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IPMs revelam como a educação
foi afetada pela ditadura militar

Pesquisa passa a limpo história do sistema educacional no período

MARIA ALICE DA CRUZ

O pesquisador Afonso Celso Scocuglia: “Um projeto educacional que tinha tudo para ser exitoso, foi reprimido durante 20 anos” (Foto: Antoninho Perri) As perseguições políticas levadas a cabo pela ditadura militar a partir de 1964 sem dúvida deixaram muitas feridas abertas, segundo Afonso Celso Scocuglia, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pesquisador da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Mas, para além disso, as evidências de sequelas no sistema educacional brasileiro vêm à tona quando Scocuglia faz a reconstrução histórica da educação no país a partir de Inquéritos Policiais Militares (IPMs) obtidos no Supremo Tribunal Militar (STM) e de documentação do Projeto Brasil Nunca Mais depositado no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Unicamp.

Os estragos causados pelas perseguições políticas a estudantes, professores e dirigentes educacionais ficam muito claros com depoimentos orais de pessoas que viveram aquele momento e, também, por meio de IPMs instaurados pelo IV Exército da Paraíba entre 1964 e 1969. Neste mesmo caminho, o acervo com mais de 700 processos arrecadados pelo Projeto Brasil Nunca Mais, do AEL, inspirou a realização do segundo pós-doutorado deste pesquisador. “São justamente processos judiciais como os que eu trabalho lá na UFPB. O pós-doutorado está sendo importante para ligar a documentação que eu investigo com essa massa documental mais geral arquivada no AEL”, declara.

Além dos textos dos IPMs, o pesquisador agora inicia a análise de processos nos quais os anistiados da ditadura buscam reparação econômica. Foram abertos centenas de processos e o grupo coordenado por Scocuglia na UFPB investiga, também, esses outros documentos dos anistiados. A investigação é enriquecida com depoimentos de pessoas diretamente envolvidas com a ditadura militar. “Agora, com a distância do tempo, há cada vez mais colaboração no sentido de revisitar as memórias desse período.”

Projeto interrompido
O plano educacional idealizado no Governo Goulart (1961-1964) e que contou com Paulo Freire e tantos outros educadores importantes, foi bruscamente interrompido quando da tomada do Estado pelos militares, segundo Scocuglia. A proposta de uma escola pública de qualidade, por exemplo, nunca mais foi recuperada, mesmo com a retomada do governo pelos civis. “E que civis, não? Temos uma sequência terrível de governos após a ditadura: Sarney, Collor, Itamar. Quase dez anos depois, vem o governo Fernando Henrique, já na década de 1990. E aí já é uma conjuntura marcada pela globalização, ou seja, o Estado nacional está combalido.” Diante desse quadro, ficou difícil retomar um projeto próprio de educação, na opinião de Scocuglia. “Não interessava naquele momento que a educação pública voltasse a pontificar. Interessava que a educação estivesse no rol dos serviços, na lógica de mercado”.

Além de ter ingressado na vida acadêmica em 1972, mais precisamente na Unicamp, a perseguição da ditadura faz parte da trajetória de Scocuglia, o que motivou, também, os seus estudos sobre o percurso e o exílio de Paulo Freire. “A obra de Freire é marcada nos anos 1950 e 1960 pelo nacional-desenvolvimentismo, depois pelo exílio e pelos trabalhos que desenvolveu no seu retorno ao Brasil após a Anistia”, esclarece. Na tentativa de reconstruir a trajetória de Freire, o pesquisador percebeu que muitos aspectos da educação atual estão relacionados com os ditames do Estado militar impostos depois de abril de 1964. “No final, fica evidente que, para ‘provar’ a subversão desses defensores de uma escola de qualidade e da educação popular, a ditadura tinha colhido muito material, inclusive didático, que foi usado nas campanhas de alfabetização. Os IPMs passaram a ser material de referência para mim”. O acesso à documentação, pela primeira vez liberada por completo no STM, foi intermediada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em 2006.

“Um projeto educacional que tinha tudo para ser exitoso, foi reprimido durante 20 anos e que, na retomada civil, não contou nem com a mobilização dos anos 1960, nem com a devida prioridade, nem com a intencionalidade explícita de voltar a ser trilhado”, pontua o pesquisador. Ele acrescenta que, mesmo levando em consideração os esforços do Ministério da Educação no sentido de ampliar o acesso ao ensino em todos os níveis, o prejuízo anterior e o tempo perdido em busca de uma outra educação, ainda comprometem o desenvolvimento. “Nessa brincadeira, foram 20 anos de ditadura e mais 25 anos de volta dos civis. Mas, nessa volta, a educação não teve a importância que tinha tido antes, nem a mobilização nacional necessária. Antes tinha havido essa mobilização a partir do final dos anos 1950 com a campanha em defesa da escola pública e da educação popular que vinha de Paulo Freire, Anísio Teixeira, Florestan Fernandes e muitos outros. Tudo isso foi bruscamente mudado pela ditadura militar.”

Para Scocuglia, que integra também os grupos de pesquisa Paidéia e História, Sociedade e Educação no Brasil (Histedbr) da FE, o estrago que o período da ditadura acarretou à educação ainda não foi efetivamente dimensionado. Na sua opinião, há muito a ser estudado no que ele chama de história do tempo presente da educação. “Infelizmente, tal visibilidade ainda não é conferida, nem mesmo em congressos e eventos da área. É como se tudo já tivesse sido estudado. E isso está longe de acontecer. Este campo é tratado como coisa do passado, superada. Os livros de história da educação não tratam esse período, a meu ver, com a devida importância e, assim, não conseguimos ainda dimensionar a magnitude do prejuízo histórico causado.” Ele explica que ao falar de história do tempo presente, ele não se refere ao instantâneo, mas ao estudo de um período contemporâneo para saber sua influência no sistema vigente.

A escola pública, com uma qualidade muito diferente da atual, foi intensamente prejudicada pelas perseguições. “Ela foi afetada justamente porque, nos movimentos estudantis secundaristas e universitários, estavam alguns dos principais focos da resistência da ditadura. De lá, sumiram muitos estudantes e professores. Estudei na graduação, a partir de 1972, e posso dizer que foram verdadeiros ‘anos de chumbo’. Vários colegas desapareceram ou foram mortos. Houve uma grande intervenção na educação, que nos traz consequências até hoje”, declara.

A educação pública tentava se manter em meio a protestos, passeatas, métodos ativos, professores progressistas, organização estudantil, repressão, atos inconstitucionais num país que começou a ser vigiado em todos os seus lados e pormenores. “E punidos, não é? Como diz Foucault, se estabeleceu um processo contínuo de vigilância e punição. E o setor educacional foi um dos mais duramente atingidos. E, este setor, para se reconstruir, demora mais tempo”, enfatiza. Neste período ditatorial, há significativo avanço da educação privada, segundo Scocuglia. “Há avanço dos empresários na educação. Quem investia em outros setores passou a ver que a educação dava dinheiro e começou a investir nisso”, acrescenta.

Apesar das evidências, Scocuglia acredita que não se deve adotar o discurso reducionista de que todos os problemas de desmando são produtos daquele tempo. “Afinal de contas, de 1985 pra cá, lá se vão 25 anos e já daria para ter resolvido muitas coisas”, acrescenta. Mas, por outro lado, o pesquisador acentua que há evidências de que aquele momento castrou um Brasil cheio de esperança, que se mostrava para o mundo de forma muito afirmativa e teve interrompida uma trajetória política, cultural, econômica, educacional, que a seu ver, e na visão de tantos outros estudiosos, tinha tudo para encaminhar o País para outros rumos. “Se daria certo ou não, não podemos afirmar, mas todos os indícios mostravam que este país tinha novas universidades, implantara um sistema nacional de educação pública que nunca tinha tido. Existia um plano nacional de alfabetização coordenado por Paulo Freire que tinha tudo para dar certo. Havia a Universidade de Brasília, instalada por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Foram criados a Capes, o CNPq, e a pesquisa prosperava. Havia a formação de um arcabouço cultural, educacional, com a marca brasileira”, recupera o pesquisador.

Paulo Freire na Faculdade de Educação da Unicamp, onde lecionou: ideário sob vigilância dos militares (Foto: Antoninho Perri)Com a perseguição, foi legada ao esquecimento uma geração de expoentes, cada um no seu campo. “Líderes e propositores como eles não apareceram mais. A ditadura os expulsou, anulou e impediu o surgimento de novos autores do Brasil. Não apareceram outros intelectuais como Paulo Freire, Anísio Teixeira, Celso Furtado, Josué de Castro e tantos outros. Existia um projeto de nação, que, se estava correto ou não, poderia ser repensado, mas continha planos importantes e exequíveis. Inclusive para as regiões mais problemáticas, como o Nordeste”.

Além das fronteiras
Na expectativa de um Brasil novo, desenvolviam-se estudos fundamentais, por exemplo, na área de geografia humana, como a de Josué de Castro. No campo da cultura, o Brasil projetava-se para além das suas fronteiras, como Scocuglia faz questão de lembrar: “No dia 17 de novembro de 2009, lembramos os 50 anos da morte de Villa Lobos que, como ninguém, fez emergir a alma brasileira da floresta, do campo, dos índios e mostrava isso para o mundo em forma de música.” Ele não deixa de lembrar da projeção da bossa nova, que impressionou o mundo, além da geração de músicos, compositores, arquitetos e pesquisadores.

“A história sempre vai atrás dos acontecimentos, dos fatos, mas há fortes indícios de que o Brasil dos anos 1950 e 1960 era um país que tinha tudo para ser bem diferente do que é em termos sociais, econômicos, educacionais”, reflete. No entanto, problemas que vêm de 50 anos, como o analfabetismo, continuam a existir. “Se pegarmos qualquer indicador de alfabetização, como o da Unesco (que trabalha com o fato de que quem não completou a escola básica é analfabeto), chegaremos a, pelo menos, 70 milhões de brasileiros. Além dos digitalmente excluídos e dos não-letrados que têm mais de 15 anos e que constituem mais de 70% dos jovens e dos adultos. Três de cada quatro brasileiros com mais de 15 anos não são letrados. Isso em plena sociedade da informação e do conhecimento”, acrescenta.

Voltando às questões do contexto histórico, o estudioso entende que se torna necessário tratar e fechar as feridas abertas pela ditadura e que ainda permanecem vivas. “Uns querem punir os responsáveis pelo arbítrio, outros dizem que a anistia já resolveu isso. Eu comungo da hipótese de que a ditadura militar acabou, mas o Estado militar não foi ainda completamente desmontado. Ele convive com essa frágil democracia brasileira que, de quando em quando, tem sustos e surtos autoritários. A questão das indenizações e dos desaparecidos políticos promove reação constante de setores militares, como se tivessem de prontidão para voltar a intervir, de uma maneira ou de outra”, diz Scocuglia.

Para ele, enquanto a democracia brasileira não tiver uma atitude de punir aqueles que cometeram tortura e desmandos durante o regime militar e não der oportunidade às famílias de terem seus mortos e desaparecidos de volta, que é o direito básico de qualquer pessoa, ela vai continuar viva. “Muitos querem, inclusive, colocar uma pedra sobre isso. Na América Latina, a Argentina está punindo os chefes responsáveis, o Chile já foi atrás disso e, recentemente, o Uruguai também. Por aqui, isso ainda não foi resolvido”.

Além de vários livros e artigos já publicados, um dos produtos da pesquisa desenvolvida por Scocuglia é o livro “Populismo, ditadura e educação”, lançado recentemente pela Editora da UFPB (2009). A obra tem como objetivo pedagógico a utilização dos resultados da pesquisa como fontes de estudos e de outras pesquisas na graduação e na pós-graduação em história, pedagogia e educação.

 

 
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