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Aids nas entrelinhas
Caio Fernando Abreu foi o o primeiro
escritor a perceber, no Brasil, que a
doença poderia ser tratada pela via da literatura
O escritor Caio Fernando Abreu
foi um dos primeiros a perceber, no Brasil, que a Aids poderia
ser tratada pela via da literatura. O escritor desde logo
compreendeu que a então estigmatizada “praga gay” não marcaria
negativamente somente uma dada parcela da sociedade, mas poderia
afetar de forma importante a maneira como as pessoas se relacionavam.
As considerações são de Carlos André Ferreira, que apresentou
recentemente ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da
Unicamp a dissertação de mestrado Onde andará Dulce Veiga?
A representação da Aids e do mal-estar do sujeito na obra
de Caio Fernando Abreu, sob a orientação do professor
Márcio Seligmann-Silva. Ferreira contou com bolsa concedida
pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes), órgão do Ministério da Educação.
De acordo com o autor do trabalho,
assim que a Aids começou a ser noticiada pela mídia e que
algumas pessoas, no Brasil, foram contaminadas pelo HIV, Caio
Fernando Abreu deu uma guinada temática em seus livros. “Ele
sempre abordou em suas obras a inadequação do sujeito neste
mundo contemporâneo. Nas primeiras publicações, que datam
da década de 1970, ele já trabalhava assuntos como a solidão,
a homoafetividade – Caio era homossexual assumido – e a afetividade
em si. Ou seja, ele sempre foi um escritor intimista, que
trabalhava muito bem o lado psicológico das personagens. Estas,
não se encaixavam na vida e na sociedade, e estavam sempre
em busca do seu lugar. Com o advento da Aids, aí é que esses
sujeitos não teriam mesmo lugar. A doença passa, então, a
marcar a ficção de Caio de forma determinante”, explica Ferreira.
O pesquisador lembra que o
surgimento da doença se deu em um período importante da história
brasileira. Isso ocorreu depois da ditadura militar e em pleno
período de redemocratização. Também coincidiu, de certa forma,
com uma espécie de “ressaca” pós anos 1970. “A Aids funcionou
como uma pá de cal na busca desse lugar por parte de muitas
pessoas, elemento tão presente na obra de Caio”, reforça o
pesquisador. O primeiro livro de Caio Fernando Abreu em que
a doença aparece é Triângulo das Águas, publicado
originalmente em 1983. Nele, como na maioria dos volumes posteriores,
a síndrome é tratada “de forma silenciosa, nas entrelinhas”,
nas palavras do autor da dissertação.
Triângulo das Águas,
prossegue o pesquisador, é constituído por três novelas. Numa
delas, intitulada “Pela Noite”, Caio Fernando Abreu fala de
um encontro homossexual na noite de São Paulo. “Nesse livro,
a palavra Aids aparece de forma corriqueira na fala de um
dos personagens. E é dessa forma que a doença é tratada ao
longo da obra de Caio. No romance que estudei mais a fundo
para a dissertação, Onde andará Dulce Veiga?, a enfermidade
vai se construindo na relação entre narrador e personagem,
o mesmo acontecendo na relação tempo-espaço do livro. A Aids
é tratada em meio ao mal-estar social dos anos 1980, que foi
um período marcado pelas incertezas. Em dado momento, o narrador
de romance descreve os prédios e a cidade de São Paulo como
se ela própria estivesse doente”, detalha Ferreira.
O narrador, conforme o pesquisador,
percebe em si sinais da doença: “Ele conta que tem muito medo
de pegar gripe, de ficar doente. Está o tempo todo apalpando
o pescoço e a virilha, em busca daquilo que ele classifica
de ‘sinais malditos’. Ou seja, a Aids está presente, mas não
é nomeada diretamente”. Segundo Ferreira, o escritor teve
a confirmação de que era soropositivo somente em 1994, embora
sempre suspeitasse ter contraído o vírus. “Ele sempre teve
receio de fazer o exame. Nesse sentido, a obra dele tem um
aspecto autobiográfico. Em Onde andará Dulce Veiga?,
a única vez em que a palavra Aids aparece é na boca de uma
das personagens, chamada Márcia Felácio. Ela fala sobre os
sinais que traz no corpo e revela que um ex-namorado morreu
em decorrência da doença. O narrador tem os mesmos sinais
e fica apreensivo. O medo da Aids e, consequentemente, da
morte, é tratado pela via da ficção. O trato que Caio dá ao
medo e ao convívio com a doença é também a forma como ele
próprio se relacionava com a Aids”.
Ferreira observa que esse
caráter testemunhal não surge da forma como normalmente se
conhece. Caio Fernando Abreu somente admitiu ser portador
do vírus em 1994, ainda assim de maneira velada, em uma crônica
publicada no jornal O Estado de São Paulo,
do qual era colaborador, intitulada Carta para além dos
muros. “É quando ele revela que está no hospital, se
tratando. Ele não diz abertamente o que tem, mas informa ao
leitor a sua condição de doente”, diz o autor da dissertação.
No romance tomado para análise pelo pesquisador, Caio Fernando
Abreu faz uma homenagem ao cantor e compositor Cazuza, que
também morreu em decorrência de complicações advindas da Aids.
“No final do livro, o narrador encontra Dulce Veiga, que está
morando em uma comunidade daimista em Goiás. Ela dá para ele
o chá do Santo Daime e também um gatinho branco de nome Cazuza.
É mais um sinal da condição de soropositivo do autor que aparece
em sua obra”, enfatiza.
Ferreira conta que, ao iniciar
a pesquisa para a sua dissertação, tinha a intenção de focar
vários romances em que a Aids emergia do enredo. Sua disposição
era a de fazer uma espécie de comentário sobre essas obras.
“No entanto, meu orientador disse que talvez pudéssemos focar
o aspecto social da doença e tentar inserir a Aids no mal-estar
geral dos anos 1980. Decidi, então, deixar de lado a proposta
de fazer uma historiografia dos romances que falavam da Aids,
para focar esse aspecto social, além de tentar trabalhar também
a questão da relação espaço-tempo. A partir daí, fui buscar
sustentação teórica em diversos autores, como em Sigmund Freud,
e sua obra O mal-estar na Cultura, no trabalho
do professor Jaime Ginzburg, e também no meu orientador, que
trabalha muito o tema do testemunho. Foi graças a estes e
outros referenciais que pude investigar o romance de forma
mais aprofundada”, considera.
Publicação
Dissertação: “Onde andará Dulce Veiga? A
representação da Aids e do mal-estar do sujeito na obra de
Caio Fernando Abreu”
Autor: Carlos André Ferreira
Orientador: Márcio Seligmann-Silva
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL)
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