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Estudo abre frente para produção
de hormônios tireoidianos sintéticos
Novos ligantes poderiam ser usados no controle
da obesidade e do colesterol
JEVERSON
BARBIERI
Um
trabalho de modelagem computacional por dinâmica molecular,
conduzido no Instituto de Química (IQ) da Unicamp pelo pós-doutorando
Leandro Martínez, desvendou o motivo pelo qual o Triac, um
hormônio da tireóide, liga-se preferencialmente a uma proteína
presente no fígado, que está associada ao controle do metabolismo
de gorduras e colesterol. O estudo explica, de modo inovador
e inusitado, o mecanismo de seletividade de um hormônio por
diferentes variedades de proteínas que se ligam a ele no organismo.
Coordenada no IQ pelo professor Munir Skaf, a pesquisa abre
uma importante frente de estudos para a compreensão das bases
moleculares de seletividade de hormônios em receptores nucleares
e para o desenvolvimento de novos ligantes (hormônios tireoidianos
sintéticos), objetivando aplicações farmacêuticas, entre as
quais a do controle do colesterol e da obesidade.
As pesquisas tiveram início
em 2002, quando Martínez ainda fazia sua iniciação científica
no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), sob a orientação
do professor Polikarpov, especialista em cristalografia de
proteínas. Martínez percebeu que seria interessante estudar
as proteínas de interesse do grupo, os receptores de hormônios,
utilizando técnicas computacionais, chamadas de simulação
por dinâmica molecular. Esta técnica estuda os movimentos
de cada átomo das proteínas e dos hormônios e tem a capacidade
de mostrar detalhes dessa dinâmica, importantes para a função.
O mestrado e o doutorado também foram direcionados no sentido
de alavancar ainda mais as pesquisas utilizando essas técnicas.
No pós-doutorado, Martínez optou por pesquisar duas variedades
destas proteínas: os receptores alfa e a beta do hormônio
tireoidiano – que possuem pequenas diferenças, mas funções
distintas no organismo.
A proteína alfa é abundante
nos tecidos cardíacos e está envolvida na regulação da frequência
cardíaca. A proteína beta é encontrada em maior abundância
no fígado e está associada ao metabolismo de gorduras e colesterol.
Martínez explicou que o interesse da indústria farmacêutica
é conseguir desenvolver um ligante capaz de ativar com mais
intensidade a variedade beta – um ligante beta-seletivo –,
uma vez que com sua utilização seria possível emagrecer e
baixar o colesterol, por exemplo, sem causar danos ao coração
decorrentes da administração de hormônios tireoidianos naturais.
Já existe um ligante natural
pouco abundante, chamado Triac, utilizado farmaceuticamente
por ter menos efeitos colaterais que o hormônio tireoidiano
principal. E esse foi o ponto de partida para a pesquisa,
que buscou entender como o ligante natural se associava às
proteínas alfa e beta. Os estudos funcionais mostravam que
o Triac era ligeiramente beta-seletivo, mas estruturas cristalográficas
obtidas pelo professor Ricardo Aparicio, também do IQ da Unicamp,
durante pós-doutorado no grupo do professor Polikarpov, mostravam
que o ligante natural se associava mais fortemente à proteína
alfa e, dessa maneira, criou-se um paradoxo.
Para explicar melhor, Martínez
recorreu a uma analogia utilizando, como exemplos, a chave
e a fechadura. Em geral, disse ele, quando existe uma molécula
que se liga melhor a uma proteína do que a outra, a determinação
da estrutura cristalográfica resolve o problema. Basta olhar
para a estrutura proteica e os seus contatos com a molécula.
“Se você tem uma chave que abre duas portas, mas ela é melhor
para abrir uma delas, em geral é porque cada buraquinho da
fechadura tem um dente correspondente na chave. Portanto,
a chave abre melhor uma delas porque o encaixe é perfeito.
Geralmente é o que mostra uma estrutura cristalográfica”,
afirmou.
Aparicio detalhou que a cristalografia
é uma técnica poderosa utilizada para determinar a estrutura
tridimensional das moléculas, como se fosse uma “fotografia”
que dá informações detalhadas sobre as posições dos átomos.
Apesar dessa informação ser muito valiosa, ainda é uma visão
estática, não sendo possível saber, de fato, o que pode acontecer
em solução. “Quando olhávamos para a “fotografia” da estrutura
do Triac ligado ao receptor, era possível enxergar que ele
estava mais bem ancorado no sítio ativo da isoforma alfa.
No entanto, em solução, por outras técnicas, era possível
observar a preferência do Triac pela isoforma beta”, disse.
Martínez disse que no trabalho
computacional, outros componentes de um sistema real puderam
ser acrescidos. Foi colocada água em volta dessa estrutura
para ver como o solvente interagia com a proteína. A partir
desse momento eles deixaram de olhar uma imagem estática e
conseguiram ver um filme, observando como a água interage
com a proteína e de como o ligante se movimenta. “Foi dessa
maneira que conseguimos resolver o paradoxo”, afirmou.
Usando esse “filme” da proteína
e hormônio em movimento, cálculos quantitativos de todas as
interações do hormônio puderam ser feitos. “Conseguimos fazer
cálculos que outras técnicas não permitem”, assegurou Martínez.
Ele calculou, por exemplo, qual a força da interação do ligante
com as proteínas alfa e beta. A partir da trajetória da simulação
de dinâmica molecular, o resultado concordava com a estrutura
cristalográfica, de que a maior força estava na ligação com
a proteína alfa. “O paradoxo prosseguia”, admitiu.
Novo cálculo
Ele partiu, então, para um novo cálculo desse ligante com
todo o ambiente (proteína, água, íons) nas isoformas alfa
e beta. Na presença de todos os componentes, a diferença de
interação desaparecia, atenuando a contradição observada na
estrutura cristalográfica. A inclusão da água no cálculo fazia
a diferença desaparecer. Portanto, a água que estava em volta
da proteína tinha um papel compensador dessa diferença de
interação paradoxal que aparecia na estrutura cristalográfica.
“Foi possível observar nesse filme detalhes das interações
e a estrutura alfa tinha o ligante fortemente associado à
proteína. Já na estrutura beta, o ligante não estava tão fortemente
associado à proteína, mas dentro desse sítio de ligação entrava
água, que interagia com o ligante lá dentro”, atestou o pós-doutorando.
Voltando à analogia, Skaf
esclareceu que a fechadura da isoforma beta era um pouco maior
e estava repleta de lubrificante. Portanto, a eficiência dessa
chave nessa fechadura é maior por conta do solvente. Em contrapartida,
a fechadura da isoforma alfa, que possuía um encaixe perfeito,
não tinha lubrificante, e isso foi determinante. “Em termos
um pouco mais precisos, a afinidade da proteína do ligante
é uma medida da energia livre e tem duas componentes: uma
entálpica (das interações) e outra entrópica (dos movimentos).
A interação com a estrutura beta é mais favorável devido à
maior mobilidade do ligante dentro da proteína”, explicou
o coordenador da pesquisa.
Aparicio ressaltou ainda que
quando se determina a estrutura de uma proteína por cristalografia,
tudo o que estiver conectado nessa proteína dentro do cristal
pode aparecer ligado a ela, em particular, água. “É muito
comum aparecerem moléculas de água em estruturas cristalográficas
porque normalmente as proteínas são cristalizadas em meio
aquoso. E, não raro, a água desempenha um papel importante
no mecanismo de ação de enzimas, por exemplo. Ainda assim,
numa primeira análise, muitas vezes damos mais atenção às
ligações entre os átomos da proteína e os átomos do ligante.
Ademais, nem sempre todas as águas são vistas por cristalografia”,
observou o professor do IQ, que ressaltou que apenas olhando
para as “fotografias”, jamais teria sido possível solucionar
o paradoxo. Para ele, era necessário fazer o filme.
Martínez comentou que, após
a simulação computacional, eles voltaram para a estrutura
cristalográfica e notaram que ela já sugeria a explicação
final, porque a cavidade de ligação da estrutura beta era
maior e poderia permitir a entrada de água. Skaf ressaltou
a importância do trabalho do pós-doutorando dizendo que ele
ainda descobriu a razão molecular desta diferença. Trata-se
de um determinado aminoácido que tinha cadeias laterais de
tamanhos diferentes. Isso sugeriu um experimento bastante
interessante: a troca desse aminoácido da cavidade da variedade
beta para a alfa deveria reverter a seletividade do ligante.
A hipótese foi confirmada experimentalmente.
Essa é uma técnica chamada
de mutagênese sítio-dirigida. Não é um experimento computacional.
De acordo com Aparicio, alterações de DNA feitas in vitro
permitiram estudar as proteínas mutantes sugeridas por Leandro.
“A hipótese foi confirmada, e nossas hipóteses só têm valor
se forem comprovadas experimentalmente. E é essa nossa função,
explicar o mundo real. E nós temos uma ferramenta poderosa
para explicar esses fenômenos”, garantiu Skaf.
Este trabalho, realizado em
parceria com o Instituto de Física da USP de São Carlos, com
a Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília
(UnB) e com o Methodist Hospital de Houston, no Texas (EUA),
é parte integrante do Projeto Temático “Biofísica estrutural
dos receptores e proteínas relacionadas”, financiado pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
e coordenado pelo professor Igor Polikarpov, da USP/São Carlos,
e teve como pivô dos trabalhos experimentais o ex-aluno de
doutorado de Polikarpov e atual professor da UFABC Alessandro
Nascimento.
PNAS destaca pesquisa
Dada a relevância da
pesquisa, o trabalho foi publicado na revista norte-americana
Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS),
um dos principais periódicos de divulgação científica.
O objetivo, de acordo com os autores, é atingir um público
maior. O fenômeno é novo para essa área específica,
garante Skaf, mas o que está por trás dessa causa entrópica
é muito comum e abundante. Os pesquisadores consideram
que o aspecto mais inovador do trabalho é de interesse
geral porque se consegue mostrar no caso de uma proteína
específica um fenômeno que “sugere toda uma nova maneira
de pensar o desenvolvimento de novas moléculas, não
só para essa proteína em particular, e uma nova maneira
de olhar para a estrutura cristalográfica. Portanto,
sugere também uma nova maneira de pensar o desenvolvimento
de novos fármacos a partir de uma estrutura cristalográfica”.
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Link do trabalho:
Martínez et al., Gaining ligand selectivity in thyroid hormone
receptors via entropy.
PNAS, 2009.
http://www.pnas.org/content/early/2009/11/18/0911024106.abstract
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