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A morte é bela. Ninguém reagiria indignado a esta afirmação naquele seminário, embora os presentes certamente já tenham experimentado a dor da perda e boa parte esteja envolvida com o dia-a-dia trágico de pacientes terminais. Aqueles médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas e estudantes estavam realmente interessados em discutir as emoções acerca da morte e viram um tema aparentemente mórbido tornar-se lúdico na oratória de palestrantes psiquiatras, filósofos, antropólogos, escritores. O Iº Seminário de Reflexões sobre a Vida e a Morte, promovido pelo Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) no dia 16 de setembro, atendeu a pedido de profissionais que freqüentam o curso de capacitação em cuidados paliativos criado por uma equipe multidisciplinar da Área de Oncologia. Estas pessoas buscam mais que aprimoramento técnico para a prestação de um tipo especial de assistência: querem lidar adequadamente com os sentimentos do paciente que não tem mais chances de cura - e dos familiares dele, igualmente vítimas do estresse e do sofrimento. "Como trabalhar bem o tempo de vida que resta ao doente é apenas uma das questões colocadas diante do profissional de saúde, que não tem como deixar de se envolver emocionalmente", afirmou a enfermeira Simone Pollini Gonçalves, uma das organizadoras do encontro. A proposta de apresentar visões diversas sobre assunto tão denso, sem pieguices, concretizou-se diante da comoção percebida na platéia em vários momentos. O paciente terminal foi centro dos debates menos por sua dor física e mais por sua solidão extrema e seus pavores. Criticou-se a postura onipotente e omissa de parte dos médicos nessas situações e o morrer "asséptico" imposto nos hospitais. Falou-se de espiritualidade, experiências no coma e, no final, abriu-se espaço para uma abordagem poética da morte. Para quem assistiu ao seminário em que se discutiu a morte, a vida (a dele e a dos pacientes) ganhou muito mais sentido. Porque morte é assustadora O homem é o único animal que sabe que vai morrer. Este "conhecimento de um destino" é o primeiro de cinco elementos que tornam a morte tão assustadora, enumerados por Régis de Moraes, filósofo e sociólogo da PUC-Campinas, para um público atento no auditório da FCM. "O ser humano tem consciência de que sua trajetória vai do berço ao túmulo. Não é fácil para ele. Talvez por isso não existam psicoterapeutas de cães e gatos", ironizou. A solidão extrema do homem no momento da morte, mesmo estando cercado de familiares e amigos, é o segundo fator que apavora. "Ninguém pode sofrer por mim a minha dor, nem morrer por mim a minha morte. É a solidão absoluta do morrer que me deixa insone", declamou Moraes, reproduzindo versos célebres do filósofo alemão Martin Heidegger. "Na hora da partida o homem estará inapelavelmente sozinho", acrescentou. As amputações afetivas - o exílio em relação às pessoas que ama - significam o "desmonte da teia existencial" e formam o terceiro elemento assustador para quem está prestes a morrer. Recorrendo sempre a pensadores, Régis de Moraes ilustrou esse tópico com a história de um frei dominicano que entrou em coma por diversas vezes. "Frei Hugo Baggio dizia viver intensamente o coma. Na ocorrência mais grave, ouviu alguém convidá-lo a ficar do outro lado, ao que respondeu: Até gostaria, pois estou sentindo uma paz enorme, mas não posso aceitar o convite porque minha mãe ainda não está preparada para ficar sem mim". O quarto elemento que apavora é o caminho de sofrimento no processo de morrer. Agora citando George Orwell e a câmara de tortura em "1984", Régis afirma: "Sendo torturado na câmara ou com uma dor de dente no quarto, o doente terminal vê essa dor ganhar o tamanho do universo". Para o sociólogo, uma ciência preocupada com os cuidados paliativos pode evitar que este processo seja tão acentuadamente sofrido. A proximidade da hora final também traz uma enorme sensação de náusea diante do desconhecido, do nada: é o quinto elemento. O Muro, obra de Jean-Paul Sartre que desencadeou uma onda de suicídios, traz contos finamente elaborados sobre morte e loucura. O escritor francês sentencia que no muro "a vida bate, escorre e apaga". Régis de Moraes, contudo, critica a morbidade alimentada por várias religiões e que perpassa a nossa cultura, o positivismo excessivo dos cientistas e as filosofias imediatistas, revelando então suas convicções espíritas: "Hoje, inúmeras indicações nas ciências médicas e nas observações hospitalares levam a certas questões: será que apagamos, será que nossa visão não é muito estreita e não vemos apenas em três dimensões, será que não prosseguimos?" Parábola - Jung observa em A Realidade da Alma que o processo da vida descreve uma parábola: sai de um ponto zero, atinge o ápice e vai caindo novamente para o ponto zero; basta imaginar um morro. Esta parábola tem dois traços, um biológico e outro psíquico. Em cima do morro, quando se inverte a parábola e começa a degeneração orgânica, surgem sérias resistências psíquicas a aceitar a descensão. "Nossa sociedade nunca se preparou para a morte, não compreendeu seu significado e nem acha de bom tom colocar o assunto na roda", ressalta Régis de Moraes. "Na metade da vida, nasce a morte. Só seguirá bem com a vida aquele que aceitar morrer com ela", ensina. O sociólogo da PUC explica que a criança tem a primeira consciência da mortalidade entre os dois e três anos e meio. Contudo, o que a deixa ansiosa não é a possibilidade de sua morte, mas a da mãe, pai, avós, da teia que a mantém na existência. "É comum a criança passar por um período depressivo", adverte Régis. A segunda chamada perante a mortalidade vem na puberdade, de forma mais trágica, por se tratar da própria morte. O adolescente fica cheio de medos diante da necessidade de refletir sobre ela, afirma Régis. Nesta fase as necessidades satisfeitas são ganhos existenciais, enquanto as necessidades frustradas viram perdas existenciais que geram bloqueios, revoltas e transformam os jovens adultos em seres carentes. "Este quadro de luz e sombra vai se compondo e, quanto mais imatura a pessoa, mais difícil será crescer com as perdas". A chama de uma vela Convidado a falar poeticamente sobre a morte, o escritor Rubem Alves permitiu-se um único comentário que lembrou a relação entre profissionais de saúde e pacientes terminais, pauta das discussões do dia. "A medicina tem se especializado em humilhar as pessoas", disse, recorrendo à imagem do doente entubado e preso ao leito no hospital para sustentar sua acusação. "O homem deve merecer cuidados enquanto houver uma esperança de alegria; se não, deve ter permissão para partir." O restante da palestra foi de pura poesia. Por mais de uma hora Rubem declamaria sobre vida e morte, ilustrando sua oratória com símbolos como A chama de uma vela, que deu título a uma obra de Gaston Bachelard. "A vela, para dar a luz, tem que estar morrendo o tempo todo. A cera que escorre formando aquelas estalactites são as lágrimas da vela, que iluminam tanto a vida da gente. Quando penso na morte, não penso em cama de hospital, mas nessa passagem do tempo, que é essencial à experiência de estar vivendo". A teia, milagrosamente criada pela aranha sobre um abismo, é outro símbolo utilizado pelo escritor. "É a teia da esperança que sustenta a vida, em cima do abismo que representa a morte. Estamos nos equilibrando constantemente sobre o abismo, sentindo aquele calafrio, que ao lado da esperança nos motiva a viver", sentenciou. Rubem lembrou-se então do alpinista, que desafia a morte escalando o Aconcágua, como exemplo desta necessidade de calafrio. "Nós o vemos ali dependurado e perguntamos por que ele não ficou em casa, confortável em sua poltrona, ou por que não alugou um helicóptero para chegar ao topo do monte. Ora, porque não é alcançar o topo o que lhe interessa: é a escalada. Como escreveu Guimarães Rosa, a coisa não está nem na partida, nem na chegada. Está na travessia". Em todo o seu discurso sobre a morte, o escritor induziu o embevecido público sempre à mesma conclusão: de como é bela a vida. E, dizendo-se cristão-taoísta, responsabilizou os "cristãos clássicos" pelo fato de os ocidentais verem na morte um tema proibido para reflexões. "Eles infectaram a morte com um vírus terrível, o vírus da culpa. Iam para a morte dominados pelo medo do grande juiz, pois achavam que era o dia do ajuste de contas. Era proibido experimentar o calafrio, a beleza de morrer". A morte asséptica Antigamente o homem convocava familiares e amigos ao redor do leito, passava a cada um suas últimas orientações, confessava as derradeiras vontades e morria. Mesmo as crianças mais pequenas circulavam livremente pela casa, inseridas num ritual que então fazia parte da nossa cultura e cobria a morte de dignidade. "Esse ritual dentro dos lares não acontece mais. Hoje a morte se dá nos hospitais, sem contato dos parentes com o corpo, de maneira bastante asséptica", observou o médico psiquiatra Vicente Augusto de Carvalho, do Instituto Sedes Sapientiae, na segunda palestra do dia. "Aquele corpo é testemunho do fracasso da medicina, um incômodo e por isso o levam para o necrotério de uma forma que ninguém perceba. Não há espaço para morrer nos hospitais". O psiquiatra afirma que esta assepsia reflete o sentimento de onipotência do médico, que só aceita a idéia de curar, sempre. "As visitas do médico diminuem vertiginosamente quando o paciente está fora de possibilidades terapêuticas. A postura do não há mais nada a fazer é um equívoco e precisa ser revista. Há, sim, muito o que fazer pelo paciente terminal e também por sua família. Viúvos e viúvas adoecem duas vezes mais que as outras pessoas, em qualquer faixa etária", atesta. Vicente de Carvalho espera ver a expressão curar substituída por cuidar. Segundo ele, o desejo de salvar vidas tem levado ao avanço da medicina e à longevidade do homem, mas a melhor aceitação da morte pelos profissionais traria maior eficácia nos cuidados de doentes sem chances de cura. "É importante que a gama de conhecimentos adquirida sirva ao indivíduo em toda a sua trajetória: saúde, adoecimento, cura e morte. Nesse sentido começa a surgir uma nova especialidade: a medicina preventiva em cuidados paliativos, voltada para todos os movimentos da vida, com técnicas claras e adequadas para assegurar qualidade de vida mesmo a quem está próximo do final". Gente complicada - Ao se obrigar a curar sempre, o médico comumente é desestabilizado pela angústia, frustração e depressão. "Somos pessoas complicadas. Se formos procurar o porquê de optarmos por fazer medicina ou psicologia, certamente encontraremos fortes razões emocionais", admitiu o médico psiquiatra, antes de apresentar duas pesquisas. A primeira, realizada junto a estudantes de medicina dos Estados Unidos, mostrou que 11% deles apresentavam problemas de somatização no 3º ano do curso, índice que subia a 74% no quinto ano. "É um crescimento muito grande e os cursos também precisam ser repensados", alerta Carvalho. O segundo levantamento, que retoma a relação médico-paciente terminal, é de autoria da pesquisadora Teresinha Klafke e, embora tenha sido feita há alguns anos, não deixa de oferecer parâmetros importantes, na avaliação de Vicente de Carvalho. A pesquisa mostrou que apenas 50% dos médicos conversam com o paciente sobre a doença. A outra metade, que não conversa, apresentou justificativas que vão desde o medo das reações emocionais dos doentes como a depressão, que poderia comprometer o tratamento e acelerar a evolução da doença até o fato de serem latinos, portanto muito emotivos. Ainda nessa metade, 20% alegam dificuldades pessoais (angústia, sentimento de impotência); 13,3% afirmam que até conversariam, mas ainda não passaram pela experiência: e 16,7% simplesmente desconversam quando o paciente fala da doença. "Se o doente toca no assunto é porque sente necessidade de falar; no mínimo, ficaria aliviado", critica Carvalho. Omissão do diagnóstico - A pesquisa questiona, também, se os médicos informam o diagnóstico ao paciente quando a doença é fatal. Quarenta por cento responderam que têm como norma informar ao doente; 23,3% adotam como regra não informar, temendo que o outro abandone o tratamento; e 36,7% disseram que informam "às vezes", sendo que a família freqüentemente pressiona para que se esconda a doença, justificando que o paciente não suportaria. Esta interferência dos familiares mereceu um comentário à parte do psiquiatra: "Se o médico aceitar isso, vai formar um conluio com os parentes, onde se infantiliza o doente, tirando seu poder de decisão, como se fosse um incapaz. Às vezes ele é incapaz, mas quase sempre não é. Embora aparentemente confortável, a omissão é cruel e injusta. Além disso, por mais elaborada que seja a mentira, ela vai se revelar a cada instante, em contatos breves, na gestualidade, num olhar fugaz. E como se sentirá o doente quando perceber que as pessoas nas quais mais confia estão mentindo ?" Vivendo a vida possível "O paciente terminal não é um cadáver e sim alguém que está vivendo intensamente a sua vida possível". Esta premissa norteia a carreira da oncologista clínica Nancy Mineko Koseki, que em 1994 começou a atentar para as dificuldades dos profissionais da saúde em lidar com o sofrimento desses doentes e de seus familiares. "Se não podemos mais oferecer a cura, podemos adotar atitudes humanas que garantam a dignidade do paciente e uma vida com a melhor qualidade que as circunstâncias permitam, independentemente do tempo que lhe resta. Às vezes esses cuidados até prolongam a vida, embora não seja este o propósito inicial", afirma Nancy. Em 98 uma equipe multidisciplinar da Área de Oncologia do Caism começou a oferecer cursos em cuidados paliativos para profissionais de outras cidades, com dois objetivos básicos: multiplicar a prestação do serviço e fazer com que os pacientes sejam assistidos em suas próprias cidades, evitando o desgaste das viagens. "Apenas 10% ou 15% dos doentes são de Campinas. Os demais tinham que se deslocar por 100, 200 e até 600 quilômetros", informa a oncologista. Atualmente toda esta experiência vem sendo transmitida também por meio do Programa Nacional de Educação Continuada em Dor e Cuidados Paliativos. O Seminário de Reflexões sobre a Vida e a Morte foi uma idéia dos próprios profissionais que passam pelos cursos do Caism, com o propósito, cumprido, de enriquecer esta vivência. As mulheres e o afogado "Era uma vila de pescadores perdida no fim do mundo e naquela vila todos os dias as pessoas faziam sempre as mesmas coisas, de modo que não havia nenhuma novidade e todas as pessoas sabiam de antemão o que as outras iam dizer e por causa da enorme monotonia ninguém conseguia mais se amar. Até que um dia aconteceu uma coisa estranha, um menino viu uma sombra diferente flutuando no mar e gritou para a vila toda e naquela vila onde nada acontecia até uma sombra estranha flutuando no mar era motivo de liberdade, de modo que todos correram para a praia e ficaram esperando que o mar pacientemente trouxesse a coisa até a areia e a coisa que o mar colocou na areia era um homem morto, afogado. E na vila era costume que as mulheres preparassem os mortos para sepultamento e pegaram o homem que ninguém conhecia e levaram para uma casa, as mulheres do lado de dentro e os homens do lado de fora, e as mulheres começaram vagarosamente a fazer o seu trabalho de limpeza tirando as algas e os limos e as coisas verdes do mar, em grande silêncio, porque elas não conheciam aquele homem e não havia o que falar sobre ele. Até que de repente, no meio daquele grande silêncio sério, uma mulher disse é, se ele morasse aqui na aldeia teria sempre que curvar a cabeça para entrar em nossas casas, porque ele é alto demais. E todas as mulheres, sérias, fizeram sim com a cabeça e foi novamente grande o silêncio. Até que uma outra mulher disse eu fico imaginando como terá sido a voz desse homem, será que a voz desse homem ecoava forte ou como a brisa, será que esse homem sabia cantar canções ou será que esse homem era daqueles que dizem uma palavra e por causa dessa palavra uma mulher apanha uma flor e a coloca no cabelo?. Todas as mulheres sorriram e fizeram sim com a cabeça. E foi grande novamente o silêncio até que uma outra mulher olhou para as mãos do homem e disse eu fico pensando nessas mãos, no que elas fizeram, será que essas mãos travaram batalhas, será que brincaram com crianças, será que remaram através dos mares, será que acariciaram mulheres, será que essas mãos sabiam amar e abraçar? E nesse momento todas mulheres riram que riram e aqueles homens do lado fora perceberam que aquele corpo podia fazer com as suas mulheres o que eles vivos não conseguiam fazer e eles tiveram ciúmes do morto e começaram a pensar nas batalhas que não tinham travado, nas coisas que não tinham dito, nas mulheres que não tinham amado. E as mulheres começaram a sentir que lá no fundo aves misteriosas começavam a bater suas asas e começaram a sentir que sentimentos e memórias perdidas surgiam de dentro delas e elas ficaram afogueadas de amor. E finalmente enterraram o morto, mas a aldeia nunca mais foi a mesma." Rubem Alves interpretando conto de Gabriel García Marquez, durante o Seminário de Reflexões sobre a Vida e a Morte |
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