Dor
de dente, como já é sabido, tira qualquer um do sério. Invariavelmente,
ela começa com um bombom a mais ali ou com a falta de escovação
adequada. Tais situações se repetem até que um pequeno orifício
surge no dente. No início da cárie, a dor aparece apenas
com o sorvete gelado ou a sopa quentinha. Mas, assim que
ela atinge a polpa dentária, uma dor muitas vezes insuportável
toma conta da pessoa. Seja por falta de recursos financeiros
ou até mesmo por medo do tratamento, o fato é que é enorme
a chance de uma situação como essa terminar com a extração
do dente dolorido. Não é à toa que o Brasil tem, segundo
estatísticas, 30 milhões de desdentados.
Para enfrentar a perda dentária – um dos maiores problemas
de saúde bucal do país –, o doutorando Sergio Tadeu Bernatavicius,
do Laboratório de Biomateriais da Faculdade de Engenharia
Mecânica (FEM), debruçou-se sobre a possibilidade da criação
de algo que substituísse o caro e complexo tratamento de
canal. Sua idéia era aplicar sobre a polpa do dente afetado
um material que não causasse a morte do tecido vivo contaminado,
não causasse dor nem infecção e ainda estimulasse a produção
de um tecido duro chamado dentina. Microesferas de PLLA
(Poli (L-ácido-lático)) foram a resposta encontrada a esse
problema.
Bernatavicius
conta que até os dias atuais, uma pessoa com um dente cavitado
(termo técnico que significa corroído) até a polpa pela
cárie, tinha duas opções: submeter-se ao tratamento de canal
ou ter o dente extraído. Ocorre que tratar o canal “mata”
esse dente, pois todo o tecido vivo contaminado é retirado
durante o procedimento. “O surgimento de uma futura cárie
nesse dente, tanto entre ele e seus vizinhos como abaixo
da gengiva, faz com que o paciente não sinta dor até o momento
em que nada mais pode ser feito além da exodontia (extração
do dente). Dor é uma coisa horrível, mas é ela quem nos
indica que algo está errado”, relata Bernatavicius.
Ao invés de acabar com a vitalidade do dente ao tratar
seu canal, as microesferas de PLLA são um polímero que,
aplicado sobre a polpa dentária, degradam-se e liberam no
organismo uma determinada substância de modo controlado.
No seu trabalho de dissertação de mestrado defendido em
2004, Bernatavicius associou ao PLLA antiinflamatório e
antibiótico para controlar possível dor ou infecção, dois
eventos muito comuns quando se aplica algum material sobre
a polpa. Os resultados se mostraram positivos.
Estímulo
Mas agora, na tese de doutorado, o dentista não quis apenas
controlar a infecção e a dor, mas pensou que tal polímero
poderia estimular células específicas da polpa chamadas
odontoblastos a produzir um novo tecido duro no interior
do dente. Depois de muito trabalho, a equipe coordenada
pela professora Eliana Aparecida de Rezende Duek, da FEM,
criou-se uma microesfera de PLLA contendo proteína morfogenética
óssea (BMP). O BMP, liberado de acordo com a absorção do
polímero pelo organismo, criaria o estímulo necessário para
que os odontoblastos produzissem dentina.
Os efeitos do PLLA com BMP foram testados em coelhos em
um primeiro momento. Em intervalos de tempo que variaram
entre 10 e 60 dias, parte do dente desses animais foi retirada
para que uma análise histológica fosse feita. Nessa análise,
Bernatavicius percebeu que a eficácia da BMP como material
reparador se deu depois de 40 dias da sua aplicação.
“A
calcificação da dentina já aparece em processo com 40 dias,
sendo que as lacunas deixadas são principalmente pelo processo
de neoformação de dentina através de áreas interglobulares.
Depois de 60 dias, o tecido já apresentava normalidade,
com a formação de todas as estruturas dentais, principalmente
entre o esmalte e a dentina. Em nenhuma das fases estudadas
ocorreu processo inflamatório ou infeccioso que pudesse
comprometer a vitalidade pulpar”, salienta Bernatavicius.
No entanto, Bernatavicius ressalta que é preciso considerar
algumas diferenças morfológicas entre humanos e coelhos.
A mais importante para a sua pesquisa é a diferença no tempo
de recomposição óssea. Nos coelhos ela é três vezes mais
rápida do que no homem.
O passo seguinte foi aplicar o polímero em seres humanos
para analisar os aspectos qualitativos do experimento. Vinte
pacientes com idade média entre 20 e 30 anos participaram
dessa etapa da pesquisa. Buscou-se aplicar o polímero em
dentes com perda dentinária o mais próximo possível da polpa,
desde que essa ainda tivesse vitalidade. É que em casos
mais extremos, em que a polpa está totalmente comprometida,
só o tratamento de canal resolve.
“Precisávamos saber se o material se degradaria conforme
o esperado, se as radiografias mostrariam formação de neo
dentina no local e se não ocorreria dor ou inflamação. “Coelhos
não reclamam de dor”, brinca Bernatavicius, “embora observamos
que eles mantiveram uma mastigação normal após a aplicação
do PLLA”.
O estudo mostrou que após 60 dias já se pode ver que todos
os pacientes pesquisados não apresentaram dor durante os
testes realizados, nem processos infecciosos ou inflamatórios.
O material aplicado se desintegrou corretamente e havia
sinais da produção de dentina no lugar. O processo mastigatório
dos pacientes também se manteve em níveis normais. Em seu
consultório, Bernatavicius tem acompanhado casos de pacientes
que participaram da pesquisa e que tiveram uma considerável
produção de dentina oito meses depois da aplicação do polímero.
O sucesso dessa pesquisa da FEM apresenta uma segunda vantagem
sobre o tratamento de canal até então praticado nos consultórios:
o custo. “O valor médio de um tratamento de canal em um
dente molar na Grande São Paulo é de R$ 450,00. Na aplicação
das microesferas, o paciente paga apenas a obturação, que
sai por volta de R$ 60,00”. Além disso, o novo tratamento
é menos complexo e exige menores recursos tecnológicos para
ser executado. Pode ser realizado em ambulatórios. Além
disso, uma única sessão é suficiente, enquanto tratamentos
de canais podem se arrastar por até três sessões.
Atualmente,
a equipe do Laboratório de Biomateriais da FEM trabalha
na obtenção da patente das microesferas de PLLA com BMP.
Mas Bernatavicius já pensa em trazê-las para a rede pública
de saúde. “Isso poderá contribuir para a diminuição da perda
dentária, principalmente nas populações de baixa renda e
de difícil acesso a serviços odontológicos sofisticados.
Essa iniciativa também nos dará uma gama maior de pacientes
e de resultados para termos uma melhor idéia sobre até onde
vai o poder desse tipo de tratamento. Nosso estudo é ainda
preliminar. É preciso realizar mais testes em humanos. Um
universo de 20 pacientes não consegue nos fornecer um panorama
geral adequado”.
Talvez a PLLA possa vir a contribuir com o programa de
saúde bucal Brasil Sorridente, do governo federal. Segundo
dados do Ministério da Saúde, esse programa fez com que
a cobertura odontológica no sistema público de saúde crescesse
300% desde o seu lançamento em 2005. Três milhões de dentes
deixaram de ser extraídos graças a essa iniciativa. No entanto,
apesar da melhoria das condições proporcionadas por programas
como este, três entre quatro idosos brasileiros com mais
de 60 anos não possuem um dente sequer. A perda dentária
ainda é um problema a ser vencido.
Ação da cárie no dente