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Os estigmas (e a ‘ruptura biográfica’) que
marcam as pacientes com câncer de mama
Socióloga acompanha portadoras
da doença em hospital público de Brasília
Estudo
de doutorado desenvolvido na Faculdade de Ciências Médicas
(FCM) com mulheres portadoras do câncer de mama mostrou que
o estigma da doença continua marcando com sofrimento a vida
delas, pois as pessoas vão logo associando-o com a morte.
A autora da investigação, Maria Inez Montagner, apontou que
já é hora de encarar a doença em seus aspectos social e cultural,
não somente biomédico. Na área de Biomedicina, já existem
muitas pesquisas e drogas sendo produzidas e elas têm desempenhado
o seu importante papel, diz. “Mas é preciso buscar o corpo
saudável com o menor impacto possível ao paciente. Isso porque,
nos moldes atuais de intervenção, muitas mulheres se sentem
mutiladas. E cura para elas tem outro significado”, defende.
“Temos que começar a avaliá-las
no seu grupo de pertencimento e tentar fazer com que isso
se transforme em leis e em melhores condições para elas serem
levadas ao centro de saúde mais rapidamente.”
Para
chegar a essas conclusões, a socióloga realizou um trabalho
de campo no Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF), o
segundo maior hospital em número de leitos do Centro-Oeste
do país. Sua finalidade foi ouvir as pacientes que chegam
ao local com uma suspeita: será que o que eu tenho é câncer?
Maria Inez procurou compreender o sofrimento de 19 portadoras
de câncer de mama que não tinham plano de saúde e que dependiam
unicamente do Sistema Único de Saúde (SUS) para fazer o diagnóstico,
os exames e o tratamento. A doutoranda argumenta que as mulheres
não vão chegar com rapidez ao centro de saúde enquanto elas
souberem que demora o atendimento, que esse tratamento é doloroso
e que elas vão morrer. “Chega disso. É necessário dizer-lhes
que somente irão morrer se não tratarem o câncer.”
Outros
objetivos também foram vislumbrados pela pesquisadora, como
a relação das mulheres com o lado profissional porque, uma
vez retirados os linfonodos, elas dificilmente podem fazer
trabalhos braçais. E, em sua grande maioria, as entrevistadas
desempenhavam este tipo de trabalho. Por conseguinte, elas
perdiam o emprego. A pesquisa também avaliou a relação dessas
mulheres com o sistema de saúde: como elas viam esse sistema
como um todo?, como viam a organização? e como percebiam sua
relação com os médicos? A autora explica que não tentou estudar
os médicos e as pacientes, mas a experiência delas com o médico
e a sua fala. “Este é um mundo novo principalmente para as
pacientes pouco letradas, que desconhecem vocábulos do jargão
médico e determinados procedimentos, os quais nem de longe
suspeitam o que representam.”
Maria
Inez conta que iniciou sua abordagem às pacientes na sala
de espera do HBDF, que fica localizado praticamente no centro
de Brasília, para saber quais eram os seus problemas e quais
as soluções e estratégias encontradas para resolvê-los. Para
isso, a socióloga dividiu o trabalho em três partes. Ela salientou
que a primeira abrangeu a etapa do toque até o diagnóstico,
a segunda envolveu o tratamento e, a terceira, a remissão.
Nessa primeira parte, as pacientes chegavam ao hospital sem
ter a certeza do câncer, da gravidade da sua doença e da proposta
de tratamento. “Eu sentava na sala de espera, as via entrar
e perguntava o que elas iam fazer lá dentro, em especial porque
eu percebi, depois de um tempo de pesquisa, que a palavra
câncer nem sempre é tão natural de ser pronunciada nos primeiros
momentos”, relata a socióloga.
Quando
elas saíam da sala de consulta, as pacientes retornavam dizendo
que o médico tinha confirmado que o problema era o ‘danado’,
‘ele’, ‘a coisa’, ‘o mal’. “Raramente nos primeiros encontros
elas verbalizavam que estavam com câncer, mesmo porque muitas
delas não o encaravam como doença. Uma das entrevistadas falou:
‘eu não sou doente; olhe os meus exames; eu só tenho câncer’”.
Assim,
nos primeiros atendimentos, elas tinham dificuldade até de
entender o que estava havendo. Porém sabiam que, num segundo
momento, essa incerteza se transformaria em certeza e em ações.
Entendiam que teriam que fazer o tratamento e que ele era
100% medicalizado. Compreendiam que o chazinho ensinado pelas
mães pararia por ali. Começaria então o tratamento com todas
as dificuldades do SUS.
Alguns
casos iniciam pela quimioterapia, pelo fato de o tumor estar
excessivamente grande, para depois recorrer à cirurgia. Em
outros casos ocorre o inverso. Fato é que a pesquisadora comenta
que, no dia seguinte à cirurgia, estava com as pacientes.
“Eu as via acordar e via o sofrimento pela perda da mama.”
Nessa segunda fase – o momento do tratamento –, o verbo mais
empregado pelas mulheres era ‘perder’ (na fase anterior, a
palavra mais usada era ‘medo’). Elas perdiam o marido, o emprego,
os cabelos, as mamas, a movimentação dos braços e a feminilidade.
A reestruturação de suas vidas aconteceria num terceiro momento,
quando o tratamento propriamente dito terminaria e elas teriam
de voltar para as suas vidas cotidianas.
A despeito
disso, elas não recebem alta de pronto, porém uma certeza
é muito nítida: a parte mais drástica já foi feita. É a “ruptura
biográfica”, conceito utilizado por Maria Inez, auxiliada
pelo pesquisador inglês Michael Bury. É quando o diagnóstico
de uma doença grave instaura uma ruptura na trajetória de
vida da paciente, a partir da qual as suas expectativas são
ressignificadas.
“Passei
a compreender que essa é uma mudança na identidade da mulher,
uma vez que o que a define como tal é a mama. É assim que
ela se vê: ‘eu sou mulher porque tenho seios’”, realça a socióloga.
E de repente se veem sem eles, sem cabelos e com uma cor horrível
pós-quimioterapia. As religiosas então têm um problema maior.
É que algumas igrejas cultuam o cabelo como se fosse um véu.
E no entanto elas os perdem. “É como se negassem a fé.”
A fase
de reestruturação da vida em geral coincide com a fase da
remissão da doença, que deve durar cerca de cinco anos, quando
elas voltarão algumas vezes ao hospital. Ainda morrem de medo
de ter uma metástase ou acham que o câncer pode ir para outra
mama, mas compreendem que a vida deverá continuar.
Abordagem
Maria Inez estudou mulheres com câncer de mama nos mais diferentes
estágios da doença. A idade das entrevistadas variou entre
menos de 40 e mais de 70. No estudo, ela não fala as suas
idades porque “existe uma tendência de achar que uma mulher
de 65 anos sofre um menor impacto na feminilidade ao perder
uma mama do que uma mulher de 30 anos. Depende da mulher de
60”, opina. Há aquelas que já estão com a vida ganha e começam
a namorar e a trabalhar, enquanto as de 30 anos estão tão
preocupadas em criar os filhos que a mama não é o maior problema
delas.
A pesquisadora, mesmo não
tendo focado sua atenção aos aspectos epidemiológicos, notou
que as pacientes em geral não procuram os médicos de imediato.
É que quando elas se tocam e sentem o caroço (as mulheres
evitam o termo “tumor”) vão relacionar a sua história com
situações do passado, quando eram moças, quando ficaram menstruadas,
quando amamentaram. “Então, não vão dar importância a isso
nos primeiros meses, somente depois que o caroço crescer”,
recorda. Antes terão contatos com pessoas do seu grupo social
para saber o que pensam. Algumas recorrem aos sacerdotes ou
às benzedeiras antes do médico. Buscam articulações para garantir
consultas e exames.
Maria Inez pretendia fazer
avaliação do tempo de atendimento no centro de saúde pegando
o prontuário médico, para ver quando foi o primeiro atendimento
e quando ocorreram os exames prescritos. Este é um cálculo
que precisa ser feito, a seu ver. “Verifiquei que infelizmente
muitas delas antes de um ano após o toque não procuram o médico.”
Além disso, pagam médico particular para ter uma segunda opinião,
mamografias e cintilografias para agilizar o processo pois,
até serem atendidas, elas percebem que o caroço já cresceu.
Foi surpresa para a doutoranda
a culpa que essas mulheres sentiam por achar que tinham negligenciado
a saúde, bem como as estratégias para obter o atendimento.
“Elas choravam, mudavam de religião e acabavam formando uma
nova rede de amizades para conseguir o que queriam.” Outro
ponto ainda acentuado pela socióloga na pesquisa tem a ver
com a sala de espera. De acordo com a autora da tese, este
é um lugar de apoio, mas igualmente de desestímulo, onde diálogos
são travados repletos de sentimentos misturados.
Agora, a confiança que essas
mulheres tinham no médico, e não no sistema de saúde, também
era uma contradição. No fundo, elas sabiam que teriam um bom
atendimento. Por outro lado, conviviam com a dúvida se a rede
lhes daria o suporte necessário ao tratamento até o fim. O
mais cruel para Maria Inez foi que elas não acreditavam no
sistema como um direito e sim como um favor.
Na verdade, no HBDF, além
do serviço médico, as pacientes têm acesso a uma equipe multidisciplinar
e contam com o apoio de duas instituições sem fins lucrativos,
instaladas dentro do hospital, para dar-lhes suporte psicológico
e emocional, que são o Movimento de Apoio aos Pacientes com
Câncer (MAC), que atende todo tipo de câncer; e a Rede Feminina
de Combate ao Câncer, que atua somente com mulheres com câncer
de mama.
E elas de fato precisam de
muito apoio. O estigma do câncer é muito pesado para as mulheres.
As entrevistadas expressaram isso. “Quando perdem os cabelos,
elas são evitadas dentro do ônibus. Uma mulher disse-me uma
coisa brilhante: ‘elas não têm medo do câncer porque é câncer.
Têm medo porque câncer mata. Têm medo de tratar a morte, não
a vida’”, contextualiza a socióloga.
O tratamento do câncer, por
mais invasivo que seja, tem data de validade. A mulher sabe
que vai ficar meses no hospital. Só que a vida delas vai ficar
como depois disso? É um problema social e econômico seriíssimo
para as classes que não têm dinheiro. Uma mulher que trabalha
numa casa de família e que começa a faltar porque está com
câncer é demitida. Uma delas até comentou que nunca vai dar
moda usar lencinho na cabeça para quem tem câncer: “A gente
só usa para proteger a cabeça, porque se tem uma moda horrível
é a das mulheres de lenço na cabeça”.
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Publicação
Tese de doutorado: “Mulheres e câncer de mama: experiência
e biografia cindidas”
Autora: Maria Inez Montagner
Orientadora: Ana Maria Canesqui
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
Financiamento: Capes
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