que existem conceitos semelhantes aos da população em geral, mas, por outro lado, existem particularidades que precisam ser incorporadas. Para eles, por exemplo, o conceito de alimentação suficiente é sempre coletivo. O alimento é apenas suficiente quando pode ser dividido com os demais. Se tem para um e não para os outros, eles se julgam em situação de carência alimentar.

Outra condição importante é a questão da autonomia. Para eles, a alimentação tem um elemento sagrado, assumindo uma dimensão cosmológica. Logo, a produção dos alimentos com seus próprios meios é muito importante. Esperamos que, validado o instrumento, nós possamos estender a pesquisa para o âmbito nacional, a partir do ano que vem. Ou seja, as oportunidades de contribuição da Unicamp são muitas e a intenção é constituir um grupo com pesquisadores das várias unidades afins, porque o problema da insegurança alimentar e da fome é certamente de natureza multidimensional e, portanto, interdisciplinar.

JU – No ano que vem nós teremos eleições para a escolha do novo presidente da República. No seu entender, a questão da insegurança alimentar deve ser um tema central dos debates?

Ana Segall – Sem dúvida. Esse é um assunto que exige estar na pauta de qualquer candidato. E nós temos a obrigação de fazer com que o tema se mantenha vivo. Precisamos que os governantes se comprometam em adotar políticas públicas de Estado e não apenas de governo. As ações precisam ser coordenadas e ter continuidade, independente de quem esteja no poder.

 

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