Da dança indiana ao repertório rodrigueano
JEVERSON
BARBIERI
A
sistematização de um ensaio de trabalho técnico corporal,
que inclui expressividade gestual e vocal, objetivando aperfeiçoar
a Técnica Energética, resultou no projeto de livre-docência
da professora Marília Soares, do Departamento de Artes Corporais,
do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Intitulado Singularidades
Nuas: Interfaces entre a Dança-Teatro e a Dramaturgia de
Nelson Rodrigues, o projeto permitiu à docente integrar
dança-teatro – no âmbito da dança indiana – com as mulheres
presentes nas peças de Nelson Rodrigues. Soares ganhou o
prêmio concedido pelo Fundo de Investimentos Culturais de
Campinas (FICC) para montagem do espetáculo e um prêmio
do Ministério da Cultura (MinC),
que deu a ela a oportunidade de ir à Índia e durante quatro
meses aprender uma nova coreografia com o guru Gangadhar
Pradhan.
Soares
disse que seu trabalho é muito voltado para o gênero dança-teatro
e que, inclusive, na dança indiana existe uma modalidade
chamada Abhinaya, que é totalmente interpretativa. “Esse
é o item que pesquiso e estudo mais”, ressaltou. A proposta
para lecionar a disciplina de graduação Expressão Dramática
na Dança, e a sugestão recebida de uma aluna para trabalhar
com as mulheres de Nelson Rodrigues, levaram a professora
a aplicar todo o seu estudo sobre como a expressividade
da dança indiana poderia ser entendida em português. “Eu
nem gostava de Nelson Rodrigues, porém achei a sugestão
interessante. A partir dessa disciplina, acabei gostando”,
disse sorrindo.
Tema
de sua tese de doutorado, a Técnica Energética vem sendo
pesquisada pela docente há 25 anos, a partir dos pressupostos
básicos da direção teatral. Mais especificamente, o método
energético de direção teatral do professor Miroel Silveira,
da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de
São Paulo (USP). Soares revelou que trabalhou intensivamente
com Silveira durante dois anos e meio porque iria desenvolver
seu mestrado na área. “Infelizmente ele faleceu e fiquei
sem orientador. Também não encontrei quem quisesse me orientar
nesse trabalho porque era uma coisa específica dele”, afirmou.
No entanto, a técnica acabou sendo base do doutorado defendido
em 2000 na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, com o
título “Técnica Energética: Fundamentos de Expressão e Movimento
Criativo”.
A expectativa
era apresentar o projeto de livre-docência três anos após
a conclusão do doutorado, no entanto a pesquisa foi se aprofundando
de maneira tão intensa que somente agora isso está sendo
possível. Soares aproveitou para incluir na pesquisa tanto
a técnica de Klauss Vianna, com quem também trabalhou durante
bom tempo, quanto a dança indiana, que é uma paixão de infância.
“Minha iniciação em Campinas foi com a professora Silvana
Duarte. Prossegui trabalhando com outras professoras brasileiras
até descobrir Gangadhar Pradhan, meu guru na Índia”, contou.
De
acordo com a docente, a Índia trabalha com a expressividade
do movimento desde o princípio, diferentemente da dança
ocidental, que tem um treinamento físico muito intensivo,
enfatizando a perna, a acrobacia e o desempenho. A dança
indiana costuma trabalhar com a expressão e o movimento.
O gestual, os mudras, a direção do olho –, esse quadro expressivo
humano é trabalhado minuciosamente durante todo o processo
do dançarino. Então, prosseguiu ela, quando se exige expressividade
do dançarino, significa que ele traz consigo um instrumental
muito grande do trabalho de expressão, coisa que não existe
na dança ocidental. “Esse é o mote do meu trabalho. Estou
pesquisando como está o trabalho na Índia e como isso pode
nos dar uma fonte para trabalhar o Ocidente e não copiar
o Oriente, porque a cópia não é o saudável. Numa metáfora,
eu diria que é a mesma coisa que traduzir do sânscrito para
o português”, assegurou.
Soares,
numa abordagem inicial, constatou que os gestos são muito
parecidos. Existe, segundo ela, muita semelhança entre Oriente
e Ocidente nessa questão, principalmente na dança. Para
a docente, essa codificação que ela implantou na Técnica
Energética é uma forma de colocar o trabalho expressivo
no princípio da formação do dançarino. “Como é na Índia,
mas com a nossa cultura”, explicou.
Estudiosa
da dança indiana, com mais de 15 anos de prática de Odissi,
considera-a muito complicada e complexa. “São mais de cinco
mil anos de cultura milenar, muito diferente da nossa. Isso
exigiu muitos anos de estudo para conseguir me aprofundar
realmente na expressividade do movimento”, comentou. Ela
teve que corrigir todas as coreografias que tinha aprendido
porque estavam defeituosas. Todas as danças clássicas indianas
nasceram em cima do que é um tratado de ciência da arte
cênica, então essa base está em todos os estilos de dança,
embora sejam diferentes um do outro.
Ainda
que tenha estudado com várias professoras brasileiras que
a ajudaram muito com pesquisas sérias na relação da dança,
Soares ressaltou que é sempre uma informação de segunda
mão. “Nunca vou dizer que entendo mais que um indiano ou
saber tanto quanto um guru. As informações são sempre de
segunda mão porque não é minha cultura e 15 anos de trabalho
são muito pouco”, argumentou.
A preocupação
demonstrada com a cultura oriental se traduziu no esforço
em conseguir uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp), no âmbito de um programa
de intercâmbio e difusão, para trazer o guru Manoranjan
Pradhan à Unicamp. Como professor visitante, o guru trabalhou
aperfeiçoamento técnico com o grupo Ar Cênico e também ministrou
dois workshops abertos ao público. “Funcionou como atividade
de extensão”, disse a professora.
Prova
disso é que Soares recebeu elogios da professora Verônica
Fabrini porque um de seus alunos fez um curso intensivo
ministrado por Manoranjan e foi para a aula dela com o corpo
muito diferente. “Foi um curso diuturno e intensivo de cinco
dias. Esse trabalho aparece rapidamente”, afirmou. Para
Soares, esse tipo de treinamento faz falta na rotina de
aprendizado. “Quando o aluno faz aula comigo, não é a mesma
coisa. É muito importante beber na fonte”, ressaltou.
E esse
tipo de interação deve se intensificar daqui em diante,
segundo a professora. Ela citou um livro escrito por Leonard
Pronko, cujo título é Teatro Leste Oeste, no qual o autor
faz uma análise de um grande florescimento da dança nos
Estados Unidos na década de 1970. Houve nessa época, de
acordo com Soares, uma grande migração de artistas indianos
que tentaram vir para o Brasil. Eram tempos de ditadura
e eles não conseguiram entrar aqui. Tendo visto de permanência
negado, foram para os Estados Unidos e Canadá. O autor aborda
a influência massiva e forte que teve o Oriente nas artes
cênicas americanas. O florescimento de pesquisas e de novos
estilos foi muito grande, com uma renovação na dança. “Acredito
que estamos com 40 anos de atraso em relação a esses países,
exatamente por não podermos beber diretamente na fonte.
Acredito que, dessa maneira, poderemos chegar mais perto
ou alcançá-los e a partir desse contato as coisas se tornarão
mais práticas”.
Visitante
Pela primeira vez no Brasil, o guru Manoranjan Pradhan esbanjou
alegria e agradecimento. Formado pela escola Padmashree
Guru Gangadhar Pradhan, onde atualmente é professor, é exímio
dançarino do estilo Odissi e já lecionou em universidades
dos Estados Unidos e México. E, na avaliação de Soares,
é quem deverá assumir o posto de controle da escola porque,
infelizmente, o guru Gangadhar faleceu há pouco tempo. “Fiquei
muito triste com a notícia”, lamentou a docente.
Manoranjan fez uma avaliação
muito positiva desse primeiro contato dos alunos brasileiros
com a dança indiana. “No que diz respeito às questões clássicas,
da história e da espiritualidade, foi muito bom e promete
crescer”, disse. Acrescentou ainda que ficou muito contente
porque esse intercâmbio possibilitará uma troca de experiências
com os brasileiros, assim como já foi feito com argentinos,
mexicanos e norte-americanos. “Assim como estou aqui, eles
poderão ir à Orissa, no estado da Índia onde se localiza
a escola”, disse o guru.
Na opinião dele, conhecer
as músicas brasileira e indiana e identificar as diferenças
entre os tipos de danças fizeram desse intercâmbio uma atividade
extremamente saudável. Ainda, o fato de ter ensinado nas
universidades americanas fez com que o intercâmbio com os
americanos se intensificasse muito depois de sua passagem
por lá. “Espero que no Brasil a gente consiga isso também”,
disse.
Em sua passagem pela Unicamp,
Manoranjan apresentou um espetáculo no Teatro do IA, nos
mesmos moldes do que é realizado na Índia, com cinco modalidades
de dança. A primeira, o Mangalacharan, que homenageia o
Deus que vai presidir o espetáculo, no qual se pede licença
para a mãe terra para bater o pé no chão, para que ela perdoe
todos nossos erros e que Deus abençoe toda a platéia. A
segunda é um Batu, dança de desempenho técnico de preparação
para ir a uma festa de Shiva. A terceira, o Pallavi, é uma
dança pura mais lírica, até um pouco mais interpretativa.
Na sequência, a Abhinaya que é a dança interpretativa, que
todas as modalidades possuem. E por fim, o Mokshia, que
significa liberação – ou seja, todos estão livres e abençoados.