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Arqueologia para a comunidade
POR: PEDRO PAULO A. FUNARI E
ALINE VIEIRA DE CARVALHO
A Arqueologia é uma disciplina científica
antiga, das primeiras, constituída no início do século XIX,
no quadro da constituição da moderna universidade surgida
do modelo de von Humboldt. Em meio à busca do conhecimento
objetivo e comprovável, a ciência almejava ao descobrimento
do funcionamento e transformação do mundo e a Arqueologia,
como estudo das coisas, da matéria, constituiu, desde cedo,
um dos pilares dessa nova busca pela verdade. Já em seus inícios,
os vestígios arqueológicos permitiram que se tivesse acesso
a informações únicas e que davam um quadro do passado humano
muito mais profundo, tanto no tempo como no seu espectro de
atividades. Com as escavações de Pompéia (destruída em 79
d.C.), na Itália, foi possível conhecer a pintura antiga,
as padarias, mas também os jardins e fontes, assim como os
objetos infindáveis da vida cotidiana que serviam para comer,
beber e muito mais. Nas florestas tropicais americanas, surgiam
pirâmides que atestavam uma riqueza da vida indígena no antigo
território maia que nunca suspeitaríamos. Mais do que isso,
a antiguidade do ser humano tornava-se muito maior. Charles
Darwin, ao publicar sua obra A Origem das Espécies (1859)
e causar uma verdadeira revolução na compreensão do passado
e ultrapassar a barreira da criação do mundo há poucos milhares
de anos, não o poderia ter feito sem as primeiras descobertas
arqueológicas, tanto de fósseis de primatas, como de outros
vestígios muito antigos.
Ao mesmo
tempo em que contribuía de forma notável para o conhecimento
humano, a Arqueologia se constituía como parte do poder das
grandes potências imperiais em sua conquista material e espiritual
da periferia colonizada. A expedição de Napoleão ao Egito
(1798-1801) abriu as portas para o deciframento dos hieróglifos
e para a conquista do Oriente. Não por acaso, os grandes museus
do Louvre, em Paris, e Britânico, em Londres, com suas imensas
coleções arqueológicas de todo o mundo, representaram e, em
certa medida, ainda o fazem, a pretensão de domínio simbólico
do mundo, por meio de acervos arqueológicos pré-históricos,
egípcios, mesopotâmicos, gregos, romanos, entre outros. A
disciplina arqueológica era, portanto, parte do aparato colonizador,
tanto nas metrópoles – pois era apanágio das elites, um ofício
militar – como na periferia colonizada.
Isso
tudo mudou no século XX e, em particular, a partir do final
da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a eclosão de movimentos
sociais que desmontaram a ordem hierárquica tradicional. As
mulheres, que não tinham direito a voto nem acessavam, na
maioria dos casos, o ensino superior, passaram a reivindicar
seus direitos, como o fizeram diversos grupos sociais, étnicos,
religiosos e etários, com a gradativa implosão do modelo de
sociedade homogênea, excludente e baseada na hierarquia e
na ordem. A Arqueologia passou a incorporar essa preocupação
com a diversidade, com crescente participação feminina, de
pessoas de diversos grupos étnicos, sociais, religiosos e
políticos. A criação do Congresso Mundial de Arqueologia,
em 1986, marcou uma mudança decisiva na disciplina, com a
representação de indígenas e de estudiosos de todos os continentes,
sem distinções hierárquicas, o que revolucionou a disciplina
nas últimas décadas e a aproximou, de forma decisiva, da sociedade,
em sua variedade.
No
Brasil, a trajetória da Arqueologia foi marcada por ainda
mais profundas contradições. Surgida como prática nobiliárquica
na corte imperial do Rio de Janeiro, sofreria com o desprestígio
da cultura indígena nas primeiras décadas do século XX e com
a pregação aberta do extermínio dos índios, como foi o caso
de Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista de 1895
a 1916. Isso só começaria a mudar com a atuação do intelectual,
jornalista e político Paulo Duarte (1899-1984), um dos fundadores
da Universidade de São Paulo, combatente da ditadura do Estado
Novo (1937-1945) e por isso exilado. Quando do seu retorno
ao Brasil, após a queda de Vargas (1945), Duarte, imbuído
do humanismo de inspiração francesa e norte-americana, deu
início à Arqueologia científica e universitária brasileira.
Fundou a Comissão de Pré-História, depois Instituto de Pré-História,
preocupado com a cultura do homem americano. Trouxe os primeiros
arqueólogos para o Brasil, ainda na década de 1950 e conseguiu
aprovar no congresso nacional a primeira e ainda única lei
de proteção ao patrimônio arqueológico, em 1961. Paulo Duarte
marcou essa feição tanto acadêmica como social da disciplina,
até ser cassado em 1969, como professor da USP. Após sua morte,
em 1984, seu acervo documental foi doado à Unicamp e encontra-se,
atualmente, no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (IEL).
Ao término
do poder militar (1964-1985), a Arqueologia pôde liberar-se
das amarras impostas pelo jugo ditatorial e florescer, sob
os ventos propícios da liberdade. Passou a inserir-se no âmbito
internacional e a preocupar-se com sua relevância tanto científica
como social. A Unicamp, universidade que acolhera o acervo
de Paulo Duarte e que se destacara, no decorrer das décadas,
por sua preocupação com ambos os aspectos – excelência acadêmica
reconhecida internacionalmente e relevância social – tem se
empenhado no desenvolvimento da Arqueologia ligada às comunidades,
à sociedade em sua rica diversidade étnica, social e cultural.
A Unicamp associou-se a Niède Guidon, antiga aluna de Paulo
Duarte exilada em Paris no ápice da repressão ditatorial,
no apoio à Arqueologia social desenvolvida na Serra da Capivara,
à época da gestão do professor Carlos Vogt (1990-1994) e tem
desenvolvido diversos projetos centrados não apenas na inserção
da Arqueologia brasileira no âmbito internacional, mas em
especial no que se refere aos aspectos de inclusão social
e políticas públicas da disciplina. O acervo documental de
Paulo Duarte tem sido objeto de um estudo sistemático, com
apoio do Faepex/Unicamp, da Fapesp e do CNPq, com a participação
não somente de alunos de graduação da universidade como de
estudantes do ensino médio, parte do programa PIC Jr. Para
além do treinamento técnico dos jovens, o projeto permite
que se possa ter acesso à luta pela preservação patrimonial
e pelo respeito à diversidade humana. Os resultados têm sido
notáveis, com destaque para a inclusão social de alunos de
escolas públicas que, iniciados à ciência e com um tema tão
socialmente significativo, sentem-se incentivados a continuar
os estudos e até mesmo o conseguem fazer nas melhores universidades
do país.
Esses
êxitos contituíram a base para a criação e desenvolvimento
do Laboratório de Arqueologia Pública – Paulo Duarte, pioneiro
no Brasil. O termo Arqueologia Pública, surgido no mundo de
idioma inglês, refere-se a tudo que se relaciona ao público
(e, portanto, não se restringe à esfera do estado): interação
com comunidades indígenas, de bairro, crianças, divulgação
científica, mídia e muito mais. O LAP tem atuado em ações
como a criação do Projeto Patrimônio Indígena do Xingu, premiado
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) em 2008, quando, pela primeira vez no Brasil, o acervo
indígena passou a ser gerido pelos próprios índios (como se
tem feito em outras partes do mundo). O LAP tem participado
de discussões internacionais, assim como tem contribuído para
a definição dos próprios rumos da disciplina arqueológica
mundial, em geral, e, em especial como prática ligada à sociedade.
Mas,
por que isso? Isto não resulta apenas ou tão somente do empenho
dos estudiosos da Universidade, ainda que isso não possa nem
deva ser minimizado. Quando nossos alunos de graduação ou
de pós participam de projetos internacionais, apresentam papers
e posters, e mesmo publicações em revistas internacionais
arbitradas, ganham bolsas brasileiras e estrangeiras da maior
seletividade, isso tudo deve ser devidamente valorizado. Mas,
isso tudo não seria possível sem um empenho institucional
da Universidade em duas direções: a excelência acadêmica,
reconhecida por critérios universais e, portanto, internacionais,
e sua preocupação com a inclusão social e com a valorização
do respeito à diversidade. Ao adotarmos no nosso laboratório
o nome de Paulo Duarte, cuja expulsão da USP levou ao pedido
de aposentadoria solidária de outro humanista, o historiador
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) – cujo acervo, não por
acaso, também veio para a Unicamp – mostramos a coerência
da Arqueologia desenvolvida na Unicamp: coerência com o projeto
acadêmico da Universidade, coerência com a trajetória da disciplina
no âmbito mundial. Por fim, mas não menos importante, cabe
lembrar que, como qualquer ciência, a Arqueologia deve fazer
sentido para aqueles que não são estudiosos, como instrumento
para melhor compreender o mundo e criticá-lo: como dizia Sócrates
(469-399 a.C.), “uma vida sem crítica não vale ser vivida”
(Platão, Apologia, 37e-38ª). Como o sabiam Paulo Duarte e
Sérgio Buarque de Holanda.
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Pedro Paulo A. Funari, coordenador
do Centro de Estudos Avançados da Unicamp, foi secretário
do Congresso Mundial de Arqueologia.
Aline Vieira de Carvalho, pesquisadora do
Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam), é coordenadora
do Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp.
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