A dança contemporânea e a
dramaturgia do (in)consciente
JEVERSON
BARBIERI
Considerada
por sua orientadora, professora Cássia Navas, como um dos
grandes talentos egressos do Instituto de Artes (IA) e com
carreira de destaque no exterior, a coreógrafa e intérprete
Juliana Martins Rodrigues de Moraes defendeu sua tese de
doutorado – que tratou da dança, seus discursos e a liberdade
de expressão – propondo novos paradigmas para a dança contemporânea.
“Sou uma artista que se esforça muito para não entrar no
que está sendo proposto como moda ou tendência”, afirmou.
Segundo ela, os últimos 20 anos apresentaram uma forte inclinação
para a dança conceitual e, apesar disso, nunca se sentiu
à vontade com a tendência.
O trabalho da intérprete
funciona na linha da dança teatro e situa-se no meio do
caminho entre o figurativo e o abstrato. Seus principais
interesses concentram-se em trabalhar elementos corporais
que sejam relacionados ao comportamento, ou seja, à comunicação
não-verbal. São, muitas vezes, questões ligadas ao feminino
que se expandem para o espaço e dialogam com a instalação.
Moraes afirmou que possui uma ligação muito forte com as
artes visuais e com a construção de um vocabulário de movimentos
específicos para cada nova peça. “Alguns coreógrafos criam
vocabulários que se repetem em todos os espetáculos, mas
eu prefiro criar de maneira que cada espetáculo tenha o
seu específico”, alegou.
Sobre suas influências,
a autora citou que a primeira foi Pina Bausch. Falecida
em junho de 2009, a coreógrafa alemã ainda é, na opinião
de Moraes, o maior nome da dança mundial. Foi a partir do
trabalho de Bausch que a pesquisadora enxergou ser possível
trabalhar com questões pessoais, emocionais e narrativas,
ao mesmo tempo. Ou seja, como a dança veicula uma narrativa
própria sem emprestar elementos diretamente do teatro ou
da literatura.
Outra referência que a influenciou
de maneira decisiva foi Rudolf Laban. Na visão da coreógrafa,
ele está para a dança assim como o russo Wassily Kandinsky
está para a pintura. “Ele rompeu com vários paradigmas,
senão quase todos, que balizam o balé clássico. Ele disse
que todo movimento era interessante, e não apenas os movimentos
nobres do balé”, acrescentou.
Logo após a conclusão da
graduação na Unicamp, Moraes rumou para Londres, onde, por
dois anos, estudou no Centro Laban. A sensação descrita
por ela foi de que o curso aqui era bastante forte em termos
de técnica, muito aberto em termos de composição coreográfica,
mas não tão exigente em conceitos teóricos. “Você só participa
de aulas com pessoas no mesmo nível técnico. Isso promove
um desenvolvimento corporal técnico muito grande, além de
competição acirrada”, disse.
Moraes revelou ainda que
a parte teórica foi um “presente” para ela, uma vez que
sempre teve uma vontade muito grande de estudar, mas não
sabia quais linhas teóricas estavam disponíveis. No Laban,
pesquisou muito o sistema de análise de movimentos, o qual
forneceu ferramentas de criação de um vocabulário próprio
sobre dança, de diálogo com os bailarinos, para não ter
que trabalhar no nível da cópia.
Sobre metodologia adotada
na criação de suas peças, a pesquisadora esclareceu que,
tratando-se de um processo artístico, essa é uma ideia que
engessa. Ela prefere pessoas que falam sobre caminhos, processos,
procedimentos, percursos. “Cada processo seu é um percurso
diferente, um caminho que se abre de maneira distinta e
isso depende muito das pessoas com quem você irá trabalhar.
Não consigo descrever metodologicamente em etapas o que
eu faço, mas existem algumas estratégias que tentam fazer
com que, ao menos, em uma direção o caminho esteja”, assegurou.
A coreógrafa revela que
todos os seus processos começam com um projeto, porque essa
é uma demanda do mercado. Para escrever o projeto é preciso
ter uma ideia, portanto ela pode surgir de um tema ou de
um procedimento coreográfico.
Especificamente sobre o
doutorado, a autora o classifica como híbrido, uma vez que
exercita a reflexão sobre a sua prática e, também, uma reflexão
teórica. Moares sentiu que precisava, como coreógrafa, mergulhar
em questões teóricas que a incomodavam. Apesar de ter estudado
Laban e considerar fundamental saber análise de movimento
para construir suas coreografias, a questão da harmonia
no movimento proposta por ele – a existência de movimentos
harmônicos e desarmônicos – sempre a inquietou. “Nunca soube
exatamente porque isso me incomodava e então foi um dos
temas que me fez buscar uma pesquisa teórica. Dediquei um
dos capítulos para sanar esse meu desconforto”, revelou.
E isso foi terrível porque
ela descobriu a ligação de Laban com o nazismo e, consequentemente,
a ideia de que a harmonia estava ligada a ideal do corpo
do novo homem. “Isso foi frustrante”. A descoberta veio
através da leitura da obra Hitler’s Dancers: German Modern
Dance and the Third Reich, escrita pela bailarina Lilian
Karina e pela escritora Marion Kant. Nesse livro, Carina
pesquisou documentos oficiais na antiga Alemanha Oriental,
procurando encontrar amigos bailarinos que haviam sumido.
A partir desse momento é que encontram registros sobre Laban,
que fugiu em 1937 para a Inglaterra e passou para a história
como um refugiado do regime alemão.
No entanto, a obra revela
que ele reconstruiu sua história porque, até então, era
um aliado de Hitler. A coreógrafa brasileira afirmou que
toda essa descoberta criou um alvoroço no universo da dança
e ela finalmente entendeu quais são as bases e o que na
verdade está no fundo de sua teoria que sempre a incomodou.
“Agora é possível seguir em frente, não excluindo o que
adquiri, mas pelo menos trabalhando de forma apropriada,
conhecendo as falhas”, reconheceu.
O segundo capítulo da tese
também é um acerto de contas, só que dessa vez com um dos
maiores teóricos da dança contemporânea – André Lepecki
–, responsável por balizar a dança conceitual, que é o estilo
de dança que se colocou para Moraes como uma grande muralha.
De acordo com a pesquisadora, Lepecki valoriza muito a pausa
em detrimento do movimento. “Basicamente, ele demoniza o
movimento ao dizer que este está ligado à subjetividade
moderna. Então, nós, como sujeitos modernos, nos condicionamos
a estar sempre em movimento, criando, produzindo e destruindo
a natureza e os outros em razão disso”, ressaltou. A busca
por outros teóricos, inclusive Laban, a ajudou muito no
sentido de mostrar que não é qualquer movimento que faz
isso, mas sim aquele morto, “de agitação constante sem reflexão”.
O terceiro capítulo foi
escrito com o objetivo de mostrar como ela constrói suas
peças, que ela mesmo define como “dramaturgia do in/consciente”.
É a ideia atual de que o inconsciente se manifesta topograficamente,
que ele cria uma paisagem através de estratégias quase coreográficas,
como repetições, deslocamentos, substituições e deslizes.
Nova abordagem
Sobre a situação da dança no Brasil, Moraes observou que
uma das propostas da sua pesquisa foi tentar fazer essa
reflexão, por isso escreveu na frente das páginas a parte
teórica e, no verso, um diário. “Você tem que escolher o
que vai ler primeiro no livro. O diário tem textos de várias
épocas e é uma reflexão muito pessoal a respeito do assunto”,
comentou.
Ela mencionou ainda que
a dança produzida na cidade de São Paulo tem uma particularidade,
que é um financiamento continuado por meio da Lei de Fomento
à Dança do município. Anualmente, são destinados entre R$
4 milhões e R$ 6 milhões para produções de dança contemporânea
que trabalham na linha de pesquisa, via editais. Para isso
é necessário escrever um projeto, propor um argumento coreográfico,
ter um orçamento e, se aprovado, poderá receber até R$ 250
mil por ano. Segundo ela, essa lei mudou radicalmente a
cena paulistana da dança. “Estou distanciada de Campinas.
Saí daqui em 1997 e voltei apenas para o doutorado. A impressão
que eu tenho é que a cidade está apenas engatinhando em
termos de financiamento para a dança. Em termos estéticos
e de criação tem muita gente boa por aqui, mas não se faz
arte com ar. Em nenhum lugar do mundo se faz arte sem financiamento
público ou privado. É preciso construir estratégias de fomento
porque senão o fosso ficará cada vez maior”, lamentou. Atualmente,
Moares compõe o corpo docente do Centro Universitário Belas
Artes de São Paulo (SP) e nos meses de janeiro é professora
da Scuola Teatro Dimitri, na Suíça.
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Publicação
Tese de doutorado: “Texto para prosa, dança e verso:
traços de discursos coreográficos”
Autora: Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Orientadora: Cássia Navas
Unidade: Instituto de Artes (IA)
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