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Sobre afeto e limites
Livro aborda crescimento e desenvolvimento na infância e na adolescência

Como enfrentar o desafio de educar crianças e adolescentes no mundo de hoje, transmitir valores morais e contribuir para o desenvolvimento da personalidade de cada um, sem autoritarismo? Este é o tema central do livro “Cuidado, afeto e limites: uma combinação possível”, do médico pediatra José Martins Filho e do psicólogo clínico e psicoterapeuta Ivan Roberto Capelatto. A publicação, da Editora Papirus, acaba de ser lançada.
Martins Filho, professor da Unicamp, e Capelatto, também acadêmico, vêm se encontrando com frequência em debates promovidos em universidades, escolas e congressos. Foi da Papirus a proposta de registrar em compêndio as ideias e relatos das experiências profissionais de ambos sobre o crescimento e desenvolvimento na infância e na adolescência. O livro é todo escrito no formato de um debate – ou de um diálogo, diante da afinidade de pontos de vista – a exemplo do trecho que lemos logo de início:


Ivan Capelatto
– O que é ser pai e ser mãe, hoje? Infelizmente, não sabemos mais ao certo, a cultura já não nos dá essa referência. Não crescemos mais aprendendo o que caracteriza essas funções sociais – estamos fora, longe. Também já não temos clara a noção de cuidado: de quem é a responsabilidade pelos cuidados com os pequenos? Do pai? Da mãe? Da professora? Perdeu-se o conceito de cuidador atrelado aos papéis de pai e mãe. Às vezes, a babá tem mais a noção do que seja cuidado do que o pai e a mãe; e, por isso, acaba ocupando o papel materno.

José Martins Filho – Porque ninguém mais ouve o pai, a mãe, o avô, a avó, a tia... Esses valores familiares estão se diluindo, as famílias se tornaram muito celulares. Dessa forma, quem acaba assumindo a discussão sobre o problema das relações familiares, quem cria um vínculo para que o assunto possa ser levantado e discutido é, principalmente, o profissional que vai atender a criança. Daí a importância do que estamos discutindo aqui.

Assim, através de uma linguagem informal e atraente ao pai, mãe, parente ou outros leitores leigos, mas com conteúdo suficiente para desafiar professores e especialistas à reflexão, os autores abordam quase duas dezenas de temas, conforme o sumário: A sociedade e o hedonismo. A figura da babá. O vínculo e a autonomia. Criança normal dá trabalho. Como lidar com os limites. A geração que estamos criando. Pais: amigos dos filhos? Sexo, drogas e diálogo. O dever de cuidar é dos pais. A família na origem do problema. As falhas do sistema de saúde. A adolescência prolongada. Quando a pessoa adoece. Quando a sociedade adoece. A adoção. A mente no comando do corpo. A responsabilidade da educação. Quem precisa de ajuda: os pais ou os filhos?

Ilustração: OmagaÚltimo dos clínicos
Por que um pediatra está preocupado com tudo isso? Martins Filho responde que, na sua visão, o pediatra é o último dos clínicos gerais. “É o único médico que ainda se preocupa com a alimentação, a vacina e a escola da criança; se ela está dormindo bem ou se sofre de terror noturno; se as relações com o pai e a mãe são boas. E, se for o caso, vai encaminhá-la a um especialista, como o psicólogo. A saúde da criança está integrada às relações familiares e ao aprendizado escolar. Portanto, a atuação do pediatra vai muito além de observar se nasceu um novo dente ou de receitar remédios para febre e diarréia”.

José Martins Filho afirma que este é seu oitavo livro na mesma linha e representa uma continuidade do anterior, “A criança terceirizada”, editado também pela Papirus em 2007 e que ficou na lista dos dez melhores do Jabuti – prêmio que o autor ganhou em 1996 com “Lidando com crianças, conversando com os pais”. “São livros que se seguem, depois que me dei conta da importância de rever as questões familiares e, principalmente, a problemática educacional neste mundo de pais e mães assoberbados pelo trabalho e problemas de toda ordem. Sobra pouco tempo para educar”.

Na opinião do pediatra, a terceirização do papel de pais é a tendência nas famílias desses tempos modernos, em que as crianças estão sendo cuidadas e educadas por pessoas que não as geraram. “Saindo às sete da manhã e voltando às oito da noite do trabalho, pai e mãe têm que colocar os filhos muito cedo na escola ou conseguir quem cuide deles; quando voltam, cansados, não têm disposição para colocar ordem na casa, permitindo tudo às crianças em troca de não ouvir problemas e choros”.

Afeto e limites
O autor observa que a relação familiar torna-se complicada quando os pais deixam de assumir o papel fundamental de demonstrar que a criança é querida dando-lhe afeto, mas ao mesmo tempo de educar, orientar e estabelecer limites. “Vejo filhos de 5 anos de idade que já tiveram três ou quatro babás – são demitidas pela mãe ciumenta da afeição das crianças por elas. E, a cada babá, as crianças buscam um novo vínculo para se sentirem amadas, pois necessitam de um adulto protetor”.

Nesse aspecto, Martins Filho revela seu gosto por um autor inglês, o pediatra e psicanalista Donald Winnicott, que considera essencial este vínculo entre mãe e filho principalmente no primeiro ano de vida. “Para Winnicott, um bebê não existe sozinho; é uma extensão da mãe, visto que não tem noção do ser individual. Como medir as consequências em um bebê que é colocado na creche logo aos dois ou três meses?”.

O pediatra toma conhecimento de casos surpreendentes dentro das creches, como da mãe que trazia a criança às 7 da manhã e avisava que a pegaria às 7 de noite “de banho tomado, pijama e, se possível, já dormindo”. Ou da proprietária de uma creche que oferecia o serviço de pernoite, caso a mãe precisasse viajar. “É como deixar o cachorrinho no veterinário, que se encarrega apenas de dar água e comida ao animal”.

No livro, os autores discutem como esta falta de tempo e de empenho dos pais também com os adolescentes influencia no aumento da violência social, com desrespeito ao idoso, ao professor, à autoridade. A título de ilustração, Martins Filho lembra a rumorosa notícia sobre cinco jovens de classe média que espancaram uma empregada doméstica no Rio de Janeiro, roubando dela 50 reais. “Eram jovens sem pai nem mãe, já que estes não tinham ideia de onde os filhos estavam e o que faziam. São jovens sem limites, sem noção de cidadania. O jovem deve, sim, ter liberdade e se tornar independente, mas o que vemos é um abandono, a terceirização do cuidado com o filho”.

Estado de risco
Co-autor de “Cuidado, afeto e limites”, o psicoterapeuta e professor Ivan Roberto Capelatto atende a crianças e adolescentes que estão nas duas pontas do chamado estado de risco: aqueles em profundo sofrimento mental e com depressão em andamento – alguns com sinais psicóticos ou sinais evidentes de drogadição ou desconforto com a estima; e, na outra ponta, com os “lúcidos”, aqueles bem cuidados e de pais presentes. “Os últimos, por estarem bem psiquicamente, não encontram uma ‘tribo’ para se relacionar e se sentem sozinhos, menores, rejeitados”.

Capelatto é incisivo ao falar de um dos temas centrais do livro, referente aos problemas emocionais e comportamentais que crianças e adolescentes apresentam em função das recentes mudanças nas relações familiares. “O filho que não vive sob limites colocados por pais ou cuidadores pode se sentir ‘dono do mundo’, um ser narcísico, sem a capacidade de resistência às frustrações que a vida traz. E, sem resistir às perdas, pode adoecer, se machucar ou machucar outras pessoas”.

Segundo o psicoterapeuta, a primeira recomendação para contornar esses problemas é a orientação aos pais, cuidadores e professores – a que o livro se propõe – e, se necessário, oferecer assistência psicoterapêutica à criança ou adolescente. “É importante lembrar que a sociedade está vivendo sob a filosofia do hedonismo, da busca do prazer a qualquer custo. Os bares não fecham mais, as baladas são diárias, não há limites claros para o uso e o abuso de álcool e drogas”.

Ivan Capelatto é autor de “Diálogos sobre afetividade” (Papirus, 2007) e “Prepare as crianças para o mundo” (Editora Unicef, 2006), e co-autor de “As dimensões do amor” (Editora da Unicamp, 1993) e “Psicoterapia breve no atendimento da criança” (Editora Pontes, 2004). Sobre o livro escrito juntamente com o professor José Martins Filho, ele define como um “palavrório” clínico-científico entre dois profissionais que lidam com as mesmas pessoas e problemas. “É um livro que chamo de científico-popular, o tipo de obra que gosto, pois atinge a base e o topo da cadeia intelectual”.



QUEM SÃO OS AUTORES

(Foto: Antoninho Perri)José Martins Filho - é médico pediatra e professor titular aposentado da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), da qual foi diretor. Vice-reitor da Unicamp de 1990 a 94, assumiu a Reitoria na gestão seguinte (94-98). Segue atuando como pesquisador e orientador de mestrandos e doutorandos em “Saúde da criança e do adolescente” do Centro de Investigação em Pediatria (Ciped). Além dos livros dirigidos a leigos, é autor vários livros científicos e de dezenas de trabalhos publicados em revistas nacionais e internacionais. É âncora do programa “Conexão Brasil”, da TV Século 21.

 


(Foto: Antoninho Perri)

Ivan Capelatto -
é psicoterapeuta de crianças, adolescentes e famílias, e mestre em psicologia clínica pela PUC de Campinas. Foi professor convidado dos cursos de terapia familiar do The Milton H. Erickson Foundation (Arizona, EUA) e de pós-graduação da Faculdade de Medicina da PUC de Curitiba. Ex-professor do Núcleo de Terapia Familiar de Londrina e de medicina da família da FCM da Unicamp. Colaborador da Unesco no Projeto de Vida com Apoio do Estado de São Paulo e fundador do Centro de Atendimento à Criança Leucêmica do Hospital Boldrini de Campinas.


 

 
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