A concessão de indenizações milionárias a perseguidos durante
a ditadura e discussões sobre a punição de militares que
torturaram presos políticos acenderam holofotes recentemente
sobre a Lei da Anistia, quase trinta anos após a sua promulgação
no Brasil, em 1979. Polêmicas à parte, os episódios serviram
para revelar que a condução do processo de acerto de contas
do país com o seu passado de repressão está longe de satisfazer
o que recentemente se convencionou chamar de “justiça de
transição”. O tema é objeto de estudo da jornalista e doutora
em Ciência Política pela USP Glenda Mezarobba. Autora do
livro Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas
conseqüências - um estudo do caso brasileiro (Humanitas/Fapesp,
2006), ela cursará pós-doutorado na Unicamp e, orientada
pelo professor Andrei Koerner (IFCH), pesquisará a política
norte-americana de direitos humanos para países do Cone
Sul a partir dos anos 80. “Além da pertinência explicitada
pela manutenção, em graus distintos, do quadro de violações
de direitos humanos nos países envolvidos no projeto, constata-se
também que a influência dos EUA, na formulação de políticas
de direitos humanos, ainda permanece pouco estudada”, justifica.
Nesta entrevista, a especialista analisa as iniciativas
reparatórias brasileiras.
Jornal da Unicamp - O que é justiça de transição?
Como esse mecanismo ajuda os Estados a lidar com legados
de violência de regimes autoritários e contribui para o
fortalecimento da democracia?
Glenda Mezarobba - De forma muito simplificada,
pode-se dizer que a noção de justiça de transição diz respeito
à área de atividade e pesquisa voltada para a maneira como
as sociedades lidam com o legado de violações de direitos
humanos, atrocidades em massa ou outras formas de trauma
social severo, ao término de um período de repressão ou
conflito armado, com vistas à construção de um futuro mais
democrático e pacífico. Tal concepção é pensada em termos
de transformação política (de uma ditadura para uma democracia,
por exemplo) e, para que essa transformação efetivamente
ocorra, são utilizadas diversas estratégias judiciais e
não-judiciais. Nos últimos anos, a comunidade internacional
avançou bastante nesse sentido, o que equivale a dizer que
já reconhece que o legado de graves e sistemáticas violações
gera obrigações aos Estados, não apenas em relação às vítimas,
mas às próprias sociedades. São pelo menos quatro esses
deveres: 1) investigar, processar e punir os violadores
de direitos humanos; 2) revelar a verdade para as vítimas,
seus familiares e toda a sociedade; 3) oferecer reparação
adequada e 4) afastar os criminosos de órgãos relacionados
ao exercício da lei e de outras posições de autoridade.
JU - Quando e como surgiu o seu interesse pelo
tema?
Glenda - Foi no final dos anos 90, na Alemanha, quando eu
ainda atuava como jornalista e onde tive oportunidade de
fazer algumas reportagens sobre aspectos emblemáticos da
temática de justiça de transição (embora ignorasse o conceito
e desconhecesse sua literatura acadêmica) como o processo
contra um guarda do Muro de Berlim e o tratamento dado aos
arquivos da Stasi, a temida polícia secreta da Alemanha
Oriental.
JU – Quais exemplos e resultados de adoção de justiça de
transição existem no mundo?
Glenda - São inúmeros os exemplos e incluem, para citar
apenas alguns países, a Alemanha, a África do Sul, o Timor
Leste, os países do Leste europeu, Argentina, Brasil, Chile,
Uruguai, Paraguai, Israel, Iraque e Palestina e situações
muito diversas como guerras, conflitos civis, segregação
racial, ocupação de países, ditaduras militares e governos
autoritários. É possível avaliar as iniciativas de acordo
com o cumprimento das obrigações dos Estados envolvidos,
conforme citado anteriormente. Os resultados são muito distintos
e têm a ver com a realidade e as possibilidades de cada
país.
JU – O Brasil vem conduzindo adequadamente
o acerto de contas com as vítimas da ditadura?
Glenda - Até o momento, tem-se claro que o processo nacional
de acerto de contas priorizou apenas o dever de reparar
e mesmo assim, na minha interpretação, o fez de forma bastante
equivocada. Uma importante iniciativa oficial em termos
de verdade foi a publicação, no final do ano passado, do
livro Direito à Memória e à Verdade, pela Secretaria Especial
dos Direitos Humanos. Mas ainda há muito por fazer. Os militares,
por exemplo, precisam não apenas reconhecer os crimes do
período, abrir seus arquivos secretos e colaborar na localização
dos despojos das vítimas fatais, como também pedir perdão
aos sobreviventes e aos familiares dos mortos e desaparecidos.
JU
– Qual é a sua opinião sobre iniciativas do governo Lula,
como a Caravana da Anistia, para tentar reparar os abusos
cometidos no passado?
Glenda - Sem dúvida alguma, ações como as realizadas
pela chamada Caravana da Anistia, especialmente a de tornar
pública e acessível a memória do período, são importantes
num esforço reparatório. Na minha interpretação, no entanto,
não faz sentido que iniciativas desse tipo sejam concebidas
e designadas da forma como estão sendo. Não seria, por exemplo,
mais apropriado denominá-la de Caravana da Memória? Por
que não abandonar a noção de anistia, que em sentindo amplo
quer dizer esquecimento, perdão? A Comissão de Anistia também
deveria repensar sua denominação, talvez passando a se chamar,
por exemplo, Comissão de Reparação às Vítimas do Regime
Militar, conforme prevê a legislação.
JU - Alguns integrantes do governo, como o
ministro Tarso Genro, da Justiça, querem que o Judiciário
declare que a Lei da Anistia não abrange crimes como tortura,
o que permitiria o julgamento de militares envolvidos na
repressão. Qual é a sua opinião sobre essa polêmica?
Glenda - Já passou da hora de o Judiciário desempenhar o
seu papel de forma mais efetiva nesse processo de acerto
de contas, até agora protagonizado essencialmente pelos
poderes Executivo e Legislativo. No Brasil, ao contrário
do que aconteceu na Argentina, por exemplo, e bem define
Catalina Smulovitz (diretora do Departamento de Ciência
Política e Estudos Internacionais da Universidade Torcuato
Di Tella, na Argentina, e especialista em Sociologia Jurídica),
nessa questão o Judiciário ainda não se mostrou “um lugar
onde os direitos dos cidadãos poderiam ser realizados”.
A tortura é crime comum e como tal deve ser punida. Se isso
não bastasse, é preciso enfatizar que a Lei da Anistia não
cita o crime de tortura e notórios juristas já demonstraram
claramente que seu texto não abrange tal suplício. O que
permanece até hoje é a interpretação que se deu à Lei da
Anistia, ainda durante o regime militar, de que nenhum agente
do Estado responderia pelos crimes cometidos. Mas, como
se sabe, o Brasil está obrigado, inclusive por princípios
do Direito internacional, a processar e julgar acusados
de graves violações de direitos humanos, caso não apenas
da tortura, mas também dos desaparecimentos forçados e das
execuções extrajudiciais. Afinal, há muito se tem claro
que crimes contra a humanidade são imprescritíveis e não
passíveis de anistia.
JU - Outros países sul-americanos, como Argentina
e Chile, têm julgado indivíduos acusados de violar os direitos
humanos durante o regime militar. O Brasil pode aprender
com esses exemplos?
Glenda - Cada país deve percorrer seu próprio caminho
ao lidar com o legado de violações em massa, o que não equivale
a dizer que é impossível aprender com a experiência dos
demais. Sem dúvida alguma, o Brasil poderia avançar mais,
em termos de respeito e promoção aos direitos humanos, se
olhasse para o que vem sendo feito na Argentina e no Chile,
desde a retomada democrática. O que minha tese demonstra
é que para avançar é preciso considerar não apenas o grau
de violência que atingiu cada país e o tipo de transição
enfrentada, mas também vários outros aspectos, como, por
exemplo, o arcabouço institucional e o papel desempenhado
pelo movimento de direitos humanos e por instituições internacionais.
JU - Os valores de indenizações às vítimas
da ditadura não são generosos demais, para um país pobre
como o Brasil, a ponto de receberem por parte da mídia a
expressão pejorativa de “bolsa-ditadura”? Os critérios de
concessão não deveriam ser melhor definidos?
Glenda - Em primeiro lugar, é preciso ter em mente
que não existe programa de reparação que tenha conseguido
compensar as vítimas na proporção do dano sofrido. Isto
posto, cabe observar que mais do que “generosos demais,
para um país pobre como o Brasil”, os valores das indenizações
pagas às vítimas do regime militar estão equivocados porque
não se pautam pelas mais graves violações de direitos humanos
(tortura, morte e desaparecimento forçado). Fica claro que,
ao relacionar os benefícios a serem concedidos (no caso
da Comissão de Anistia) a rendimentos não percebidos, em
vez de aos crimes sofridos, o Estado brasileiro falhou na
busca do reconhecimento de indivíduos como cidadãos com
os mesmos direitos. Ao agir assim, acabou identificando
de forma desigual não apenas o significado e o valor das
pessoas, mas também seus direitos. Da forma como vê sendo
conduzido até agora, o esforço reparatório brasileiro sugere
que as perdas profissionais constituem prejuízo maior do
que o suplício da tortura levado a extrema conseqüência.
Trata-se de preocupante inversão de valores, em que direitos
outros, que obviamente também merecem plena consideração,
aparecem antes do direito à vida, à liberdade, à integridade
física e à segurança pessoal.
JU - O Estado pede perdão e indeniza vítimas
que perseguiu no passado, mas a violência dos aparatos policiais
permanece como um problema atual, com pessoas sendo torturadas
em lugares controlados pelo Estado. Essa questão, que no
fundo é a do desrespeito aos direitos humanos, não está
sendo tratada de forma desigual?
Glenda - Uma coisa está muito ligada à outra. Ainda que
a violência seja constitutiva da história brasileira, e
a prática de tortura, muito anterior ao regime militar,
sem dúvida alguma o fato de o Estado não ter, na transição
para a democracia, se dedicado a lidar com os crimes cometidos
pelo aparato repressivo não contribuiu em nada para que
essa situação se modificasse. Daí a presente necessidade
de se tratar de um tema que, para muitos, deveria permanecer
no passado. Desconfio que os níveis de violência nacional
poderiam ser bem menores se o país já tivesse confrontado
essas questões. Como a literatura sobre justiça de transição
sugere, julgamentos de acusados de graves violações de direitos
humanos, por exemplo, contribuem não apenas para deslegitimar
regimes autoritários, como também para desacreditar ideologias
como a que deu sustentação à ditadura instalada em 64 e
para o reconhecimento de que, nestes termos, o novo regime
não representaria uma continuidade. Além de contribuir para
um inequívoco estabelecimento da memória do período, julgamentos
também são importantes para separar a responsabilidade coletiva
da responsabilidade individual e, com isso, possibilitar
o ciclo sem fim de recriminações de grupo, como o que vemos
até hoje, no caso brasileiro.