Dois espetáculos, um mesmo mito-guia: a
mulher guerreira. Foi a partir dessa percepção que a atriz
e diretora teatral Luciana Lyra desenvolveu a sua tese de
doutorado, apresentada recentemente ao Instituto de Artes
(IA) da Unicamp. No trabalho, orientado pelo professor John
Dawsey, do Departamento de Antropologia da Universidade
de São Paulo (USP), a autora do estudo parte das peças A
Batalha das Heroínas e Guerreiras para investigar a temática,
tendo como objeto privilegiado a análise das intersecções
entre estas performances estéticas.
De acordo com Luciana, a tese de doutorado
é um desdobramento da sua dissertação de mestrado. Pouco
antes de iniciar a pós-graduação, ela re alizou uma cena
acerca da guerreira Joana d’Arc, em Recife. “Foi a partir
dessa experiência cênica que me desloquei para São Paulo
para começar meus estudos. Intitulada Joana In Cárcere,
a cena surgiu de repetidas imagens oníricas que tive. A
partir dos sonhos com a heroína, corporifi quei o mito Joana
d’Arc, desdobrando-o em diversos outros mitos femininos,
que por sua vez deram origem a uma sequência de movimentos
de uma performance que viria a dialogar com a cultura popular
pernambucana”, detalha.
Por
meio desse estudo, continua Luciana, foi que ela aprofundou
o conceito denominado “máscara ritual”, cunhado inicialmente
pelo pesquisador Renato Cohen. Dito de modo simplificado,
máscara ritual pode ser entendida como um procedimento de
ação cênica usado pelo performer para romper com a representação
fi ccional ou convencional, abrindo espaço para que faça
uma representação de si mesmo, numa espécie de “f(r)icção”,
onde o modelado atrita-se com o real. “Foi sob a égide da
máscara ritual de Joana que aprofundei a performance Joana
In Cárcere, descortinando um trajeto pessoal, na restauração
da minha própria história. Naquele momento, eu desconhecia
que antes e bem perto de mim, no lugarejo de Tejucupapo,
no município de Goiana, na Zona da Mata de Pernambuco, como
fazendo ecoar um imaginário comum, trincheiras tinham sido
escavadas na proteção da identidade e da história de outras
mulheres”, relata.
Aqui, é recomendável abrir espaço para explicar
como Tejucupapo assume um papel relevante na tese elaborada
por Luciana. Naquele local ocorreu um episódio pouco conhecido
da história brasileira: o primeiro confl ito armado registrado
no país com participação de mulheres, batizado de Batalha
de Tejucupapo. O confronto se deu entre 1630 e 1654 durante
a ocupação do Nordeste, particularmente Pernambuco, por
parte dos holandeses. Segundo os parcos registros históricos
acerca do evento, um coletivo de corajosas tejucupapenses
cerrou fileiras para expulsar os invasores.
Tal acontecimento, conforme a autora da
tese, foi resgatado por meio do espetáculo A Batalha das
Heroínas, criado por Luzia Maria da Silva, uma auxiliar
de enfermagem que trabalha no posto de saúde local. “Dona
Luzia teve a ideia de realizar a peça em 1993, após superar
um grave problema de saúde. Na ocasião, com o objetivo de
tranquilizá-la, uma colega enfermeira de um hospital de
Recife dizia para ela que ‘toda mulher de Tejucupapo é uma
guerreira’, e que por isso ela iria sarar. O curioso é que
Dona Luzia, embora fosse do vilarejo, só tomou conhecimento
da Batalha de Tejucupapo, com detalhes, quando da sua internação”,
conta Luciana.
Superada
a doença, dona Luzia prometeu a si mesma que restauraria
a história do lugarejo, o que signifi cava também a restauração
da sua própria história. “Embora nunca tivesse assistido
a um espetáculo cênico ‘ofi cial’ em sua vida, dona Luzia
escreveu, dirigiu e atuou no espetáculo. O teatro foi a
linguagem que ela encontrou para transformar a peleja das
mulheres numa história restaurada, que passou a ser apresentada
todo último domingo de abril, desde 1993, com a participação
da comunidade local. Em 2001, a iniciativa foi ampliada
e passou a se chamar A Festa das Heroínas, evento que reúne
shows, feira típica e apresentação de grupos artísticos”.
Retornando à pesquisa, Luciana tomou conhecimento
da existência das mulheres de Goiana em 2006, por meio da
leitura do livro Tejucupapo: história, teatro, cinema, organizado
pelo jornalista pernambucano Cláudio Bezerra. “Foi então
que percebi as ressonâncias entre a cena de Joana In Cárcere
e A Batalha das Heroínas. Esta aproximação parecia acontecer
por intermédio de três aspectos: um mesmo mito fundava ambas
as encenações; as experiências performáticas articulam passado
e presente por meio de imagens; e as máscaras das atuantes
advinham de um campo iminentemente autoral, eram autorreferentes”.
Impulsionada por essas estreitas relações,
Luciana partiu, em 2007, para o aprofundamento da máscara
ritual da guerreira Joana d’Arc, junto à comunidade tejucupapense.
“Meu interesse estava em perseguir as possíveis interfaces
entre o encaminhamento de meus trabalhos artísticos e a
montagem teatral daquelas mulheres. Nesse desafi o, eu me
vali de um processo que promoveu a intersecção entre a Antropologia
e as Artes Cênicas, o que acabou por fomentar uma trança
onde os fenômenos da performance e do imaginário desvelam-se
como vértices do processo criativo em artes”, destaca pesquisadora.
Em 2009, como parte das ações do estudo,
Luciana escreveu e dirigiu o espetáculo Guerreiras, com
base nas experiências em campo com as mulheres de Tejucupapo.
A iniciativa contou com o apoio do Fundo de Cultura do governo
de Pernambuco. “Joana passou a ser uma das personagens da
peça junto a outras quatro guerreiras criadas por atrizes
convidadas para participar do projeto, a saber: Cris Rocha,
Katia Daher, Simone Evaristo e Viviane Madu. Assim, a trama
de relações entre A Batalha das Heroínas e Guerreiras passou
a ser pedra de toque da pesquisa de doutorado”. Em síntese,
acrescenta a autora, a investigação teve como escopo a exploração
do modo como as imagens das heroínas, advindas da batalha
contra os holandeses no longínquo século XVII, articulam-se
ao presente, na experiência teatral das mulheres-performers
do atual vilarejo.
E
mais: “Também busquei entender como a experiência comunitária
pôde afetar a mim enquanto artista-pesquisadora no agenciamento
da mesma máscara de heroína, bem como a equipe por mim dirigida,
suscitando um processo criativo”. Luciana assinala, ainda,
que além de se debruçar sobre a dimensão estética dos espetáculos,
traçou um mapa transversal de um percurso historiográfi co
por meio de estudos sobre os holandeses em Pernambuco e
da trajetória de Tejucupapo. “Também estabeleci na tese
o contato com questões de gênero, além de outros campos
das teorias e história do teatro, da performance, da literatura,
da psicologia, da educação e da mitologia”.
No desenvolvimento da pesquisa, Luciana
criou e aplicou dois conceitos originais, Artetnografi a
e Mitodologia. O primeiro associa-se a estratégicas antropológicas
contemporâneas de atuação no campo, confi gurando-se como
prática realizada por artistas cênicos ao se deslocarem
aos locais onde vivem aqueles que pretendem pesquisar, para
que nesta interação polifônica e subjetiva possam promover
a criação da cena performática. O segundo, elaborado a partir
da experiência artetnográfica, traduz-se por um complexo
de procedimentos para a criação cênica, utilizando como
aportes elementos da Antropologia da Experiência (estudada
por Vistor Turner) e da Antropologia do Imaginário (estudada
por Gilbert Durand).
O projeto Guerreiras, enfatiza Luciana,
além de tomar parte da tese, teve dois outros desdobramentos.
O primeiro foi a publicação, em 2010, do livro Guerreiras
– Texto Teatral e Trilha Sonora Original, também com financiamento
do Fundo de Cultura pernambucano. O segundo foi a produção
de outro livro, este infanto-juvenil, intitulado De como
meninas guerreiras contaram heroínas, que está no prelo.
Esta obra teve o subsídio da Bolsa de Criação Literária
da Fundação Nacional de Artes (Funarte), órgão do Ministério
da Cultura. O texto ganhou, ainda, o prêmio do Programa
de Ação Cultural (Proac) da Secretaria do Estado da Cultura
de São Paulo em 2010.
Luciana ressalta, por fi m, que a sua tese
de doutorado é a primeira acerca do tema, mas que existem
quatro monografi as de especialização desenvolvidas em Pernambuco.
“Minha pesquisa tem um peso maior no sentido da titulação
e da extensão da abordagem. A investigação procura dar visibilidade
a uma população marginal que está fazendo algo signifi cativo,
contando a sua história através do teatro. O que aquelas
mulheres fazem é de muita potência e ainda tem muito para
se estudar. Na verdade, entendo que estou servindo como
uma porta aberta para que outros pesquisadores investiguem
outros aspectos da comunidade”.