Inteirar-se
dos trabalhos desenvolvidos no Centro Pluridisciplinar de
Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA) da Unicamp
é sempre muito estimulante. Pelas suas características,
o Centro situa-se entre a academia e a produção industrial
e agrícola, desenvolvendo produtos mais elaborados, escoimados
de dificuldades que teriam que ser enfrentadas pelos sistemas
de produção. Para atingir tais objetivos, conta com um grupo
de pesquisadores com as mais variadas características e
capacidades, o que lhe confere caráter interdisciplinar
e conseqüentemente uma diversificada infra-estrutura. Essas
circunstâncias permitem ao Centro agregar valor aos objetos
de suas pesquisas, facilitando sobremaneira a aplicabilidade
dos resultados obtidos.
Esta visão geral permeia o desenvolvimento da linha de
pesquisa “Produtos naturais bioativos”, coordenada por Mary
Ann Foglio, que procura identificar substâncias com potencial
medicamentoso. Química especialista em fitoquímica, que
estuda os componentes químicos das plantas, o seu trabalho
envolve a preparação dos extratos; a identificação das substâncias
bioativas neles contidos; a elucidação de suas estruturas;
a determinação de métodos para transformá-las com o objetivo
de potencializar efeitos e diminuir toxidades; o desenvolvimento
de metodologias de controle de qualidade; a validação de
metodologias utilizadas; e a formação de recursos humanos
para o desenvolvimento de todas essas atividades.
Seus trabalhos são realizados em parceria com o farmacêutico
Rodney Alexandre Ferreira Rodrigues, que realiza pesquisas
ligadas à farmacotécnica, que envolvem a preparação de fármacos,
estudando a estabilidade, a toxidade e as formulações adequadas
para os extratos medicinais.
Mary Ann diz que a idéia geral é, a partir de informes
etnofarmacológicos – que correspondem ao conjunto de conhecimentos
farmacológicos de práticas tradicionais de uma população
ou sociedade nativa de uma região – identificar substâncias
contidas em plantas, confirmar-lhes as propriedades que
lhe são atribuídas e tentar viabilizar para o mercado produtos
que tragam benefícios à sociedade. Entretanto, pondera a
cientista, “para isso não basta identificar a substância
e estudar o seu mecanismo de ação: precisamos viabilizar
a utilização do produto. Para obter o registro de um produto
é preciso garantir sua eficácia, que está relacionada à
funcionalidade; sua segurança, que está afeita à ausência
de toxidade e à dose correta em que deve ser aplicado; e
sua padronização, que exige uma certa uniformidade da matéria
prima vegetal utilizada”. E é aí que considera o papel de
Rodney Alexandre Ferreira Rodrigues extremamente importante
quanto aos estudos de estabilidade e formulação, pois são
eles que vão garantir em que condições e por quanto tempo
o produto se mantém adequado para o consumo. Ainda cabe-lhe
determinar o tipo de apresentação: em injeção, em cápsulas,
na forma de supositório, pomada, creme etc.
Rodrigues lembra que essa linha de pesquisa foi iniciada
por Mary Ann há cerca de 14 anos. A idéia foi sempre partir
de produtos que vêm sendo estudados e agregar-lhes valor.
A Pterodon Pubescens Benth, popularmente conhecida com sucupira,
foi uma das espécies pelas quais ela optou, devido aos seus
propalados efeitos antiinflamatórios e de combate à dor.
Popularmente ela é utilizada macerada em álcool ou água
para curar dores e inflamações em geral.
O primeiro trabalho do grupo, lembra Mary Ann, foi orientado
pelo professor João Ernesto de Carvalho, biomédico com formação
em farmacologia. Nesse trabalho, Carina Denny, sua orientada,
procurou confirmar o efeito antiinflamatório. Como inflamação
e dor são distintas, um segundo estudo de mestrado, desenvolvido
por Humberto Moreira Spindola e orientado por Mary Ann,
deteve-se no efeito sobre a dor. Os dois trabalhos de mestrado
confirmaram esses efeitos. Agora, no doutorado, Spindola
dá continuidade à pesquisa dedicando-se a desvendar os mecanismos
de ação da sucupira na inibição da dor.
A pesquisadora acrescenta que na literatura há referências
de que muitos mecanismos de inflamação estão relacionados
com caminhos que também podem inibir o desenvolvimento de
células cancerígenas. Os resultados a que o grupo chegou
mostram-se promissores em relação à linhagem do câncer da
próstata. E esta constitui a sua maior descoberta.
O
que foi feito
Os pesquisadores partiram do óleo fixo, não volátil, da
semente de sucupira e tentaram verificar os componentes
da grande mistura que o constituem. A planta produz, para
subsistir, uma série de substâncias como mecanismo de defesa
e de adaptação ao meio em que se encontra. Dessas conseguiram
isolar varias já conhecidas e relatadas na literatura e
uma inédita, que se revelou particularmente interessante
na inibição da linhagem de células do câncer de próstata
em estudos in vitro. Agora estão sendo iniciados os estudos
para o combate às células cancerígenas em animais. Confirmados
os resultados positivos, o passo seguinte será o estudo
do mecanismo de ação, a exemplo do que também estão fazendo
em relação à dor.
Contrariando a crença popular de que o que é natural não
faz mal, mito que os pesquisadores fazem questão de desfazer,
as substâncias que as plantas produzem são muitas vezes
tóxicas ou o organismo humano não consegue digeri-las ou
assimilá-las. Por isso, impõe-se um cuidadoso estudo da
ação das moléculas e até introduzir-lhes transformações
químicas que levem à diminuição da toxidade e aumento da
segurança, potencializando inclusive a ação. Mary Ann diz
que “isso é feito diante da necessidade de aumentar a eficiência
e a segurança, garantindo uma padronização, de forma que
em todos os lotes produzidos tenha-se o mesmo produto”.
Os critérios
Como a sucupira apresenta uma gama muito grande de substâncias,
os pesquisadores isolaram algumas delas adotando como critério
a atividade. Para isso o extrato foi inicialmente separado
em três frações com características diversas, sendo selecionada
a mais reativa, que apresentou caráter hidrofílico. Esse
grupo foi então separado em outros até que se chegou a um
com cerca de 30 substâncias, das quais ao final foram isoladas
e devidamente identificadas sete. A partir destas foram
feitas várias modificações nas estruturas, mantido o esqueleto
básico, e chegaram a alguns compostos com o objetivo de
comparar atividades e toxidades. Verificaram que a introdução
de alguns grupos funcionais em determinadas posições melhorava
a atividade da molécula e diminuíam o efeito tóxico.
Mas o grupo já havia anteriormente, quando da separação
e identificação das cinco primeiras substâncias, procurado
entender porque apresentavam diferentes atividades. Verificaram
então que o esqueleto básico era o mesmo e ocorriam apenas
variações na natureza e na posição dos substituintes, o
que influenciava drasticamente as respostas observadas.
Entre as cinco moléculas inicialmente identificadas, encontraram
uma ainda não descrita na literatura, inédita, e que apresentava
atividade muito superior às das moléculas já conhecidas.
Outra constatação foi a de que os produtos encontrados
resultavam da decomposição de compostos que estavam na semente,
mas que não se encontravam originalmente nelas e que apresentam
uma atividade maior do que as substâncias originais da semente.
Agora estão tentando entender esse comportamento e verificando
como ele se dá durante o período de estocagem, fundamental
para utilização farmacológica que persegue a padronização
do produto final.
A propósito, os pesquisadores enfatizam que um dos objetivos
da linha de pesquisa é permitir o isolamento de substâncias
de plantas com vistas a utilizar o princípio ativo em medicamentos.
Mas igualmente pode-se desenvolver um medicamento fitoterápico,
que resulta da mistura de substâncias, que deve ter composição
determinada e por isso padronizada.
Mary Ann considera que a observação da grande relação entre
a atividade antiinflamatória e anticancerígena permitiu
trabalhar com modelos in vitro, que requerem muito menos
substâncias, o que permitiu agilizar o trabalho.
Ela entende ainda que o trabalho, além de valorizar nossas
riquezas, pode conduzir a novas substâncias, capazes de
tratar doenças antiinflamatórias, dores e determinadas variedades
de câncer. Esse é o grande desafio. Rodrigues acrescenta
que a sucupira é uma planta do Cerrado, bioma que tem se
mostrado tão ou até mais interessante que a própria Amazônia.
Considera que esse apelo ecológico constitui uma razão para
defender sua preservação.
Os estudos dos pesquisadores permitem ainda verificar se
a substância isolada funciona melhor que a mistura. Dizem
que hoje em dia há uma crescente tendência de destacar o
sinergismo das misturas. Mary Ann afirma: “Uma substância
pura tem a grande desvantagem dos efeitos colaterais e muitas
vezes as misturas já contêm os componentes que inibem a
toxidade. Está se retomando de forma muito intensa a revalorização
do uso de medicamentos fitoterápicos”.
Com o objetivo de melhorar a estabilidade dos extratos
e substâncias isoladas, eles são submetidos aos estudos
de microencapsulação. Para isso se usa a técnica do Spray-dryer-SD
(atomização e secagem), em que uma mistura de uma emulsão
constituída de óleo fixo da substância, de água e de um
polímero (como goma-arábica) é submetida no SD a uma corrente
de ar seco. Resultam microcápsulas de óleo, em que o polímero
constitui o envoltório. O que se pretende com isso é verificar
o que tem efeito melhor, o óleo ou a substância pura. O
revestimento levaria a um efeito tóxico? Se o produto encapsulado
continua com a atividade, pode-se pensar no desenvolvimento
de vários produtos, de pomadas antiinflamatórias até o medicamento
para tratamento de câncer.