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Como enfrentar situações de risco?
Tese analisa como o problema da
contaminação
por chumbo alcança a opinião pública
Situações
de risco em áreas contaminadas envolvem locais e indivíduos
expostos a metais pesados, substâncias inorgânicas, hidrocarbonetos
aromáticos voláteis, etanos clorados, entre outros contaminantes,
e são caracterizadas, em geral, pelas dificuldades, desafios
e necessidades pertinentes ao enfrentamento e gerenciamento
dos potenciais riscos e perigos.
O Conselho Nacional de Meio
Ambiente (Conama) caracteriza a existência de contaminação
quando há presença de substâncias químicas no ar, na água
ou no solo decorrentes de atividades antrópicas em concentrações
que restrinjam a utilização desses recursos atual ou futuramente
com base em avaliação de risco à saúde humana assim como aos
bens a proteger.
Em tese de doutorado, apresentada
ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam), do Instituto
da Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), a jornalista Gabriela
Marques Di Giulio buscou identificar, compreender e analisar
como o problema da contaminação por chumbo alcançou a opinião
pública, foi percebido, comunicado e gerenciado em três experiências
estudadas: Santo Amaro da Purificação (BA), Bauru (SP) e
La Teja (Montevidéu, Uruguai).
O trabalho, interdisciplinar,
foi orientado pelo professor Bernardino Ribeiro de Figueiredo
do Instituto de Geociências (IG), coorientado pela professora
Lucia da Costa Ferreira, do Nepam, ambos da Unicamp, supervisionado
pelo professor Phil Macnaghten no estágio de doutorado sanduíche
realizado em cooperação com o Institute of Hazard, Risk and
Resiliense (Durham University), na Inglaterra. O trabalho
foi financiado pela Fapesp e Capes.
A pesquisa se propõe a contribuir
para as fundamentações teóricas em que se apóiam a comunicação
e a governança do risco por meio da análise dos três casos,
enfocando a ação dos diferentes grupos sociais envolvidos
na construção social do risco, com o objetivo de subsidiar
a regulamentação de práticas institucionais que assegurem
a participação pública no enfrentamento e gerenciamento de
situações de risco para o ambiente e a saúde pública. A pesquisadora
parte da proposta de uma abordagem integrada, envolvendo todos
os atores, para lidar com os riscos em áreas contaminadas.
Entendendo o risco como inegavelmente real e também como uma
construção social, o trabalho se apóia na discussão da perspectiva
sociológica, abordagem da amplificação social do risco, comunicação
de risco participativa e governança do risco, entendida esta
como o processo de enfrentamento decisório aberto e coletivo.
Na
perspectiva objetivista/realista, adotada por exemplo nas
avaliações técnicas o risco é quantificado com base na probabilidade
estatística. “O que se procura mostrar na tese é que o risco
é real, possível de ser medido a partir de técnicas analíticas,
mas é construído e percebido socialmente, quando as pessoas
se dão conta de que estão numa potencial situação de risco,
quando o experimentam no dia a dia. A forma como o risco vai
sendo construído, percebido, mediado, legitimado influenciará
todo processo de enfrentamento, de motivação, de mobilização”,
diz.
Para ela, as estratégias de
gerenciamento do risco, baseadas fundamentalmente no conhecimento
científico, não têm se mostrado eficazes. Essas estratégias,
em geral, não consideram como racional e legítimo o conhecimento
do público afetado; subestimam os contextos sociais, políticos,
econômicos e culturais nos quais os riscos são produzidos,
compreendidos e negociados; não levam em conta como os indivíduos
experimentam (e se experimentam) os riscos e os fatores sociais
e culturais que influenciam suas percepções. “Olhando mais
a fundo essas situações de risco, a gente percebe que há uma
série de problemas relacionados às controvérsias, incertezas
e ambiguidades, tanto no que concerne aos efeitos da exposição
às substâncias contaminantes na saúde humana, quanto à eficácia
das ações de gerenciamento de risco. A relação de causa e
efeito, por exemplo, é difícil de ser estabelecida, mesmo
porque certos sintomas associados à exposição ao chumbo podem
ter outras causas que mesmo os técnicos não conseguem discernir”.
Acrescente-se a isso o fato
de o público afetado colocar em cheque a confiança nas autoridades
porque parte da idéia de que se vive em uma área contaminada
é porque houve falhas do sistema governamental ou do perito
que permitiu que aquelas atividades poluidoras fossem realizadas.
Fica muito difícil os envolvidos confiarem nas informações
que lhe são passadas. Além de tudo eles se sentem cansados
de constituírem objetos de estudo e adquirem a percepção de
que o problema que os envolvem motiva teses, dissertações,
mas não leva a soluções. Quando a questão ganha a atenção
da mídia, os prejuízos se revelam maiores que os benefícios,
pois essas populações passam a viver sob o estigma criado
em torna delas e do local onde vivem.
A questão, segundo a autora,
exige um processo decisório participativo e é isso que se
entende como governança do risco. Ou seja, a criação da possibilidade
de que os diferentes grupos sociais envolvidos debatam juntos
para dimensionar a magnitude do problema e encontrar as formas
mais efetivas de gerenciá-lo. Trata-se de um modelo que começa
a ser adotado em países desenvolvidos e que parte da idéia
de que desde o início de um estudo de avaliação de risco é
preciso envolver a comunidade afetada. Ela deve ser encarada
como participante da pesquisa e não um objeto estudado. É
o que a tese defende na expectativa de influenciar o processo
decisório.
O modelo considera a prática
de uma comunicação de risco participativa fundamental. Desde
1990, mas principalmente a partir de 2000, informa a autora,
defende-se que a comunicação de risco deve ir muito além do
processo de persuasão, da transferência de conhecimento. Ela
deve ser promovida através de um diálogo entre os que avaliam
os riscos e aqueles que os vivenciam de fato. Ela observou
que no Brasil as estratégias de comunicação de risco ainda,
em geral, são motivadas pelo modelo do déficit de conhecimento,
pela concepção de que é preciso transferir conhecimento, informação
e persuadir o público. Considera que isso não funciona por
uma série de razões, mas sobretudo pelas próprias percepções
de risco que as pessoas têm e que são distintas e pela falta
de confiança em relação às autoridades, porque muitas vezes
transcorrem anos e poucas soluções são adotadas. Ela defende
na tese que um plano de comunicação de risco deve considerar
que conhecimento as comunidades detém, suas condições sociais,
econômicas, culturais para a partir daí propor e estabelecer
estratégias eficazes para a organização das reuniões e o intercâmbio
de informações e conhecimentos. Sempre dentro da perspectiva
de que não é apenas o conhecimento científico que deve ser
levado às comunidades, mas é preciso discutir com elas as
implicações, os efeitos, as possibilidades de remediação e
o que deve ser feito, considerando o conhecimento que as comunidades
detêm sobre o local em que vivem.
A contaminação
Gabriela
esclarece que a origem das situações de risco estudada está
diretamente atrelada à exploração de recursos naturais e à
expansão industrial e agrária, que aconteceu dentro de uma
lógica desenvolvimentista em que elevados riscos ambientais,
tecnológicos e à saúde foram aceitos em troca do desenvolvimento
econômico e empresarial. Os efeitos da exposição no ambiente
e na saúde humana começaram a ser desvendados pela comunidade
científica principalmente nas últimas décadas e têm trazido
à tona a complexidade do problema.
A contaminação estudada decorre
do chumbo, metal pesado usado na forma de lâminas ou canos
nas indústrias químicas e de construção, em material de revestimento
na indústria automotiva, placas de baterias elétricas e acumuladores,
na manufatura da borracha, tintas, esmaltes e vidros.
Um dos maiores problemas causados
pelo chumbo está relacionado à sua ação sobre o sistema nervoso
central. As crianças, com o organismo em formação e maior
capacidade de absorção do que os adultos são as mais afetadas.
A exposição crônica a níveis não tão elevados pode levar à
ocorrência de sinais e sintomas de dano neurológico em crianças,
como déficit de inteligência e distúrbios de aprendizado.
A pesquisa
O estudo utilizou dois métodos distintos. A primeira parte
constou de uma pesquisa documental através da análise de notícias
referentes aos três casos publicadas em jornais. Nessa fase
a idéia foi a de mapear os atores mencionados e entender que
fatores motivaram a cobertura da mídia, mesmo porque em determinados
momentos o assunto desaparece do noticiário para depois retornar.
A segunda parte constou de
uma pesquisa empírica. Gabriela visitou os locais contaminados
e entrevistou diferentes atores sociais: representantes da
comunidade, autoridades municipais, estaduais e federais,
gestores, pesquisadores e jornalistas.
A autora considera ricas as
lições advindas da pesquisa. Diz que pode identificar como
as situações de risco estudadas se desenvolveram e quais suas
principais características, semelhanças e diferenças. O público
diretamente afetado é em geral formado por pessoas de condições
socioeconômicas mais precárias e por isso mais vulneráveis
aos efeitos da contaminação; se sente cansado de servir de
objeto de estudo; não confia ou confia pouco no sistema jurídico
e no governo; tem a consciência de que vive em uma área contaminada
por negligência dos governos; reclama da falta de acesso aos
resultados das pesquisas e quando os têm as conclusões são
divulgadas em uma linguagem muito acadêmica, difícil de ser
compreendida; sente-se à margem do processo decisório e quando
incluído tem participação muito limitada.
Gabriela menciona ainda que
os indivíduos constroem suas percepções de risco em meio à
falta de diálogo e de informações. Com o sentimento de que
nada acontece e nada vai mudar, estabelece-se um desencanto
e uma apatia muito grandes e a convicção de que o problema
do chumbo adquire contornos político-partidários, ou seja,
vem à tona quando interessa aos políticos conseguir votos,
mas sem consequências no delineamento de políticas públicas.
Em algumas situações se percebe
por parte dos envolvidos a construção do esquecimento e da
negação do problema, consequências da situação de estigma
que se instalou nas localidades e entre seus moradores e produziu
mudanças comportamentais naqueles indivíduos para os quais
os atributos negativos foram dirigidos. “Essa postura de negação
e de esquecimento constitui um sério limitador na promoção
de um processo participativo porque se as pessoas não querem
participar, falar sobre o problema, como é que serão envolvidas
no processo decisório?”, pergunta-se ela.
Outra constatação destacada
é a da importância da mídia no processo de divulgação, porque
as principais informações sobre riscos ambientais e tecnológicos
chegam às pessoas através dos meios de comunicação de massa.
Nesse particular ela trabalhou com a denominada Abordagem
da Amplificação Social do Risco, que considera que a percepção
de risco e, sobretudo, determinada pela forma como o risco
é comunicado através da mídia e de outras fontes.
Embora as autoridades tenham
consciência da importância da divulgação das situações de
risco para envolver o público, há ainda falta de conhecimento
sobre as estratégias a serem adotadas. Segundo ela, essa discussão
ainda não está muito presente na agenda política e cientifica.
A preocupação é recente. Em 2009, o Conselho Nacional de Meio
Ambiente lançou uma resolução sobre gerenciamento de áreas
contaminadas que aborda em um dos itens a importância das
estratégias de comunicação de risco e da participação dos
afetados no enfrentamento das situações de áreas contaminadas.
Ela enfatiza ainda que a análise
dos resultados obtidos permite pensar que o enfrentamento
dessas situações demanda desmonopolização do conhecimento
científico, integração dos diferentes saberes, empoderamento
dos diferentes grupos sociais na participação e construção
do discurso e do processo decisório participativo, incluindo
os interesses, perspectivas e valores das partes envolvidas,
principalmente do público diretamente afetado.
Publicação
Tese: “Comunicação
e governança do risco: exemplos de comunidades expostas à
contaminação por chumbo no Brasil e Uruguai”
Autora: Gabriela Marques Di Giulio
Orientador: professor Bernardino Ribeiro
de Figueiredo
Financiamento: Fapesp e Capes
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