Na
série televisiva norte-americana CSI, cientistas-investigadores
lançam mão de conhecimentos sofisticados e equipamentos
de última geração para decifrar os mais intrincados casos
de assassinatos. Descontados os exageros próprios da ficção,
algumas técnicas mostradas pela produção encontram similaridade
nos procedimentos adotados na vida real. No Instituto de
Química (IQ) da Unicamp, mais especificamente nas dependências
do Laboratório Thomson de Espectrometria de Massas, pesquisadores
têm desenvolvido métodos originais para a identificação
de fraudes perpetradas contra os consumidores brasileiros.
A exemplo de seus pares hollywoodianos, eles transformam
a ciência numa poderosa arma contra o crime. Recentemente,
por exemplo, esses “caçadores de falcatruas” conceberam,
a pedido da Polícia Federal (PF), duas metodologias capazes
de constatar adulterações no leite em pó. Os trabalhos
ajudaram a orientar o inquérito da PF.
O pedido para que os pesquisados do Laboratório Thomson
ajudassem a identificar possíveis adulterações no leite
em pó partiu da PF, em meados de 2008. Naquela oportunidade,
o órgão havia deflagrado a chamada Operação Lactose, destinada
a apurar esse tipo de fraude. Uma quadrilha chegou a ser
presa na Paraíba, acusada do crime. A missão dos cientistas
da Unicamp foi desenvolver técnicas para identificar a possível
adição ao produto alimentício de maltodrextina, um carboidrato
complexo proveniente da conversão enzimática do amido de
milho, e de gordura vegetal. De acordo com o médico veterinário
Gustavo Sanvido, doutorando pelo Thomson e um dos autores
do trabalho, as duas substâncias não são patogênicas, mas
alteram as características e propriedades do leite em pó.
As pesquisas contaram também com a participação dos químicos
Boniek Gontijo Vaz e Yuri Eberlim de Corilo, ambos doutorandos
do laboratório; da química Jerusa Simone Garcia, que fez
o pós-doutorado na unidade e atualmente é professora da
Universidade Federal de Alfenas (Unifal); e de Martin Peter,
professor da Universidade de Potsdam (Alemanha) e pesquisador
colaborador do Thomson.
Segundo Gustavo, laboratórios oficiais vinculados ao Ministério
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) dispõem
de uma técnica para a detecção de maltodrextina. Ocorre,
porém, que o método não é totalmente confiável. “Ele frequentemente
gera resultado falso negativo. Daí a necessidade de desenvolvermos
uma alternativa eficaz”, explica. Para identificar a possível
presença do carboidrato nas amostras de leite fornecidas
pela PF, os pesquisadores da Unicamp usaram dois caminhos
diferentes. Primeiro, submeteram essas amostras a um tratamento
específico, de modo a precipitar as proteínas e chegar a
uma fase líquida. Em seguida, promoveram a análise química
num equipamento denominado espectrômetro de massas. A outra
via seguida foi diluir o leite em pó em água e “injetar”
diretamente no mesmo aparelho.
Nos dois testes, conforme o médico veterinário, foi possível
identificar a presença da maltodrextina nas amostras. “Nos
gráficos gerados pelo espectrômetro, ficou muito clara a
existência tanto de íons da lactose quanto de íons do carboidrato.
Por associação, foi como comparar duas impressões digitais
diferentes”, detalha o pesquisador. Para averiguar a eventual
mistura de gordura vegetal ao leite em pó, os cientistas
seguiram um processo um pouco mais trabalhoso. “Nós tivemos
que extrair a gordura presente no leite, para depois submetê-la
à análise química, também no espectrômetro. Não conseguimos
determinar exatamente que gordura vegetal havia sido acrescentada
ao produto, mas identificamos sem sombra de erro a presença
da substância nas amostras fornecidas”, assegura.
A
adição de gordura vegetal e maltodrextina ao leite em
pó já representa uma adulteração, como observa Gustavo.
O médico veterinário destaca, porém, que essas substâncias
também podem constituir indício de outras eventuais fraudes.
“Em tese, esses elementos podem ser misturados ao leite
com o objetivo de mascarar outras alterações”, diz.
O uso da gordura vegetal, continua o pesquisador, pode esconder
a retirada da gordura original para a produção de creme
de leite, produto com maior valor de mercado. Nesse caso,
os fraudadores acrescentariam, por exemplo, óleo vegetal
ao leite em pó para promover a compensação.
Gustavo acredita que os métodos desenvolvidos pelos cientistas
do Laboratório Thomson podem ser facilmente transferidos
aos laboratórios oficiais do governo, visto que vários deles
contam com o espectrômetro de massas. Ele informa que o
Mapa já manifestou interesse em adotar oficialmente a técnica
de identificação da maltodrextina. “A pedido do ministério,
estamos promovendo novos ensaios para validar o método,
condição essencial para que possa ser de fato oficializado”,
acrescenta.
Produtividade
Os pesquisadores do Laboratório Thomson têm se especializado,
entre outras ações, em identificar fraudes contra o consumidor.
Nos últimos anos, eles desenvolveram métodos para constatar
eventuais “batismos” em produtos como mel, cachaça, azeite,
perfume, gasolina, biodiesel e medicamentos. Em todos os
casos foi utilizado o espectrômetro de massas, equipamento
extremamente versátil e preciso. Dito de modo simplificado,
o aparelho promove a análise química das amostras e gera
gráficos que permitem a comparação com os obtidos a partir
de amostras padrão. “Por meio de algumas das técnicas aqui
desenvolvidas, nós conseguimos até mesmo rastrear a origem
de um determinado produto, em função das substâncias nele
contidas”, detalha o farmacêutico Renato Haddad, que concluiu
seu pós-doutorado no laboratório.
O índice de aplicabilidade das técnicas desenvolvidas no
Thomson, cujo coordenador é o professor Marcos Eberlin,
impressionam. De acordo com os dados fornecidos pelo próprio
laboratório, perto de 75% das pesquisas empreendidas por
seus integrantes têm aplicação, seja imediata, seja no médio
ou longo prazo. Os indicadores de produtividade da unidade
também chamam a atenção. Em quase 16 anos de atividade,
foram produzidos 363artigos, entre publicados ou já submetidos
a revistas científicas indexadas. Apenas este ano já foram
realizados 23 trabalhos, mas o objetivo é alcançar a marca
de 45 até dezembro. Os estudos gerados pelo Thomson mereceram
ainda 611 citações em 2008 e 492 este ano. Atualmente, o
laboratório é um dos centros de pesquisa mais produtivos
e conceituados em espectrometria de massas em todo o mundo.
Também é um dos mais bem equipados, dado que conta com os
principais e mais modernos equipamentos, além de um grupo
de cerca de 30 pesquisadores e profissionais especialistas
na área.