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Pela reforma, mas com critério
Thomas Lewinsohn defende uso do
conhecimento científico como
contribuição ao aperfeiçoamento do Código Florestal
MANUEL
ALVES FILHO
Quando
o leitor estiver com este Jornal da Unicamp em mãos, é
possível que a Câmara dos Deputados já tenha votado o
controverso projeto de reforma do Código Florestal Brasileiro.
No momento do fechamento da edição, informações vindas
de Brasília davam conta de que a matéria seria apreciada
em plenário na última quarta-feira. Dias antes, o JU ouviu
uma das lideranças científicas brasileiras contrárias
à proposta, o professor do Instituto de Biologia (IB)
da Unicamp, Thomas Lewinsohn, que também responde pela
presidência da Associação Brasileira de Ciência Ecológica
e Conservação (Abeco). Preocupado com a possibilidade
de o projeto relatado pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP)
ser aprovado da forma como foi apresentado, o docente
voltou a advertir para o risco dessa situação. “Se for
aprovado da forma como está, o novo Código se constituirá
numa legislação da tragédia anunciada”, afirmou. Na entrevista
que segue, Thomas Lewinsohn fala sobre os outros riscos
oferecidos pelo modelo proposto por Rebelo, acerca da
mobilização da comunidade científica contra essa posição,
a propósito da importância do uso do conhecimento científico
nas discussões em torno do tema e a respeito da exequibilidade
de se conciliar o desenvolvimento da produção agrícola
com a conservação do meio ambiente.
Jornal da Unicamp – Enquanto
conversamos, as notícias vindas de Brasília dão conta de que
o projeto de reforma do Código Florestal pode ser votado nos
próximos dias. O senhor acredita nessa possibilidade?
Thomas Lewinsohn - Existem tentativas de forçar a
votação desde o ano passado. Formalmente, o que acontece é
que foi feito um projeto, do qual o deputado Aldo Rebelo foi
o relator, que foi apresentado durante a Copa do Mundo, em
dia de jogo do Brasil, se não me falha a memória. Na ocasião,
o parlamentar queria votar a matéria rapidamente. Entretanto,
ele teve que começar a segurar a votação porque as coisas
não estavam tão fáceis como imaginava. Existe um lobby muito
forte e articulado que está tentando passar um rolo compressor
para que o projeto seja aprovado. Mas o simples fato de ele
não ter sido votado ainda significa que existe alguma relutância
no governo e que alguma renegociação terá que ser feita. Assim,
não estou certo se, quando esta entrevista for publicada,
a matéria terá sido mesmo votada.
JU – A comunidade
científica começou a se mobilizar contra a proposta de reforma
do Código no ano passado. A carta publicada na revista Science,
em meados de 2010, foi a primeira manifestação pública nesse
sentido?
Lewinsohn – A comunidade científica já estava se
mobilizando nos meses anteriores à publicação da carta na
Science. Houve várias manifestações em reuniões, diversas
cartas e artigos que publicamos na imprensa brasileira. Isso
repercutiu de muitas maneiras. As manifestações, portanto,
vinham desde o começo do ano passado. Ou seja, nos meses que
precederam a publicação na Science já estavam se organizando
várias iniciativas entre cientistas. Desde logo, a Academia
Brasileira de Ciências [ABC] e a Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência [SBPC] se engajaram nesse movimento.
JU – Agora, no
final de abril, os cientistas divulgaram um documento amplo,
apoiado em dados científicos, no qual reafirmam a posição
contrária a esta reforma do Código. Que contribuições esse
documento pretende dar às discussões em torno do tema?
Lewinsohn – O sumário executivo desse documento foi
apresentado no começo do ano. O documento completo, divulgado
agora, estende os pontos básicos que foram apresentados desde
meados do ano passado, quando o projeto do deputado Rebelo
foi tornado público e posteriormente aprovado por uma comissão
mista da Câmara por 13 votos a 8. A comunidade científica
não tem pensamento monolítico sobre o tema, e é bom que não
tenha. Temos diferentes avaliações e pontos de vista, mas
existe um amplo consenso de que o projeto tal qual foi apresentado
tem problemas graves. Ele propõe certas alterações, particularmente
em relação às APPs [Áreas de Proteção Permanentes] e Reservas
Legais, que são extremamente comprometedoras em relação à
conservação. A maioria dos cientistas que elaboraram o documento,
e que pertencem a variadas instituições, converge em ver que
a proposta compromete muito a integridade dos ecossistemas
em troca de ganhos que são extremamente discutíveis. O argumento
apresentado para a urgência em atualizar o Código é de que
a produção agrícola brasileira estaria sendo estrangulada
pela legislação. E que isso requereria relaxamentos para o
setor se expandir. A imagem pública que se construiu é de
que o agronegócio, que tem alavancado a balança comercial,
estaria sendo ameaçado por um Código arcaico e que vem sendo
defendido por meia dúzia de pessoas que são obstinadas em
colocar a conservação da natureza acima dos interesses do
país.
JU – Essa imagem
não corresponde à realidade, então?
Lewinsohn – São falsos dilemas. É quase irônico que
se construa um cenário desses. Em outros lugares do mundo
você tem dilemas mais reais. O Brasil tem opções em relação
a uma combinação saudável e viável de produção agrícola com
conservação ambiental, o que poucos países do mundo têm. Aqui
nós temos uma terceira via. Os países tropicais da África
têm dificuldades muito maiores. No Brasil, não. O que está
forçando esse atropelo da reforma do Código são interesses
que não são os mais republicanos. O deputado Aldo Rebelo tem
se apresentado como o paladino dos pequenos e indefesos agricultores,
mas isso não condiz com a realidade. Os pequenos têm muito
a perder com a aprovação desse projeto. Afrouxando as exigências
de conservação, aumenta o risco de deterioração ambiental
das pequenas propriedades, o que irá cada vez mais comprometer
a produção e interferir negativamente na qualidade de vida
das populações rurais. Ou seja, compromete-se no médio prazo
o que se diz que está defendendo. Se há alguém que está particularmente
vulnerável nessa história, é justamente o pequeno produtor.
JU – Quais seriam os comprometimentos aos pequenos
produtores?
Lewinsohn – A reforma comprometeria uma série de
fatores. A polinização das plantas é um exemplo. Se você está
numa paisagem muito degradada, você não tem polinizadores
nativos. Então, a alternativa que sobra é fazer esse serviço
manualmente, o que é muito caro. Nesse caso, a produção fica
praticamente inviabilizada. A grande propriedade tem capital
e pode se defender desse tipo de dificuldade. O pequeno produtor,
não.
JU – A comunidade
científica é contra toda e qualquer reforma do Código ou contra
a proposta relatada pelo deputado Aldo Rebelo?
Lewinsohn – Há um consenso entre os cientistas de
que o Código Florestal precisa ser atualizado. Ele precisa
incorporar o conhecimento existente e estabelecer o melhor
cenário possível. Há propostas muito melhores do que a apresentada,
que sugerem o uso de instrumentos interessantes. Há um ponto
da proposta que está tramitando na Câmara com o qual a maioria
dos cientistas concorda. É o seguinte: o Estado aparece muitas
vezes como um ente puramente fiscalizador e punitivo. No discurso
da mudança do Código há um tópico segundo o qual o pequeno
produtor está sendo estrangulado. A legislação impõe de fato
muitas exigências, mas não oferece mecanismos para a construção
de alternativas. Isso é péssimo. É um problema clássico da
relação do Estado com os cidadãos, que a gente conhece de
outros terrenos, como saúde e educação. Ao revisar o Código,
há que se considerar mecanismos que obriguem a conservar e
ao mesmo tempo criem melhores condições de trabalho e de produção
aos proprietários rurais. Há um consenso nesse sentido. Mas
qual é a estratégia proposta na reforma do Código? É de relaxar
todas as salvaguardas. O Código instituiu exigências mais
estritas a partir dos anos 80, e houve um longo prazo de adaptação.
Durante décadas isso não foi implementado. Quando os prazos
começaram a expirar, aí os representantes do agronegócio começaram
a se mobilizar para conseguir adiamento – e conseguiram já
por duas vezes. Isso tem sido usado como abertura para uma
anistia geral e irrestrita. Ou seja, por esse argumento, o
que aconteceu fica por isso mesmo e aproveita-se para relaxar
as exigências, diminuindo as matas ciliares e as Reservas
Legais. Isso não é admissível.
JU – O que os
cientistas propõem?
Lewinsohn – O que os cientistas estão propondo é
o seguinte. Número um, a votação não precisa ocorrer de modo
tão açodado. Número dois, não existe esse conflito entre conservação
e produção. Não são objetivos inconciliáveis. É preciso ceder
de um lado e do outro, mas existe uma ampla margem para o
desenvolvimento de projetos lúcidos e factíveis que permitem
à agricultura continuar tendo ganhos de produção sem que a
conservação mínima seja comprometida.
JU – Qual seria
o prazo mínimo para uma discussão mais aprofundada acerca
do tema?
Lewinsohn – Falo como pesquisador e como presidente
da Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação
[Abeco]. Eu não estive envolvido na elaboração desse último
documento, mas participei dos anteriores. Eu vejo a questão
sob o seguinte ângulo: não adianta discutirmos prazos antes
de obtermos concordância quanto à necessidade dessa discussão
mais aprofundada. Temos que conseguir sentar à mesa para debater
a melhor alternativa para o país e sua população. O deputado
Aldo Rebelo e os interesses que ele representa infelizmente
acham que podem ganhar o jogo no grito, sem discussão séria.
Eles alegam que a comunidade científica já foi ouvida e que
não há mais nada a discutir, mas isso não é verdade.
JU – Ou seja,
os cientistas querem ser ouvidos...
Lewinsohn – Não queremos que os cientistas sejam
“ouvidos” simbolicamente. Queremos que o conhecimento científico
disponível seja considerado na elaboração do projeto. Desprezar
esse conhecimento é criminoso. Sacrificar alternativas seguramente
melhores e que contemplam mais satisfatoriamente um leque
de interesses econômicos, sociais e ambientais não é admissível.
A Abeco tem defendido que os cientistas não pretendem ter
palavra final sobre o assunto, mas considera que o Brasil
não pode ter o luxo de jogar fora o conhecimento científico
acumulado em torno dessa questão. Esse conhecimento não dita,
mas traz informações sobre as melhores alternativas.
JU – Na hipótese
de o projeto de reforma do Código Florestal ser aprovado da
forma como está proposto, quais as consequências para o ambiente?
Lewinsohn – Teremos um avanço agressivo sobre os
espaços naturais preservados. Teremos um abocanhamento da
Amazônia, uma deterioração das pequenas propriedades, que
seriam liberadas das salvaguardas. Isso é o mesmo que dizer
que, já que há muito motorista que não está usando o cinto
de segurança, o melhor é abolir de uma vez a lei que instituiu
esse uso. Ou seja, em sendo aprovado da forma como está, o
Código favorecerá a aceleração da degradação ambiental e,
como consequência, comprometerá a qualidade da produção agropastoril.
Em vez de otimizar e redistribuir a produção, pretende-se
dar livre curso ao comprometimento das paisagens naturais
remanescentes do Brasil. No que toca às regiões urbanas, estaremos
encomendando as próximas tragédias.
JU – Como assim?
Lewinsohn – Se o Código Florestal, tal como ele é
hoje, tivesse sido cumprido à risca, desde os anos 60, uma
boa parte das tragédias que ocorreram recentemente em Santa
Catarina e no Rio de Janeiro, em razão das chuvas, não teriam
ocorrido ou não teriam tido as graves consequências que tiveram.
Se a lei fosse seguida, não teríamos tantas pessoas morando
em situação de risco, pois as áreas de proteção dentro do
espaço urbano teriam impedido isso. As chuvas teriam provocado
desmoronamentos, mas as consequências humanas teriam sido
muito menores. Se for aprovado da forma como está, o Código
se constituirá numa legislação da tragédia anunciada. Isto
não é lamento de Cassandra. Não é preciso ser especialmente
iluminado para saber que isso equivale a sancionar a ampliação
da ocupação de áreas de grande risco.
JU – Em outras
palavras, essa discussão representa o legado que pretendemos
deixar à geração mais imediata?
Lewinsohn – Legado que pretendemos deixar para a
nossa própria geração. Estamos falando de coisas que já estão
acontecendo. O Brasil é um país onde a ocupação do solo se
deu com uma velocidade vertiginosa. Lembro-me de um episódio,
ocorrido numas das primeiras reuniões da SBPC, que foi fundada
no início dos anos 50. Na oportunidade, um pesquisador alertou
que estava preocupado com as florestas do Paraná. Ele dizia
que se a degradação continuasse no ritmo em que estava, em
um século não haveria mais florestas no Estado. Na ocasião,
esse pesquisador não foi levado a sério pelos próprios pares.
E é claro que ele estava mesmo errado. A devastação não demorou
nem metade do que ele previra, mas sim 40 anos. O processo
foi muito mais rápido. No Brasil, é espantosa a velocidade
como a degradação avançou sobre um patrimônio biológico único
no mundo. Não há mais florestas intermináveis nem fronteiras
agrícolas sem fim.
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