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Violência guerreira e cortesia
O que a cavalaria medieval pode
nos ensinar
a respeito das “sociedades de vingança”?
NÉRI
DE BARROS ALMEIDA
A
cavalaria medieval seduz as imaginações. Ela oferece um
contraste de luz às pretensas trevas medievais. Mas os dois
lados dessa história não serão uma única e mesma coisa?
A violência e a arrogância militar da aristocracia que participam
da ideia de Idade Média não serão parte do mundo de delicadeza,
proeza e justiça que caracteriza a cavalaria em nossos devaneios?
Escrita pelo medievalista Dominique Barthélemy, professor
da Universidade de Paris IV e diretor de estudos da École
Pratique des Hautes Études, a obra A cavalaria. Da Germânia
antiga à França do século XII, recentemente lançada pela
Editora da Unicamp, repensa a relação entre estes extremos.
Segundo o autor, os estudos antropológicos desdramatizaram
as “sociedades de vingança” e dessa forma permitiram uma
observação mais adequada da violência medieval. A ideia
de que a Idade Média é uma sociedade marcada por uma “violência
endêmica”, que sempre a ameaça de dissolução, é antiga e
marcou os estudos medievais até muito recentemente. O trabalho
de Dominique Barthélemy, inspirado nos estudos antropológicos,
permite identificar nos registros da violência medieval
instrumentos que atuam em seu controle e mecanismos de recomposição
social aos quais nossos olhares não haviam sido sensíveis
até há pouco.
Dessa
forma, sem negar que se trate de uma sociedade submetida
aos imperativos de um grupo que enaltece a violência guerreira,
Barthélemy nos mostra que essa era menos praticada e menos
sangrenta do que se supôs, revelando a presença de mecanismos
coerentes e eficazes de instituição e coesão social.
No
próximo dia 13 de maio, Dominique Barthélemy estará no Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp para proferir
conferência a respeito de seus estudos sobre a cavalaria
e a chamada “sociedade feudal”. Na entrevista que segue,
o historiador fala sobre seu livro, suas convicções a respeito
de “como se faz história”, a interdisciplinaridade e o futuro
dos problemas apaixonantes aos quais se dedica.
Jornal da Unicamp
– A cavalaria e o feudalismo são dois domínios já bastante
explorados pela historiografia, o que em princípio pressupõe
dificuldades para uma abordagem inovadora. Isso se complica
se pensarmos que mesmo entre não especialistas – seja por
meio da escola, do cinema ou da literatura – muitos têm ideias
consolidadas a respeito do que foram o feudalismo e a cavalaria,
o que de certa forma coíbe a absorção das novidades. O que
ainda não sabemos sobre esses dois temas e por que ainda é
importante para os historiadores insistirem em sua compreensão?
Barthélemy
– A cavalaria e a feudalidade * são efetivamente
questões batidas. As duas têm contornos bem conhecidos. Mas
no reino dos historiadores, esses dois grandes referenciais,
em minha opinião indispensáveis, foram, infelizmente, objeto
de desconstruções recentes, na maior parte das vezes devastadoras.
Não serão necessários esforços para restabelecê-los? Por outro
lado, a visão clássica da cavalaria, saída da própria Idade
Média, oculta ou mistura muitas coisas. Por exemplo, ela ocultou
as ligações entre cavalaria e senhorio [patrimônio fundiário]
e misturou formas diversas de justiça. As sociedades, suas
elites, têm interesse em evitar certas questões e em confundir
outras. Cabe ao historiador através da crítica ir além desses
artifícios!
O principal problema é que
foram incorporados à cavalaria, por exemplo, por meio das
injunções dos novos adubados [aristocratas que já receberam
cerimoniosamente suas armas], elementos contraditórios. O
cavaleiro devia ser antes de mais nada um soldado disciplinado,
pronto para a morte e o sacrifício de sua vida, em uma guerra
justa? Ou era um nobre narcisista, cioso em obter por meio
de sua elegância a estima de seu adversário e do público –
notadamente feminino –, em combates frívolos, em jogos como
os torneios? Ou tratava-se ainda de um feudal desconfiado
e pragmático?
JU – Sem deixar de ser tributário
de uma tradição historiográfica, seu trabalho também é profundamente
inovador, contribuindo tanto para a crítica ao conceito de
cavalaria quanto da dinâmica histórica que lhe é comumente
atribuída, já que para o senhor a cavalaria, em parte, remontaria
à Germânia antiga, ou seja, a um período anterior à instalação
dos bárbaros no Império Romano. Para o senhor, o que define
a cavalaria?
Barthélemy – Minha definição de cavalaria é próxima
daquela de Maurice Keen, em seu grande livro de 1984, Chivalry
[Cavalaria]. O cavaleiro cavaleiresco [aquele que guerreia
a cavalo e que também cultiva valores e práticas próprios
da cavalaria] é o nobre torneador; ele quer sobrepujar o adversário
de mesmo estatuto sem matá-lo, e mesmo, demonstrando em relação
a ele ímpetos de generosidade. No entanto, isso não se refere
a tudo que fazem os cavaleiros, nem a tudo que as fontes medievais
classificam sob essa palavra – mesmo que o habitus cavaleiresco
seja estabelecido em lugares outros que os torneios, isso
é episódico.
Essa cavalaria que chamo de
“clássica”, aparece na França do Norte no final do século
XI e início do século XII, difundindo-se plenamente entre
1130 e 1180. Meu livro é consagrado à procura de sua origem
– não esclarecida por Keen. Talvez meu livro devesse ter sido
intitulado: “dos bárbaros à cavalaria”. Definida dessa forma,
a cavalaria não teria as origens “romanas” que lhe foram recentemente
atribuídas por Karl Ferdinand Werner. Nela sobrevive e se
acentua mais um senso aristocrático da honra que está muito
mais presente nas tradições sociais francas, “bárbaras”.
Na Germânia descrita por Tácito
[historiador romano que viveu entre 55 e 120], ou por ele
idealizada em uma espécie de ficção literária, os jovens guerreiros
nobres, ao se engajaram no comitatus [grupo de conquista e
convivência em torno de um senhor guerreiro], têm desejo de
honra e de ganho que nos leva a pensar nas futuras casas principescas
da França feudal [aproximadamente séculos XI a XIII]. Para
ambos os grupos, a palavra de ordem se mantém inspirar no
adversário e na opinião pública uma admiração misturada a
medo, e realizar combates mortais: a “germanidade”, no sentido
moral e social – jamais no sentido racial –, consiste em um
comportamento indômito. Este ainda impregna um pouco o mundo
carolíngio [região sob dominação franca entre os séculos V-X],
mas então começa a se operar uma valorização da clemência
nas guerras civis. E são as guerras civis “feudais” da França
do século XI, que constituem o ambiente propício para a invenção
da cavalaria clássica com seus adubamentos e torneios. Os
ideais e as práticas dessa cavalaria clássica vêm ao mesmo
tempo se opor e se sobrepor àqueles da “germanidade” mitigada
que também sobrevivem na guerra feudal.
JU – A cavalaria
aparece de maneira marcante em nossa imaginação heróica informada
pela literatura. Artur, Tristão, Lancelote, Ivan, Perceval
e Galaaz, heróis que surgem na literatura por volta do século
XII, são bastante conhecidos e mesmo admirados. No século
XIX, o romance histórico, notadamente com Walter Scott, multiplica
essa aproximação entre o que é a cavalaria na imaginação histórica
comum e a cortesia. De que maneira esses dois momentos em
que os cavaleiros se projetam para a ficção interferiram na
definição historiográfica da cavalaria? É possível, e mesmo
necessário, separar a cavalaria de sua aparição ficcional?
Barthélemy – O interessante na França do século XII
é que nela se desenvolvem, praticamente ao mesmo tempo, duas
literaturas vernáculas para a glória ou uso dos guerreiros
nobres. Essas duas literaturas, antes de se misturarem um
pouco uma à outra, parecem-me exprimir respectivamente os
valores da germanidade persistente (é o que temos nas canções
de gesta) e os valores cavaleirescos novos – apresentados
nos romans, com todos os personagens que você acaba de citar.
A cavalaria tem uma necessidade intrínseca de se fazer ver
(pensemos no espetáculo do torneio) e também de contar – mesmo
na ficção – sob a forma de esboço, uma vez que ela é em si
mesmo uma idealização. As ficções por si mesmas têm uma história
interessante, em contraponto com aquela das práticas reais,
que elas tentam por seu lado influenciar – cruzados combatem
pensando em Rolando [personagem histórico carolíngio do século
VIII retratado por volta de 1090 na narrativa épica A Canção
de Rolando (c.1090)] e torneios são organizados como “távolas
redondas”. Esses grandes modelos sofrem evoluções e transformações,
até em sua literatura de cordel. Walter Scott e o romance
histórico inventam novos heróis cavaleiros, em razão das expectativas
do século XIX, que cria sua Idade Média sob medida para atuar
em reação às revoluções burguesas. Mas, no final das contas,
a cavalaria [clássica] medieval em si não surgiu de uma espécie
de valorização dos guerreiros nobres face à emergência das
elites urbanas concorrentes no final do século XI?
* Em francês utilizam-se
duas palavras (feudalismo e feudalidade) para descrever
dimensões teóricas diferentes daquilo a que os historiadores
chamam, em português, apenas de “feudalismo”. Feudalidade
designa a relação social intra-aristocrática fundamentada
no compromisso feudo-vassálico no qual serviços militares
são oferecidos em troca da concessão de um benefício, geralmente
um bem fundiário, que confere autoridade jurídica. Feudalismo,
por sua vez, se refere à relação de apropriação econômica
entre a aristocracia fundiária em armas e o campesinato
produtivo.
Continua
nas páginas 6 e 7
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