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IPMs revelam como a educação
foi afetada pela ditadura militar
Pesquisa passa a limpo
história do sistema educacional no período
MARIA
ALICE DA CRUZ
As
perseguições políticas levadas a cabo pela ditadura militar
a partir de 1964 sem dúvida deixaram muitas feridas abertas,
segundo Afonso Celso Scocuglia, professor da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB) e pesquisador da Faculdade de Educação
(FE) da Unicamp. Mas, para além disso, as evidências de sequelas
no sistema educacional brasileiro vêm à tona quando Scocuglia
faz a reconstrução histórica da educação no país a partir
de Inquéritos Policiais Militares (IPMs) obtidos no Supremo
Tribunal Militar (STM) e de documentação do Projeto Brasil
Nunca Mais depositado no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da
Unicamp.
Os estragos causados pelas
perseguições políticas a estudantes, professores e dirigentes
educacionais ficam muito claros com depoimentos orais de pessoas
que viveram aquele momento e, também, por meio de IPMs instaurados
pelo IV Exército da Paraíba entre 1964 e 1969. Neste mesmo
caminho, o acervo com mais de 700 processos arrecadados pelo
Projeto Brasil Nunca Mais, do AEL, inspirou a realização do
segundo pós-doutorado deste pesquisador. “São justamente processos
judiciais como os que eu trabalho lá na UFPB. O pós-doutorado
está sendo importante para ligar a documentação que eu investigo
com essa massa documental mais geral arquivada no AEL”, declara.
Além dos textos dos IPMs,
o pesquisador agora inicia a análise de processos nos quais
os anistiados da ditadura buscam reparação econômica. Foram
abertos centenas de processos e o grupo coordenado por Scocuglia
na UFPB investiga, também, esses outros documentos dos anistiados.
A investigação é enriquecida com depoimentos de pessoas diretamente
envolvidas com a ditadura militar. “Agora, com a distância
do tempo, há cada vez mais colaboração no sentido de revisitar
as memórias desse período.”
Projeto interrompido
O plano educacional idealizado no Governo Goulart (1961-1964)
e que contou com Paulo Freire e tantos outros educadores importantes,
foi bruscamente interrompido quando da tomada do Estado pelos
militares, segundo Scocuglia. A proposta de uma escola pública
de qualidade, por exemplo, nunca mais foi recuperada, mesmo
com a retomada do governo pelos civis. “E que civis, não?
Temos uma sequência terrível de governos após a ditadura:
Sarney, Collor, Itamar. Quase dez anos depois, vem o governo
Fernando Henrique, já na década de 1990. E aí já é uma conjuntura
marcada pela globalização, ou seja, o Estado nacional está
combalido.” Diante desse quadro, ficou difícil retomar um
projeto próprio de educação, na opinião de Scocuglia. “Não
interessava naquele momento que a educação pública voltasse
a pontificar. Interessava que a educação estivesse no rol
dos serviços, na lógica de mercado”.
Além de ter ingressado na
vida acadêmica em 1972, mais precisamente na Unicamp, a perseguição
da ditadura faz parte da trajetória de Scocuglia, o que motivou,
também, os seus estudos sobre o percurso e o exílio de Paulo
Freire. “A obra de Freire é marcada nos anos 1950 e 1960 pelo
nacional-desenvolvimentismo, depois pelo exílio e pelos trabalhos
que desenvolveu no seu retorno ao Brasil após a Anistia”,
esclarece. Na tentativa de reconstruir a trajetória de Freire,
o pesquisador percebeu que muitos aspectos da educação atual
estão relacionados com os ditames do Estado militar impostos
depois de abril de 1964. “No final, fica evidente que, para
‘provar’ a subversão desses defensores de uma escola de qualidade
e da educação popular, a ditadura tinha colhido muito material,
inclusive didático, que foi usado nas campanhas de alfabetização.
Os IPMs passaram a ser material de referência para mim”. O
acesso à documentação, pela primeira vez liberada por completo
no STM, foi intermediada pela Comissão de Direitos Humanos
da Câmara dos Deputados, em 2006.
“Um projeto educacional que
tinha tudo para ser exitoso, foi reprimido durante 20 anos
e que, na retomada civil, não contou nem com a mobilização
dos anos 1960, nem com a devida prioridade, nem com a intencionalidade
explícita de voltar a ser trilhado”, pontua o pesquisador.
Ele acrescenta que, mesmo levando em consideração os esforços
do Ministério da Educação no sentido de ampliar o acesso ao
ensino em todos os níveis, o prejuízo anterior e o tempo perdido
em busca de uma outra educação, ainda comprometem o desenvolvimento.
“Nessa brincadeira, foram 20 anos de ditadura e mais 25 anos
de volta dos civis. Mas, nessa volta, a educação não teve
a importância que tinha tido antes, nem a mobilização nacional
necessária. Antes tinha havido essa mobilização a partir do
final dos anos 1950 com a campanha em defesa da escola pública
e da educação popular que vinha de Paulo Freire, Anísio Teixeira,
Florestan Fernandes e muitos outros. Tudo isso foi bruscamente
mudado pela ditadura militar.”
Para Scocuglia, que integra também os grupos de pesquisa Paidéia
e História, Sociedade e Educação no Brasil (Histedbr)
da FE, o estrago que o período da ditadura acarretou à educação
ainda não foi efetivamente dimensionado. Na sua opinião, há
muito a ser estudado no que ele chama de história do tempo
presente da educação. “Infelizmente, tal visibilidade ainda
não é conferida, nem mesmo em congressos e eventos da área.
É como se tudo já tivesse sido estudado. E isso está longe
de acontecer. Este campo é tratado como coisa do passado,
superada. Os livros de história da educação não tratam esse
período, a meu ver, com a devida importância e, assim, não
conseguimos ainda dimensionar a magnitude do prejuízo histórico
causado.” Ele explica que ao falar de história do tempo presente,
ele não se refere ao instantâneo, mas ao estudo de um período
contemporâneo para saber sua influência no sistema vigente.
A escola pública, com uma
qualidade muito diferente da atual, foi intensamente prejudicada
pelas perseguições. “Ela foi afetada justamente porque, nos
movimentos estudantis secundaristas e universitários, estavam
alguns dos principais focos da resistência da ditadura. De
lá, sumiram muitos estudantes e professores. Estudei na graduação,
a partir de 1972, e posso dizer que foram verdadeiros ‘anos
de chumbo’. Vários colegas desapareceram ou foram mortos.
Houve uma grande intervenção na educação, que nos traz consequências
até hoje”, declara.
A educação pública tentava
se manter em meio a protestos, passeatas, métodos ativos,
professores progressistas, organização estudantil, repressão,
atos inconstitucionais num país que começou a ser vigiado
em todos os seus lados e pormenores. “E punidos, não é? Como
diz Foucault, se estabeleceu um processo contínuo de vigilância
e punição. E o setor educacional foi um dos mais duramente
atingidos. E, este setor, para se reconstruir, demora mais
tempo”, enfatiza. Neste período ditatorial, há significativo
avanço da educação privada, segundo Scocuglia. “Há avanço
dos empresários na educação. Quem investia em outros setores
passou a ver que a educação dava dinheiro e começou a investir
nisso”, acrescenta.
Apesar das evidências, Scocuglia
acredita que não se deve adotar o discurso reducionista de
que todos os problemas de desmando são produtos daquele tempo.
“Afinal de contas, de 1985 pra cá, lá se vão 25 anos e já
daria para ter resolvido muitas coisas”, acrescenta. Mas,
por outro lado, o pesquisador acentua que há evidências de
que aquele momento castrou um Brasil cheio de esperança, que
se mostrava para o mundo de forma muito afirmativa e teve
interrompida uma trajetória política, cultural, econômica,
educacional, que a seu ver, e na visão de tantos outros estudiosos,
tinha tudo para encaminhar o País para outros rumos. “Se daria
certo ou não, não podemos afirmar, mas todos os indícios mostravam
que este país tinha novas universidades, implantara um sistema
nacional de educação pública que nunca tinha tido. Existia
um plano nacional de alfabetização coordenado por Paulo Freire
que tinha tudo para dar certo. Havia a Universidade de Brasília,
instalada por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Foram criados
a Capes, o CNPq, e a pesquisa prosperava. Havia a formação
de um arcabouço cultural, educacional, com a marca brasileira”,
recupera o pesquisador.
Com
a perseguição, foi legada ao esquecimento uma geração de expoentes,
cada um no seu campo. “Líderes e propositores como eles não
apareceram mais. A ditadura os expulsou, anulou e impediu
o surgimento de novos autores do Brasil. Não apareceram outros
intelectuais como Paulo Freire, Anísio Teixeira, Celso Furtado,
Josué de Castro e tantos outros. Existia um projeto de nação,
que, se estava correto ou não, poderia ser repensado, mas
continha planos importantes e exequíveis. Inclusive para as
regiões mais problemáticas, como o Nordeste”.
Além das fronteiras
Na expectativa de um Brasil novo, desenvolviam-se estudos
fundamentais, por exemplo, na área de geografia humana, como
a de Josué de Castro. No campo da cultura, o Brasil projetava-se
para além das suas fronteiras, como Scocuglia faz questão
de lembrar: “No dia 17 de novembro de 2009, lembramos os 50
anos da morte de Villa Lobos que, como ninguém, fez emergir
a alma brasileira da floresta, do campo, dos índios e mostrava
isso para o mundo em forma de música.” Ele não deixa de lembrar
da projeção da bossa nova, que impressionou o mundo, além
da geração de músicos, compositores, arquitetos e pesquisadores.
“A história sempre vai atrás
dos acontecimentos, dos fatos, mas há fortes indícios de que
o Brasil dos anos 1950 e 1960 era um país que tinha tudo para
ser bem diferente do que é em termos sociais, econômicos,
educacionais”, reflete. No entanto, problemas que vêm de 50
anos, como o analfabetismo, continuam a existir. “Se pegarmos
qualquer indicador de alfabetização, como o da Unesco (que
trabalha com o fato de que quem não completou a escola básica
é analfabeto), chegaremos a, pelo menos, 70 milhões de brasileiros.
Além dos digitalmente excluídos e dos não-letrados que têm
mais de 15 anos e que constituem mais de 70% dos jovens e
dos adultos. Três de cada quatro brasileiros com mais de 15
anos não são letrados. Isso em plena sociedade da informação
e do conhecimento”, acrescenta.
Voltando às questões do contexto
histórico, o estudioso entende que se torna necessário tratar
e fechar as feridas abertas pela ditadura e que ainda permanecem
vivas. “Uns querem punir os responsáveis pelo arbítrio, outros
dizem que a anistia já resolveu isso. Eu comungo da hipótese
de que a ditadura militar acabou, mas o Estado militar não
foi ainda completamente desmontado. Ele convive com essa frágil
democracia brasileira que, de quando em quando, tem sustos
e surtos autoritários. A questão das indenizações e dos desaparecidos
políticos promove reação constante de setores militares, como
se tivessem de prontidão para voltar a intervir, de uma maneira
ou de outra”, diz Scocuglia.
Para ele, enquanto a democracia
brasileira não tiver uma atitude de punir aqueles que cometeram
tortura e desmandos durante o regime militar e não der oportunidade
às famílias de terem seus mortos e desaparecidos de volta,
que é o direito básico de qualquer pessoa, ela vai continuar
viva. “Muitos querem, inclusive, colocar uma pedra sobre isso.
Na América Latina, a Argentina está punindo os chefes responsáveis,
o Chile já foi atrás disso e, recentemente, o Uruguai também.
Por aqui, isso ainda não foi resolvido”.
Além de vários livros e artigos
já publicados, um dos produtos da pesquisa desenvolvida por
Scocuglia é o livro “Populismo, ditadura e educação”, lançado
recentemente pela Editora da UFPB (2009). A obra tem como
objetivo pedagógico a utilização dos resultados da pesquisa
como fontes de estudos e de outras pesquisas na graduação
e na pós-graduação em história, pedagogia e educação.
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