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A contracepção no centro da polêmica
Pesquisa revisita a trajetória e os métodos
do médico Elsimar Coutinho
ISABEL
GARDENAL
O
médico baiano Elsimar Coutinho é figura central nas discussões
sobre a contracepção no país. Além de desenvolver o primeiro
anticoncepcional injetável de efeito prolongado e a primeira
pílula anticoncepcional contendo norgestrel, o especialista
sempre esteve na berlinda ao difundir outros métodos, entre
os quais os implantes subcutâneos de efeito prolongado, os
dispositivos intra-uterinos (DIU), a pílula vaginal, a primeira
proposta de uma pílula anticoncepcional para o homem e o implante
hormonal de única cápsula contendo progestínico de liberação
contínua. Foram muitas as contribuições científicas do médico,
mas em sua trajetória, por outro lado, há que se considerar
também o aspecto polêmico que invariavelmente sobressaiu do
seu discurso e que o notabilizou na mídia, principalmente
quando passou a defender com veemência os benefícios da supressão
da menstruação.
Esse foi o estopim para manifestações
de protesto de segmentos mais conservadores da sociedade,
ao mesmo tempo que constituiu a chance de trazer à baila temas
pouco abordados a respeito da contracepção. Isso de certa
forma lhe conferiu um rótulo que reforça, onde quer que ele
vá, a pecha de polemista, mas quase sempre atrelado ao reconhecimento
que ele goza, sobretudo na academia, por sua atuação na história
da contracepção no Brasil. Estas foram algumas constatações
da tese de doutorado da antropóloga Daniela Tonelli Manica,
recém-defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp
e orientada pela professora Maria Suely Kofes.
Daniela voltou os olhos para a supressão da menstruação com
contraceptivos hormonais desde o final da graduação. Isso,
segundo ela, já faz mais de nove anos. À época, fervilhava
o debate acerca da aplicabilidade de alguns tipos de pílulas,
DIU e implantes. No mestrado, o assunto ganhou corpo e a antropóloga
procurou entender o que estava acontecendo no campo acadêmico
e como esta discussão se refletia na mídia. Coutinho, com
mais de 50 anos de carreira na área de contracepção, se destacava
nesta abordagem no Brasil desde a década de 1950.
Esse assunto é descrito no
livro do médico intitulado Menstruação: A Sangria Inútil,
já em sua oitava edição e com versão em inglês, refutando
os argumentos de que a menstruação era algo natural e sustentando
que ela somente existia na mulher contemporânea porque a sociedade
criou uma forma de evitar que ela engravidasse sucessivamente,
como aconteceria no “estado de natureza”. O natural, em sua
explicação, seria a mulher ter filhos constantemente pois,
nesta situação, ela não menstruaria.
Coutinho sustenta seu argumento
utilizando como referência fêmeas de várias espécies animais,
conta Daniela, especialmente as primatas não-humanas. Segundo
seu estudo, as fêmeas neste estado não menstruam e a menstruação
representa portanto um fenômeno social. A pesquisadora foi
entrevistá-lo no consultório em São Paulo e em Salvador. Descobriu
que o especialista tinha mais dois outros livros que a interessaram.
Um deles era sobre sexualidade, resultante de uma coletânea
de artigos que ele havia escrito nesses anos sobretudo para
jornais de Salvador, como A Tarde. Tal coletânea chamava-se
O Sexo do Ciúme. Na segunda coletânea – O Descontrole da Natalidade
no Brasil –, ele aborda algumas concepções sobre a necessidade
de se adotarem programas de controle da natalidade no Brasil.
Nestas duas coletâneas, havia uma série de artigos autobiográficos
reportando a sua trajetória de pesquisa.
Daniela avaliou no doutorado
a carreira do médico, já que sua trajetória ilustrava os diversos
embates sobre contracepção no Brasil, chegando à discussão
sobre a supressão da menstruação. Trabalhou com fontes variadas
entrecruzando-as com informações da autobiografia escrita
por ele (ainda não-publicada). Muitas das passagens da biografia
dialogavam com alguns artigos. O arquivo pessoal de Coutinho,
com uma série de artigos de jornais sobre o médico e pesquisador,
forneceu também um rico material para a pesquisa.
As investigações do especialista
começaram com os hormônios injetáveis para terapia durante
o trabalho de parto prematuro. Ao acaso, percebeu que o hormônio
depoprovera tinha efeitos contraceptivos e, simultaneamente,
suprimia a menstruação. Naquele tempo, no entanto, os contraceptivos
eram formulados para evitar este efeito. Houve todo um esforço
para fazer com que a pílula simulasse os sangramentos menstruais.
Conforme o médico, já teria sido possível que esta primeira
pílula atuasse nas mulheres de forma que elas não menstruassem.
Com o efeito supressor dos
sangramentos menstruais, a contracepção, na época ainda controversa,
ficaria mais escancarada e geraria mais polêmica, isso porque
acreditava-se estar mexendo demais na natureza feminina. Foi
exatamente nesta discussão que Coutinho se inseriu, enfatiza
Daniela. Ao defender a supressão da menstruação, o médico
colaborava para mudar o entendimento da contracepção. “Ele
foi uma pessoa extremamente corajosa. Hoje em dia existem
vários contraceptivos que permitem a suspensão dos sangramentos,
contudo estas formulações começaram a ser desenvolvidas depois,
a partir da década de 1990 no país.”
Questão de gênero
O objetivo de Daniela era mostrar a trajetória de Coutinho
nas pesquisas com contraceptivos e como elas envolviam não
somente os médicos, mas também os laboratórios farmacêuticos
interessados em desenvolver seu nicho. Principalmente nas
décadas de 1960 e 70, a pesquisadora observou que existia
um investimento substancial na contracepção que não era ligado
necessariamente aos laboratórios farmacêuticos, mas também
a instituições internacionais preocupadas com a explosão demográfica.
Pesquisas sobre o tema foram seguidamente financiadas pela
Fundação Rockefeller, pela Fundação Ford e por agências ligadas
ao governo norte-americano, empenhadas em reduzir a explosão
populacional em países pobres. No Brasil, o Nordeste, local
onde residia e atuava Coutinho, era uma das regiões estratégicas
para o desenvolvimento dessas questões.
Para a antropóloga, o médico era a pessoa certa no lugar certo.
Era bem-quisto internacionalmente e um dos profissionais médicos-chaves
no mundo para a pesquisa da contracepção. Ele teve, então,
espaço e apoio para desenvolver diversas pesquisas, não somente
com injetáveis, mas igualmente com os implantes subcutâneos
e os DIU, contraceptivos de longa duração, baratos e que foram
idealizados mesmo para uso em massa pela população.
O especialista também foi
um dos cientistas a trabalhar pelo desenvolvimento da pílula
masculina, embora ela nunca tenha chegado a ser comercializada,
mesmo sendo alardeado o seu lançamento em diferentes momentos.
“É uma coisa interessante para se pensar em contraposição
a enorme oferta para a contracepção feminina”, contextualiza
Daniela. “Isso simplesmente não veio a acontecer inclusive
por uma questão de gênero, já que é largamente difundido na
comunidade médica que o sistema reprodutor masculino é menos
complexo do que o feminino.”
A posição da pesquisadora
holandesa Nelly Oudshoorn, relaciona Daniela, é de que ocorre
um viés de gênero na pesquisa sobre contracepção e que existe
um zelo exagerado em relação à contracepção masculina. “Há
uma grande apreensão que a pílula masculina ocasione infertilidade
ou impotência. Ao mesmo tempo, as conexões entre contracepção
e sexualidade no caso dos homens são muito maiores do que
no caso das mulheres.” A antropóloga recorda que, para a pílula
masculina, não somente os riscos foram ponderados. Nas pesquisas
clínicas, cada etapa que trazia algo imprevisto intimidava
a indústria farmacêutica, com os testes “morrendo no nascedouro”.
A trajetória do médico permitiu
revelar as tensões presentes nessas questões de gênero, no
caso dos diferentes contraceptivos, e também nas discussões
sobre o controle populacional. “O debate era fundamental nas
décadas de 70 e 80. Hoje esta tensão resolveu-se de outro
jeito. Houve um deslocamento da discussão sobre controle de
natalidade para se falar em planejamento familiar”, explica
Daniela. “O que supostamente incorporou-se a essa discussão
foram as questões dos direitos sexuais e reprodutivos, e da
saúde sexual e reprodutiva.” A ideia era evitar programas
coercitivos, iniciativa que foi assumida pela Índia e pela
China (que limitou a um o número de filhos por casal). “O
Brasil nunca adotou isso. O que aconteceu aqui, após muitos
anos de discussão e embates, foi a incorporação dessa discussão
sobre o direito de as mulheres decidirem se queriam ter filhos”,
comenta.
A trajetória de Coutinho mostra
diversas iniciativas para transformar a contracepção num programa
de governo. No entanto, outras estratégias acabaram influenciando
a questão no Brasil. Segundo Daniela, alguns autores argumentam
que houve uma mudança cultural nos modelos familiares. As
novelas, por exemplo, influenciavam a valorização de famílias
menos numerosas. Nesse sentido, o especialista também colaborou
muito porque falava sempre na mídia sobre a necessidade de
reduzir o número de filhos. Mesmo com o Brasil não tendo uma
política de controle de natalidade, apresentou uma queda nas
taxas de fecundidade a partir da década de 70 que não teve
como fio condutor uma imposição. “Foi uma conjunção complexa
de esforços, investimentos e vários outros fatores”, constata.
Conclusões
Nos primeiros 20 anos de sua carreira, Coutinho apresentou
uma grande produção na pesquisa e estava num lugar muito favorável
à sua realização, Salvador, onde a explosão populacional se
configurava como um problema político. Ele tinha à sua disposição
uma população expressiva, carente não somente de contracepção,
mas também de educação, saúde, trabalho, moradia. Aliás, esta
foi uma das críticas feitas a ele: “a população não tinha
o que comer, mas a pílula não podia faltar”. Daniela revela
que ele de fato tinha planos de ajudar a diminuir a natalidade,
buscando envolvimento com as políticas públicas, na época
da ditadura militar. O governo brasileiro, ainda que muitas
vezes afinado com as instituições internacionais que preconizavam
o controle da natalidade, propagava uma política inversa:
o problema populacional do “preenchimento” dos espaços vazios
da nação.
No entender da pesquisadora,
Coutinho sempre quis ser polêmico, já que trabalhar com contracepção
na década de 1960 no Brasil exigia uma postura de protagonismo
e ousadia. Por si, esta já seria uma discussão acalorada em
qualquer lugar do mundo. Em países desenvolvidos, a polêmica
surgiu inclusive sob forma de reivindicação pelas próprias
mulheres.
A autora da tese diz que Elsimar
fez as coisas de um jeito que acabou fornecendo munição para
polêmicas. “Para ele, o corpo feminino parecia uma máquina
reprodutiva e, a menstruação, uma falha neste sistema. Entretanto,
paradoxalmente, empenhou-se ao longo de sua trajetória no
desenvolvimento de mecanismos que afetam diretamente esses
aspectos reprodutivos que ele tanto valoriza em seu discurso:
os contraceptivos hormonais.” E muito da polêmica de Coutinho,
acentua Daniela, advinha também das pesquisas clínicas com
mulheres pobres de Salvador, que não necessariamente levavam
em conta, na época, uma série de questões, como os atuais
critérios éticos de pesquisa, o consentimento informado e
a questão dos direitos sexuais e reprodutivos.
A ligação de Coutinho com
instituições internacionais também contribuiu para apimentar
a polêmica, pois elas estavam mais focadas na diminuição da
explosão populacional do que no direito individual por ter
menos filhos. Para a antropóloga, essas coisas caminhavam
juntas. O efeito da diminuição da taxa de natalidade – hoje
está em 1,86 filho por mulher, segundo dados do IBGE de 2007
– tanto resultava de uma mudança de comportamento na qual
as pessoas estavam querendo menos filhos como respondia a
uma preocupação dos EUA com o crescimento desordenado da população
no Brasil, sobretudo pobre.
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