Ao longo da carreira, Tião Carreiro, que nasceu José Dias Nunes, gravou cerca de 80 discos, alguns deles em 78 rpms. Em sua pesquisa, porém, João Paulo concentrou-se em duas obras totalmente instrumentais: É isso o que o povo quer (1976) e Tião Carreiro em solo de viola caipira (1979). “Escolhi os dois álbuns porque o foco do meu estudo era justamente a forma como esse artista tocava a viola. Ambos servem para ilustrar as técnicas utilizadas por ele”, explica. Autodidata, o instrumentista, que também era cantor e compositor, apresentava algumas peculiaridades, conforme o pesquisador. A mistura de toques de viola e elementos musicais relacionados à catira e ao recortado, duas danças caipiras tradicionais, deu origem a um novo gênero, que ficou conhecido como pagode caipira ou simplesmente pagode.
João Paulo adverte que não é possível afirmar que Tião Carreiro tenha sido o único criador do pagode, visto que outros artistas faziam experimentações similares na mesma época. “Entretanto, ele contribuiu decisivamente para desenvolver, popularizar e consolidar o gênero”, assegura. Aqui, faz-se necessário um esclarecimento. Tanto o pagode caipira quanto o pagode vinculado ao samba designam reunião ou festa informal, na qual a música ocupa lugar de destaque. No entanto, o primeiro tem características próprias. No meio sertanejo, conta o autor da dissertação, a expressão tornou-se conhecida a partir da gravação, pelo próprio Tião Carreiro, da música Pagode em Brasília, em 1960.
O toque de Tião Carreiro, reforça João Paulo, apresenta certo grau de sofisticação, sobretudo por conta da movimentação das mãos. Esse aspecto, associado à rítmica do violão, que faz parceria com a viola, estabeleceu uma polirritmia até então incomum na cena da música caipira. “O trabalho feito por Tião Carreiro pode ser considerado como um pequeno divisor de águas dentro do universo da viola”, sustenta o pesquisador. O pagode, prossegue o autor da dissertação, de certa forma favorecia a virtuosidade do artista, que fazia solos rápidos e empregava técnicas como o pizzicato, que pode ser traduzido como o ato de tocar as cordas do instrumento de forma semi-abafada, obtendo um timbre mais silencioso e percursivo. “É bem possível que Tião Carreiro sequer conhecesse esses termos técnicos, visto que ele era essencialmente intuitivo”, infere.
Graças ao seu talento e habilidade, o violeiro passou a ser conhecido como o “rei do pagode”, título que foi devidamente explorado pela indústria fonográfica. O legado deixado por Tião Carreiro, conforme João Paulo, estende-se até os dias atuais. “Da década de 80 em diante, praticamente todos os violeiros admitem que foram influenciados por ele. Artistas como Vinícius Alves, Rodrigo Matos e Almir Sater fazem parte dessa lista. Até mesmo os integrantes do movimento que ficou classificado como ‘sertanejo romântico’ rendem homenagens a Tião Carreiro. O cantor Daniel, que fazia dupla com João Paulo, gravou recentemente um disco dedicado integralmente a Tião Carreiro. Daniel costuma dizer que sofre influência até mesmo do modo do ídolo cantar, visto que ele que tinha uma voz bem grave. Em outras palavras, Tião Carreiro é uma espécie de reserva de tradição, que muitas vezes é utilizada por alguns artistas para legitimar suas obras”, analisa.
Para desenvolver a dissertação, João Paulo mapeou o segmento da música sertaneja instrumental brasileira, partindo dos primeiros registros da indústria fonográfica. Para realizar a análise musical, ele pesquisou gêneros como a moda de viola, a guarânia, o rasqueado, a polca paraguaia, além das danças já mencionadas. Durante o trabalho, ele esmiuçou elementos como os toques da viola, as batidas do violão, o comportamento da percussão etc. “Além disso, eu me apoiei em teóricos que analisam a música em geral, mas tive que adaptar os métodos e conceitos à música popular, mais especificamente à música caipira. Também entrevistei vários violeiros para buscar maior número de dados para fundamentar minha análise”, esclarece.
Trabalho de músico Para o orientador da dissertação, professor José Roberto Zan, a pesquisa desenvolvida por João Paulo reveste-se de importância por inserir-se no campo dos estudos sobre música popular, objeto que vem crescendo em relevância dentro da academia. “O trabalho também tem valor porque se aproxima das análises etnomusicais, que procuram compreender a música popular dentro de configurações culturais mais específicas. No Brasil, essa experiência ainda é nova”, pontua. Ademais, acrescenta o docente, o estudo chama a atenção para a importância de Tião Carreiro na formação de vários instrumentistas que se dedicaram à viola, transformando-a em elemento com grande potencial no campo da música instrumental. “Correndo o risco de uma comparação apressada, a viola de Tião Carreiro equivale à guitarra do blues. Ou seja, guardadas as proporções, a figura de Tião Carreiro se aproxima da figura mitológica de Robert Johnson”, diz.
Outro mérito da dissertação, na opinião do professor Zan, é o fato de ela trazer uma espécie de anexo, no qual João Paulo transcreve todas as músicas de um dos discos analisados, visto que as partituras jamais haviam sido publicadas anteriormente. “Esse trabalho somente pôde ser feito porque o João Paulo também é músico e violeiro. Ele teve que ouvir cada música para depois transcrever em partituras”, destaca o orientador. Ainda sobre a obra de Tião Carreiro, talvez seja recomendável concluir este texto com os versos de A viola e o violeiro, da qual ele foi co-autor: “Tem gente que não gosta da classe de violeiro/No braço desta viola defendo meus companheiro/Pra destruir nossa classe tem que matar primeiro/Mesmo assim, depois de morto eu atrapaio/Morre um homem, fica a fama, e minha fama dá trabaio”. Nada mais profético.
Obra de compositor é tida como reserva de tradições
Tião Carreiro nasceu José Dias Nunes, em 1934, em Catuti, hoje Monte Azul, distrito de Montes Claros, em Minas Gerais. Começou a trabalhar ainda criança na roça, para ajudar a família. Aos 10 anos, mudou-se com os pais para o interior de São Paulo em busca de melhores condições de vida. Iniciou a carreira artística em 1956, quando gravou o primeiro disco (em 78 rpms) ao lado do seu principal parceiro, Antônio Henrique de Lima, o Pardinho. Tião Carreiro conquistou grande projeção no meio sertanejo como cantor e compositor e influenciou diversas gerações de violeiros e músicos. Ainda hoje, vários artistas lhe rendem homenagens.
Autor e intérprete de clássicos da música sertaneja como Rio de Lágrimas e Pagode em Brasília, gravou cerca de 50 LPs e 30 discos de 78 rpms ao longo de sua carreira. Tais registros foram relançados em CDs que ainda hoje alcançam números consideráveis de vendagem. A partir do panorama massificado do segmento classificado como “sertanejo romântico”, consolidado pós anos 90, sua obra passou a ser identificada e reconhecida como música sertaneja de “raiz”, representando uma espécie de reserva de tradições da antiga música caipira. Tião Carreiro morreu em 1993.