Jornal
da Unicamp – O Oficina mimetizou muitas influências que
vão, entre outras, de Artaud ao ideário modernista. Entretanto,
adquiriu – e levou adiante – uma linguagem própria, sem
renegar essas contribuições. Quais os pontos que o senhor
destacaria dessas conexões e da identidade construída pela
companhia?
Armando Sérgio da Silva – O Oficina sempre foi considerado
uma espécie de sismógrafo registrando o que havia de novo.
Ao longo de sua história, esteve invariavelmente ligado
a pesquisas realizadas no âmbito do teatro internacional.
O grupo surgiu dentro da Faculdade de Direito do Largo de
São Francisco. Durante a fase amadora, que durou de 1958
a 1961, encenaram peças fundamentalmente autobiográficas
que enfocavam a origem pequeno-burguesa de seus principais
componentes.
Destacam-se nesta fase o Teatro a Domicílio, época em que
faziam algumas peças curtas na casa de pessoas ricas para
angariar fundos e a participação em festivais, num dos quais
o grupo foi premiado com apresentações no Teatro de Arena.
É justamente em razão desta aproximação, principalmente
com Augusto Boal, que havia feito o curso no Actor’s Studio,
que vem a primeira fase de pesquisa denominada por mim de
“assimilação de técnica e cultura contestatória norte-americana”.
Nesta
época destacou-se a montagem de A Vida Impressa em Dólar,
de Cliford Odets, que marcou a estréia profissional do grupo
junto com a construção do teatro da Rua Jaceguai. Logo depois
o grupo passa a ter influência de [Constantin] Stanislavski,
via Eugenio Kusnet, que havia sido aluno no Teatro de Arte
de Moscou. A encenação de Os Pequenos Burgueses [1963],
de Máximo Gorki, é considerada uma das melhores montagens
do realismo no teatro brasileiro. Em seguida, José Celso
Martinez Corrêa [Zé Celso] vai fazer estágio no Berliner
Ensemble, a casa de Bertolt Brecht. Quando ele volta, passa
a encenar um teatro mais engajado, de cunho político-social.
Isso fica demonstrado em dois espetáculos: Andorra [1964],
de Max Frisch, e Os Inimigos [1966], de Máximo Gorki.
Na verdade, todas essas influências não eram assimiladas
simplesmente de um modo didático. Elas eram “antropofagizadas”
pelo grupo, sobretudo por Zé Celso, que era o mais inquieto
deles. Em seguida, eles vão fazer um curso no Rio de Janeiro
com Luis Carlos Maciel, que pregava um trabalho mais de
fora para dentro. Vem daí a idéia de encenar O Rei da Vela,
de Oswald de Andrade, que, na minha opinião, representava
a estética mais próxima do Oficina na época – sua marca
era a cultura brasileira. Eles buscavam uma estética de
interpretação brasileira, baseada na chanchada, no circo
etc. Na minha opinião foi o espetáculo mais original do
grupo.
JU
– Qual foi, na sua opinião, o papel do grupo na eclosão
do tropicalismo? Em que medida as manifestações levadas
a cabo pelo Oficina se diferenciaram ou se aproximaram das
registradas em outros campos, entre os quais a música, o
cinema, as artes plásticas etc?
Armando Sérgio da Silva – Na verdade, Caetano Veloso
começou a compor e a pensar no tropicalismo dentro do Oficina.
A encenação de O Rei da Vela foi, sem dúvida nenhuma, a
origem do movimento. A influência, portanto, é direta. O
que era o tropicalismo? Era a coisa da contracultura, do
“desbunde”, entre outros elementos, todos presentes em O
Rei da Vela e, de certa maneira, nas artes plásticas, no
cinema – Glauber Rocha, por exemplo – e em outras áreas
da arte. Tratava-se, na verdade, da ponta do iceberg. Era
o pessoal que estava na vanguarda, que buscava a retomada
da cultura brasileira por meio do Manifesto Antropofágico
e de outros elementos. Tudo isso criou uma identidade comum
que desaguou no movimento.
JU – Algumas das peças do Oficina despertaram
a reação de setores conservadores e de parte da crítica,
embora suas encenações jamais se enquadraram no figurino
clássico do engajamento. A que o senhor atribui essas reações?
Armando Sérgio da Silva – Na verdade, quando o Oficina
parte para o deboche, para a coisa mais ofensiva, menos
racional, o grupo amplia o espectro da obra do Brecht, cujo
teatro foi feito para reflexão. E Zé Celso, naquele momento,
estava querendo mais um teatro voltado para a contracultura
e que desestruturasse um pouco uma discussão apenas racional
sobre a realidade do país.
Nesse
sentido, Zé Celso começa a pensar um pouco nas coisas do
[Antonin] Artaud, ou seja, voltadas para a participação
e o envolvimento da platéia e não simplesmente apenas para
o seu componente, digamos, contemplativo. O que aconteceu?
Parte da crítica reagiu negativamente. Paulo Mendonça, por
exemplo, crítico da Folha de S. Paulo, não foi assistir
Roda Viva. Ele temia ser agredido... Roda Viva, nesse sentido,
foi muito contestada.
Até O Rei da Vela, as coisas não funcionavam assim. Os
parâmetros críticos eram mais flexíveis, até porque o filão
era Oswald de Andrade. Na verdade, Zé Celso não foi contra
a obra de Oswald. Segundo Décio de Almeida Prado, por exemplo,
ele foi além. Com poucas exceções, a crítica aceitou o espetáculo.
Já em Roda Viva houve realmente uma cisão. Tratava-se de
um espetáculo muito violento do ponto de vista conceitual.
Os críticos boicotaram, alegando que a montagem era uma
agressão. O próprio Anatol Rosenfeld dizia que Zé Celso
estava agredindo e que ele pressupunha que haveria o revide,
o que na verdade aconteceu.
JU – O senhor está se referindo à reação de
grupos ligados ao regime militar?
Armando Sérgio da Silva - Exatamente. O
Comando de Caça aos Comunistas [CCC], por exemplo, invadiu
o teatro e espancou os atores. O que alguns críticos previam,
portanto, acabou por acontecer. O público brasileiro da
época não estava acostumado com a linguagem, com a comunhão
proposta pela companhia. Parte da sociedade sentia-se profundamente
agredida com Roda Viva. O espetáculo não atingia o aspecto
político no campo da luta de classes, mas pegava pesado
no aspecto moral.
A
partir de Roda Viva, apesar de alguns retrocessos, Zé Celso
trilhou um caminho sem volta. Havia um divisão muito grande
entre os líderes do Oficina. Fernando Peixoto, por exemplo,
era mais racional, enquanto Zé Celso era mais de vanguarda,
atirado.Os espetáculos subseqüentes foram fruto, de uma
certa maneira, dessas discussões. Zé Celso não se enquadrava.
O Oficina e muitos outros seguidores do tropicalismo –
Caetano, inclusive – eram vistos com desconfiança por todos
os lados, inclusive pela esquerda. Eles pregavam uma revolução
não apenas política, mas também de comportamento.
A provocação, portanto, não era só ideológica e de luta
de classes, o que irritava mais ainda setores da direita.
Havia uma tentativa, por parte do Oficina, de confrontar
a moral cristã. O resultado foi o choque, mesmo porque o
discurso da direita era calcado na família, na tradição
e na propriedade – basta ver as passeatas e as manifestações
da época. E o Oficina mexia profundamente com esse tripé.
JU
– As décadas de 60 e 70 foram pródigas em encenações renovadoras
na cena teatral brasileira. Nesse contexto, o que diferenciava
o Oficina do Arena?
Armando Sérgio da Silva – Os dois grupos foram fundamentais
na renovação do teatro brasileiro. O Arena era muito ligado
ao Partido Comunista. Toda a estética do Arena estava fundamentada
na dialética marxista. Os espetáculos dirigidos pelo Boal
eram maravilhosos – eu comecei a fazer teatro por causa
de suas peças, que eram realmente inovadoras. Trata-se de
uma estética alegre, fantástica, cujo sentido era dialético,
brechtiano mesmo. O teatro era visto como reformador da
sociedade. O Oficina era o contrário. Seus integrantes não
sabiam muito bem qual era a verdade – eles usavam o espetáculo
para entender o processo. Essa é uma diferença importante:
enquanto o Arena era o dono da verdade, o Oficina a procurava.
E, nessa busca, eles se auto-imolavam, quase que se destruíam...
Se
para o Arena o teatro servia como instrumento de educação
do povo, para o Oficina o teatro servia como instrumento
de revolução de seus próprios integrantes. Era, portanto,
uma revolta existencialista com reflexos políticos na medida
em que eles faziam parte da sociedade, da classe média.
Eram todos pequenos burgueses. Em resumo: enquanto o Arena
ensinava uma ideologia, o Oficina procurava descobrir uma
ideologia possível. Tanto é assim que mais tarde passaram
por Grotowisk – Na Selva das Cidades, para quem a personagem
não é um fim mas um meio, uma espécie de bisturi para que
o ator se modifique e se reconheça melhor – e acabaram chegando
ao Te-ato (Gracias Señor), que significava tirar a máscara
na procura de um novo tipo de relacionamento entre as pessoas,
ou seja, o fim do “Teatro Instituição”.
JU - O Oficina encenou ao longo de sua história
autores de matizes muitos diferentes, mas manteve-se – e
mantém-se – na vanguarda. Como seus integrantes conseguiram
preservar essa proposta?
Armando Sérgio Silva – É preciso deixar
bem claro que o sucesso do Oficina não era apenas o Zé Celso.
Foi, na verdade, a confluência de cabeças que se digladiavam
com freqüência. Além dele, em diferentes momentos, havia
Eugenio Kusnet, Renato Borghi, Fernando Peixoto, Ítala Nandi
e muitos outros. Havia uma troca muito grande. Na verdade
era um processo dialético.
Todo
grupo que tenha uma liderança muito forte, no qual não existam
cabeças que possam contestar essa liderança, acaba ficando
burocrático. É o que acontece hoje com alguns grupos de
São Paulo. No Oficina, não. Havia em seu interior uma briga
sem trégua. Essa cisão os impulsionava. Isso não é fácil
de acontecer. Essa congruência resultou na própria dimensão
adquirida pelo grupo. O debate sobre o teatro predominou
o tempo inteiro.
JU – Qual foi, na sua opinião, o maior legado
deixado pelo Oficina ao longo dessa trajetória?
Armando Sérgio da Silva – Acho que a principal influência
do Oficina é o fato de seu elemento central ser a pesquisa.
Eles sempre tiveram liberdade, e jamais se renderam a teses
já estabelecidas. Nunca fizeram concessões. Na verdade,
a companhia é uma atitude. Seus integrantes sempre buscaram
o diálogo com o público e sempre pensaram o teatro como
uma coisa em evolução. E o Oficina continua polêmico e com
uma pesquisa bastante consistente e original, embora evidentemente
não seja mais o único grupo a fazê-la.
JU
– Em que medida, na sua opinião, as pesquisas acadêmicas
têm colaborado para o surgimento de espetáculos esteticamente
mais ousados?
Armando Sérgio Silva - Sou muito
otimista em relação à pesquisa no teatro. No momento, por
exemplo, dirijo o Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica
do Ator [CEPECA] na USP. São vários jovens, cada um com
uma linha de pesquisa, que terão, como resultado, espetáculos.
Evidentemente que todas essas pesquisas terão resultados
mais consistentes mais lá na frente. Não tenho dúvida de
que elas podem inclusive representar, em alguns anos, uma
importante contribuição para o teatro brasileiro.
JU
– O rebote acontecerá mais adiante.
Armando Sérgio da Silva – Exatamente. Na pesquisa,
o resultado nunca é imediato. É preciso ter liberdade e
tranqüilidade. É lógico que alguns espetáculos têm resultados
parciais, mas não é isso que move a pesquisa. No meu caso,
na condição de coordenador, o pesquisador tem toda a liberdade
para levar adiante seu projeto.
Vou dar um exemplo: o Lume [Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas
Teatrais da Unicamp]. Eu acompanhei o grupo, desde o início.
Fui inclusive da banca de doutorado do Luís Otávio Burnier,
fundador da companhia. Na época, as pesquisas estavam começando.
Hoje, o Lume está apresentando trabalhos que podem ser considerados
a cristalização de uma postura. Eu considero o Lume hoje
o grupo mais importante do país no que diz respeito à pesquisa
acadêmica.
A principal função da academia é difundir conhecimentos,
repassando-os para a comunidade. Acho que a universidade
é um dos pólos mais importantes de pesquisa das artes cênicas
no país. Diferentemente do teatro convencional, essas coisas
demoram para se consolidar, mas muitas vezes, em contrapartida,
são mais consistentes.
JU
– Qual o principal foco de suas pesquisas?
Armando Sérgio Silva – É a coordenação de pesquisadores
na área de interpretação. Na verdade, trata-se de uma abertura
para o jovem pesquisador ter liberdade. Meu objetivo é que
essas pessoas consigam finalizar suas investigações sem
a minha interferência. E eu procuro orientar mais em termos
de reflexão, não imponho uma metodologia. Como disse anteriormente,
tenho atualmente oito pesquisas, nas quais os respectivos
espetáculos já vão poder mostrar caminhos. Nos reunimos
todas as semanas, discutindo cada um o seu processo. Essas
pessoas, no futuro, vão continuar seus trabalhos por conta
própria e certamente vão obter resultados muito mais profundos.
É um trabalho de longo prazo, sem pressa.
JU - Que avaliação o senhor faz da cena teatral
brasileira de hoje?
Armando Sérgio da Silva – Ela é muito difusa. Temos
espetáculos de todos tipos – desde os comerciais, passando
por “franquias” da Broadway até grupos de muita consistência,
como é o caso do Tapa e de Os Satyros ou do próprio Oficina
– cometo aqui uma injustiça por não citar todos os grupos
importantes. Temos uma riqueza muito grande. Ocorre que,
normalmente, a imprensa dá mais valor às coisas digeríveis.
Existe lugar para todo mundo, mas era possível uma discussão
mais ampla acerca das coisas que não são assim tão digeríveis.
Antigamente, eram poucos grupos que faziam pesquisas. Hoje,
em São Paulo, temos 40, 50 pesquisas em andamento. Tem tanta
coisa acontecendo que o mapeamento total torna-se quase
impossível.
Quem é