A
surdez é uma das deficiências sensoriais mais comuns no
Brasil. Estima-se que entre duas e sete crianças em cada
mil nascidas no país apresentem, em menor ou maior grau,
algum tipo de perda auditiva. Estudos desenvolvidos por
pesquisadores do Centro de Biologia Molecular e Engenharia
Genética (CBMEG) da Unicamp procuram desvendar novos aspectos
relacionados a um tipo específico de surdez, a de origem
genética. Atualmente, uma equipe coordenada pela professora
Edi Sartorato investiga o mecanismo de ação de um gene que,
ao que tudo indica, tornaria as pessoas mais suscetíveis
à perda de audição. “Assim que compreendermos melhor como
esse gene atua, maiores as chances de desenvolvermos métodos
que possibilitem diagnósticos mais precisos e precoces da
alteração”, afirma a cientista.
O grupo coordenado pela professora Edi Sartorato vem investigando
os aspectos genéticos relacionados à surdez desde 1999,
graças a um projeto financiado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). De lá para cá,
os pesquisadores registraram vários avanços, mas também
verificaram que há muito que se aprender nessa área. “Ainda
existem diversas perguntas sem respostas”, admite a pesquisadora.
De acordo com ela, o gene, unidade fundamental da hereditariedade,
é composto pelo DNA nuclear e pelo DNA mitocondrial. O primeiro,
como o próprio nome sugere, encontra-se no núcleo da célula.
O segundo, por sua vez, está localizado nas organelas celulares,
as chamadas mitocôndrias. O DNA é que produz as proteínas
importantes ao funcionamento adequado do organismo humano.
Ocorre, porém, que determinadas mutações no DNA mitocondrial
podem tornar os indivíduos mais suscetíveis à surdez. A
deficiência auditiva pode ser “ativada”, conforme demonstram
alguns estudos, caso a pessoa faça uso de um grupo de antibióticos,
os aminoglicosídeos. “Quando ocorre a mutação genética,
o RNA ribossômico [componente primário dos ribossomos, responsáveis
pela produção de proteínas para as células] fica ‘parecido’
com o RNA ribossômico da bactéria que se pretende combater
com os antibióticos. Dessa forma, a droga acaba por interferir
também no RNA da mitocôndria, aumentando dessa forma a suscetibilidade
do indivíduo à surdez”, explica a professora Edi Sartorato.
Mas
esse tipo de correlação não é tão simples de ser estabelecida,
como faz questão de advertir a pesquisadora. Segundo ela,
existem casos de pessoas que apresentam a mutação genética
e que fizeram uso de aminoglicosídeos, mas não registraram
qualquer perda de audição. Essa situação é classificada
pelos especialistas de “penetrância incompleta”. “Um dos
nossos desafios é saber o motivo dessa variabilidade”, resume
a pesquisadora do CBMEG. Ela explica que as evidências científicas
apontam que, além da questão genética, outros elementos
podem concorrer associativamente para o surgimento da surdez,
tais como os fatores ambientais e os genes nucleares modificadores,
os quais modulam a expressão fenotípica relacionada a essas
alterações.
Ainda que não seja fácil provar que o uso de aminoglicosídeos
por parte dos indivíduos portadores da mutação genética
ajude a ampliar a suscetibilidade à surdez, reforça a professora
Edi Sartorato, existem pistas que indicam para essa possibilidade.
Ela cita o caso de um paciente que a procurou apresentando
um quadro de surdez súbita. Ao analisar o histórico dessa
pessoa, que era portadora da mutação genética, a cientista
descobriu que ela havia utilizado um medicamento administrado
pela via nasal que continha aminoglicosídeos em sua formulação.
“Não é possível assegurar com 100% de certeza que essa tenha
sido a causa da surdez súbita, mas seria muita coincidência.
Por isso é importante que continuemos investigando essas
possíveis interações, pois assim poderemos orientar os indivíduos
que sejam portadores desse tipo de mutação genética a fazer
uso de forma controlada e excepcional desse grupo de antibióticos”,
pondera.
A literatura, informa a pesquisadora do CBMEG, já estabeleceu
a correlação entre um determinado tipo de mutação genética,
a A1555G, e o uso de aminoglicosídeos no que se refere ao
surgimento da surdez. Tal mutação, acrescenta a professora
Edi Sartorato, é relativamente freqüente na população mundial.
Na Europa, por exemplo, ela está presente em um de cada
500 indivíduos. “No Brasil, ela tem menor importância. Entretanto,
aqui nós temos identificado outra mutação, a A827G, que
parece ser mais freqüente em nossa população. Vamos iniciar
uma pesquisa com pessoas com audição normal para checar
em que nível está essa incidência”, adianta.
De acordo com ela, esse tipo de pesquisa é fundamental,
pois a população brasileira é única, tendo em vista a sua
herança genética. “Nossas mitocôndrias não são, evidentemente,
européias. Nossa origem é mais africana. A mutação A1555G,
por exemplo, foi descrita em chineses. Ou seja, é indispensável
que identifiquemos como os brasileiros se comportam em relação
a essas questões, visto que temos nossas especificidades
genéticas”. Atualmente, prossegue a professora Edi Sartorato,
o laboratório coordenado por ela faz, de forma rotineira,
diagnósticos de variadas doenças genéticas. Uma delas é
a Neuropatia Ótica Hereditária de Leber, atividade que vem
sendo desenvolvida em colaboração com a professora Andréa
Trevas Maciel-Guerra, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
da própria Unicamp.
Recentemente, aliás, a imprensa divulgou o caso de uma
família brasileira, moradora do Espírito Santo, composta
por cerca de 300 indivíduos. Vários deles apresentam uma
mutação genética que os tornam suscetíveis à doença de Leber.
Ocorre que o caso está sendo estudado por cientistas estrangeiros,
em razão de os exames genéticos terem sido remetidos pelos
médicos para centros de diagnóstico do exterior. “Isso me
surpreendeu muito, uma vez que fazemos esse tipo de diagnóstico
rotineiramente em nosso laboratório, a um custo extremamente
baixo. Uma das conseqüências de um caso como esse é que
estamos perdendo a chance de pesquisar e de publicar os
resultados das investigações, além é claro de ajudar no
tratamento dessas pessoas”, lamenta a professora Edi Sartorato.