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Processo ‘limpa’ águas residuais
Ensaios feitos por docentes
e aluna dispensam uso de produtos químicos
A deterioração progressiva e crescente da água potável provocada
pela atividade industrial, pela expansão e desenvolvimento
agrícola e pelo aumento do esgoto doméstico decorrente do
adensamento populacional, constitui preocupação constante
e é tema recorrente nas sociedades modernas. A desinfecção
das águas e a eliminação de substâncias nocivas residuais
tornaram-se questões de saúde pública e têm implicações na
preservação dos ecossistemas.
Essa desinfecção é normalmente
feita com a utilização de produtos químicos. Este fato sugere
que os desenvolvimentos de processos para esse fim estejam
afetos aos químicos e engenheiros químicos. Por isso, causa
inicialmente estranheza que esse estudo esteja na agenda do
Laboratório de Hidráulica e Mecânica dos Fluidos da Faculdade
de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC), da Unicamp.
Foi a desinfecção das águas
residuais que efetivamente propôs o professor José Gilberto
Dalfré Filho, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura
e Urbanismo (FEC) da Unicamp, em colaboração com a professora
Ana Inés Borri Genovez em trabalho que tem também a participação
da aluna de iniciação científica Maiara Pereira Assis, graduanda
do curso superior de tecnologia em Saneamento Ambiental e
Controle Ambiental, da Faculdade de Tecnologia da Unicamp,
em Limeira.
A estranheza se desfaz com
a informação de que se trata de um processo físico de desinfecção
e não químico e que, portanto, não leva à formação de outros
compostos tóxicos como pode ocorrer nos tratamentos com cloro,
que originam organoclorados, criando mais problemas para o
meio ambiente.
Para realização do trabalho,
o pesquisador adaptou um equipamento tipo jato cavitante,
que consome menos energia quando comparado a outros que geram
cavitação. Segundo ele, os ensaios realizados em laboratório
permitem concluir que o jato cavitante é adequado para a desinfecção
de água e permite vislumbrar a possibilidade de sua utilização
em larga escala. Embora parte dos ensaios esteja em andamento,
os estudos se orientam na destruição de microorganismos e
na degradação de moléculas orgânicas, a exemplo das constituintes
dos corantes, descartados em efluentes industriais.
O início
O
professor Dalfré valoriza o caminhar pelo seu significado
e até por razões sentimentais. De início, lembra que o pai,
um tio e posteriormente o irmão, também cursaram engenharia
civil na Unicamp. Durante a graduação dedicou-se à iniciação
científica, já sob orientação da professora Ana, quando estudou
a erosão de superfícies submetidas à ação de mistura de água
e sólidos. Esse tipo de erosão ocorre, por exemplo, em vertedores
de barragens de concreto em que circulam as águas de rios
que carreiam sólidos. Diante da constatação de que a erosão
dessas superfícies era muito mais danosa quando provocada
pelo fenômeno da cavitação, dedicou-se no mestrado a simular
seus efeitos em laboratório.
Ainda com a mesma orientadora,
continuou o trabalho no doutorado, porque muitos detalhes
aguardavam esclarecimentos e parâmetros de ensaios precisavam
ser devidamente calibrados. “Nesta fase ampliei os estudos
e cheguei a mais detalhes sobre a natureza da cavitação, de
como simular a erosão e a determinar a resistência das superfícies.
A partir daí, me ocorreu a ideia de aproveitar as pressões
geradas na cavitação para romper e consequentemente destruir
microrganismos, como se estes recebessem uma pancada. Trata-se,
portanto, de um processo puramente mecânico. Depois do pós-doutorado,
mostrei a viabilidade do projeto à Fapesp, que se dispôs a
financiá-lo”, explicou.
O pesquisador faz questão
de enfatizar a natureza do trabalho desenvolvido, que serve
de exemplo de como uma pesquisa pode levar a outra. Lembra
que durante a graduação não vislumbrava a possibilidade que
veio a se desvendar: “Cursando uma disciplina, sou levado
à iniciação científica, que me desperta para outro processo.
Durante esse novo estudo, olho mais adiante e vejo uma utilidade
que vai além do que eu imaginara inicialmente e que poderia
trazer ganhos para a sociedade. O processo desenvolvido permite
eliminar no tratamento de águas o uso de substâncias químicas
que geram produtos que podem ser nocivos ao ambiente e às
pessoas”.
Jato cavitante
Dalfré conta que, durante
a pós-graduação, verificou que o equipamento tipo jato cavitante
poderia ser muito interessante por permitir simular a ação
da cavitação e a erosão em superfícies em um tempo bastante
curto, se fossem utilizadas altas velocidades de jatos líquidos
e altas pressões. Ele explica que a cavitação corresponde
à formação de bolhas em um líquido, a exemplo do que ocorre
durante a ebulição que se inicia quando a pressão de vapor
do líquido se iguala com a pressão atmosférica. A formação
de cavidades ou bolhas dentro do líquido – a cavitação – verifica-se
quando, à temperatura constante e por ação de um mecanismo
determinado, ocorre brusca queda da pressão no interior de
um líquido de forma a igualar-se à pressão de vapor.
Mas o importante no processo,
para o pesquisador, é o rompimento dessas bolhas quando, mais
adiante, as pressões se normalizam. Na região da implosão
das bolhas, as pressões geradas são de grande magnitude, ultrapassando
estimados 70 giga Pascal. Pela recorrência e intensidade do
fenômeno, as implosões provocam erosão nas superfícies próximas.
É o que acontece em estruturas hidráulicas. Durante o mestrado
e o doutorado, ele se preocupou em verificar a resistência
de diferentes superfícies à ação da cavitação. Daí surgiu
a necessidade de desenvolver um equipamento que simulasse
a cavitação e permitisse medir a resistência de materiais
frente a essa ação.
Durante
esses estudos, ele foi levado a se perguntar: por que não
utilizar as altas pressões geradas na implosão das bolhas
na desinfecção de águas, destruindo os microorganismos. Com
base na aparelhagem, ele explica que no reservatório de desinfecção
formam-se bolhas quando da queda da pressão de vapor do líquido.
Com um aparelho que tem capacidade de produzir pressões de
mais de mil metros de coluna d’água, a água pressurizada é
impulsionada por meio de uma tubulação que na saída tem um
bocal com um orifício estreito. Ao passar pelo bocal, a velocidade
do líquido injetado aumenta para mais de cem metros por segundo
e a pressão se reduz muito. Com o aumento da velocidade e
a redução da pressão a magnitudes adequadas, surge a cavitação.
Dalfré esclarece ainda que
dentro do recipiente existe uma região de altas tensões de
contato, de alto cisalhamento, ou seja, de grande atrito.
É aquela em que a água parada que se encontra no recipiente
entra em contato com a água que sai do bocal a mais de cem
metros por segundo. Nessa região de contato são formados vórtices,
que são verdadeiros redemoinhos. Quando as bolhas existentes
no líquido são capturadas nestes vórtices, aumentam de tamanho
por causa da baixa pressão que encontram, destruindo os redemoinhos
e, em seguida, implodem. É quando se verificam dois fenômenos
recorrentes: geração de pressões estimadas em mais de 70 giga
Pascal, suficientes para danificar quaisquer materiais, e
a formação de micro jatos, com velocidades maiores do que
100 metros por segundo. “Uma bactéria que estiver nessa região
de ocorrência vai ser morta, a pancadas”, diz ele, com humor.
Esse efeito pode ser utilizado
para destruir bactérias e outros organismos patogênicos e
degradar moléculas, que dão origem a outras menores. Maiara
lembra que nas simulações estudaram a desinfecção de microorganismo
utilizando bactérias Escherichia coli, por constituírem organismos
mais simples que os protozoários. A professora Ana afirma
que para a degradação de compostos orgânicos o estudo mostra-se
muito mais complexo e exige uma abordagem multidisciplinar
em que atuem químicos, biólogos, sanitaristas.
As pesquisas permitem calibrar
as condições de máxima eficiência, ou seja, a definição dos
parâmetros em que se consegue o menor tempo de desinfecção
em termos de pressão aplicada e velocidade do jato resultante,
levando em conta a contaminação por bactérias Echerichia coli.
Os ensaios microbiológicos para verificar o poder do fenômeno
na desinfecção estão sendo desenvolvidos com o auxílio da
equipe do Laboratório de Saneamento da FEC. Na sequência serão
submetidos a ensaio outros tipos de microorganismos. No trabalho
com moléculas encontra-se em andamento a simulação com o azul
de metileno.
Dalfré esclarece que nas pesquisas
de laboratório são utilizados cerca de 40 litros de água.
O emprego do processo em efluentes ou estações de tratamento
de águas exigirá estudo para determinar as condições de viabilidade.
Maiara destaca que, na indústria, o tratamento de resíduos
é feito nas próprias etapas em que são gerados e com isso
evita-se seu acúmulo no efluente final. O processo em questão
pode ser utilizado tanto nas várias etapas de uma produção
industrial como no descarte final.
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