MARIA
ALICE DA CRUZ
A joia foi o primeiro objeto associado
ao corpo criado sem a intenção de suprir uma necessidade
básica, mas sim de ornamentar e de atrair o olhar do outro.
A partir disso, ela pode criar uma relação entre seu criador,
seu dono e quem a observa. As relações que este objeto precioso
estabelece entre diversos atores de uma sociedade e a maneira
como é visto nortearam a tese da artista-joalheira e designer
Ana Paula de Campos, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp.
Nem o brilho nem o valor econômico e sequer o status restringem
a importância de uma joia. Segundo a autora, quando se inscrevem
no campo da arte, esses objetos ganham novas condições e
propósitos, saindo do território em que predominam a beleza,
o material nobre e o valor econômico para o lugar da reflexão
sobre outros sentidos vinculados tanto à noção de preciosidade
quanto das relações implicadas pelo contexto social. “Ao
invés da sedução imediata do material e do desejo instantâneo
de consumo, a joia provoca uma inquietação”, declara.
Objeto
milenar que já teve como suporte tanto o corpo de “celebridades”,
quanto de cidadãos comuns, a joia pode se inscrever no campo
do design, aquele modelado pelas diretrizes do mercado,
cujos códigos já são conhecidos, ou no território da arte,
no qual é possível refletir sua potência de deslocar ou
provocar novos pensamentos e promover a comunicação entre
vários atores sociais. “É mais fácil vender uma joia de
material precioso do que vender uma joia de papel de um
artista japonês. Porque, para comprar a peça em papel, a
pessoa teria de abandonar muitas informações sedimentadas
sobre o objeto joia e em seguida decodificar outras informações
totalmente novas”, acrescenta Ana, que tem experiência nos
dois territórios. Ela acrescenta que, na arte-joalheria,
o material é tomado, escolhido e trabalhado como recurso
poético, sendo tratado como elemento sobre o qual se assenta
a preciosidade da joia elaborada para além dos valores econômicos
instaurados.
O conteúdo abordado por Ana Paula
envolve a apresentação de um campo no qual a joia é produzida
como poética, contemplando questões do fazer artístico.
Para ela, ao trazer a discussão sobre a joia para o território
de sua produção como objeto artístico, é possível evidenciar
seu papel como meio capaz de questionar as relações estabelecidas
entre as dimensões individuais e coletivas na contemporaneidade.
“A ideia é buscar o contraponto à onipresença do discurso
contaminado pelas dinâmicas do consumo, aborgadens estéticas,
interesses do mercado e fluxos da moda”.
A pesquisadora enfatiza que a joia
como arte abre a possibilidade de desprendimento do objeto
das convenções formais de sua relação com o corpo, com suportes
materiais, com formas de uso, entre outras. Ela acrescenta
que quando os temas relacionados ao imaginário sobre a joia
– beleza, luxo, riqueza, sedução, amor, entre outros – são
abordados como matéria poética, é possível fazer surgir
novas significações desprendidas do apelo sedutor da materialidade
preciosa, dos significados empobrecidos do elogio à aparência,
da construção de uma imagem “glamourizada” de poder e status
e da convocação ao consumo.
Em sua opinião, a arte-joalheria busca
produzir um deslocamento no pensamento tradicionalmente
inscrito na joia e, sendo assim, torna-se importante vetor
de produção de subjetividades. A partir de conceitos extraídos
das ideias de Deleuze e Guattari, a pesquisa evidencia o
papel da joia enquanto agenciadora de relações do tipo motivo-suporte
e a potência da arte-joalheria enquanto máquina de guerra.
A tese de Ana Paula tem a função de
abrir essa discussão sobre a joia como “fazer artístico”
no Brasil, ao promover, por meio da pesquisa, sua cartografia
pessoal. Ela declara que a arte-joalheria ainda não é abordada
em cursos de arte de universidades brasileiras, mas esse
território singular e pouco conhecido se desenvolve bem
na Holanda, na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos,
onde há cursos específicos para formação de artistas-joalheiros.
Durante o desenvolvimento da pesquisa,
ela entrevistou, com apoio do Instituto de Artes da Unicamp,
importantes artistas-joalheiros do mundo, e também organizou
um workshop com a artista portuguesa Cristina Filipe, de
Lisboa, como forma de trazer a prática para a academia.
A autora escolheu quatro dimensões
(pensar, fazer, sentir e propor) para abordar o território
da arte-joalheria. Para pensar a joia, o binômio motivo-suporte,
elencado pelos filósofos, foi tratado na tese por meio das
relações estabelecidas entre desejo e corpo que, relacionados
com a materialidade, articularam-se às dimensões citadas,
compondo a essência de sua cartografia.
Segundo Ana Paula, toda joia inscreve-se
na presença de um corpo-suporte, seja aquele que a produziu,
que a comprou, usou ou viu. E é nesses corpos em que circula
o desejo-motivo que se encontra a própria condição de existência
da joia. Para ela, enquanto objeto dado à visibilidade,
toda joia busca produzir um impacto no outro que a contempla.
“Nesse sentido, as relações mobilizadas através desse fazer
artístico envolvem todos os sujeitos nelas inscritos em
prol de certa descolonização da percepção e do pensamento”,
acrescenta.
“Na arte-joalheria essa articulação
corpo-joia é assunto, é meio e é fim”, ressalta Ana. Ela
explica que nesse duo se instauram conteúdos relativos ao
próprio corpo do artista enquanto instrumento do fazer.
Também é nessa articulação que se observam as relações do
objeto com o corpo do outro, local de instalação da obra.
Ana Paula pontua que o privilégio de ter o corpo como lugar
de expressão permite que a joia construa sua potência não
apenas através da visibilidade, mas também por meio do tato,
do toque, do gesto, configurando uma relação de intimidade
entre sujeito e objeto. “No fazer artístico, o corpo é ação,
emoção e pensamento, instrumento do processo criativo tanto
em sua constituição física sensível como em sua manifestação
psíquica – espaço do único, local do ser, meio e medida
do estar no mundo”, explica a pesquisadora.
Segundo
a pesquisadora, no desejo, inscreve-se a própria essência
do objeto como uma maquinação que se desenvolve a partir
do contexto mobilizado pela joia. O artista-joalheiro articula
seu fazer a partir dos fluxos de seu próprio desejo de inscrever-se
no mundo e sobre o corpo do outro, o que resulta numa joia
com potência de produzir desterritorialização. Para isso,
o criador se coloca fora de si, pisando espaços que ainda
não faziam parte do repertório das joias e deparando com
novos materiais ou novas maneiras de criar seus objetos.
“O desejo, atualizado no embate entre resistência e resiliência,
circula entre vulnerabilidades e descobertas que possibilitam
ressignificar conteúdos expressos em novos pensamentos,
produções, sensações e propostas que configurarão novas
joias”, enfatiza Ana Paula.
As transformações resultantes do diálogo
entre o artista e a matéria potencializam a capacidade de
acessar o novo. Ela enfatiza que nas dinâmicas de circulação
do desejo do artista impondo sobre o corpo processos de
desterritorialização, configuram-se oportunidades para uma
transformação, criam-se meios para que o pensar, fazer,
sentir e propor repertoriados se desloquem para outros espaços,
configurando novos territórios.