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A contracepção no centro da polêmica

Pesquisa revisita a trajetória e os métodos do médico Elsimar Coutinho

ISABEL GARDENAL

A antropóloga Daniela Tonelli Manica, autora da tese: “Elsimar Coutinho foi extremamente corajoso” (Foto: Antonio Scarpinetti) O médico baiano Elsimar Coutinho é figura central nas discussões sobre a contracepção no país. Além de desenvolver o primeiro anticoncepcional injetável de efeito prolongado e a primeira pílula anticoncepcional contendo norgestrel, o especialista sempre esteve na berlinda ao difundir outros métodos, entre os quais os implantes subcutâneos de efeito prolongado, os dispositivos intra-uterinos (DIU), a pílula vaginal, a primeira proposta de uma pílula anticoncepcional para o homem e o implante hormonal de única cápsula contendo progestínico de liberação contínua. Foram muitas as contribuições científicas do médico, mas em sua trajetória, por outro lado, há que se considerar também o aspecto polêmico que invariavelmente sobressaiu do seu discurso e que o notabilizou na mídia, principalmente quando passou a defender com veemência os benefícios da supressão da menstruação.

Esse foi o estopim para manifestações de protesto de segmentos mais conservadores da sociedade, ao mesmo tempo que constituiu a chance de trazer à baila temas pouco abordados a respeito da contracepção. Isso de certa forma lhe conferiu um rótulo que reforça, onde quer que ele vá, a pecha de polemista, mas quase sempre atrelado ao reconhecimento que ele goza, sobretudo na academia, por sua atuação na história da contracepção no Brasil. Estas foram algumas constatações da tese de doutorado da antropóloga Daniela Tonelli Manica, recém-defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e orientada pela professora Maria Suely Kofes.

Daniela voltou os olhos para a supressão da menstruação com contraceptivos hormonais desde o final da graduação. Isso, segundo ela, já faz mais de nove anos. À época, fervilhava o debate acerca da aplicabilidade de alguns tipos de pílulas, DIU e implantes. No mestrado, o assunto ganhou corpo e a antropóloga procurou entender o que estava acontecendo no campo acadêmico e como esta discussão se refletia na mídia. Coutinho, com mais de 50 anos de carreira na área de contracepção, se destacava nesta abordagem no Brasil desde a década de 1950.

Esse assunto é descrito no livro do médico intitulado Menstruação: A Sangria Inútil, já em sua oitava edição e com versão em inglês, refutando os argumentos de que a menstruação era algo natural e sustentando que ela somente existia na mulher contemporânea porque a sociedade criou uma forma de evitar que ela engravidasse sucessivamente, como aconteceria no “estado de natureza”. O natural, em sua explicação, seria a mulher ter filhos constantemente pois, nesta situação, ela não menstruaria.

Coutinho sustenta seu argumento utilizando como referência fêmeas de várias espécies animais, conta Daniela, especialmente as primatas não-humanas. Segundo seu estudo, as fêmeas neste estado não menstruam e a menstruação representa portanto um fenômeno social. A pesquisadora foi entrevistá-lo no consultório em São Paulo e em Salvador. Descobriu que o especialista tinha mais dois outros livros que a interessaram. Um deles era sobre sexualidade, resultante de uma coletânea de artigos que ele havia escrito nesses anos sobretudo para jornais de Salvador, como A Tarde. Tal coletânea chamava-se O Sexo do Ciúme. Na segunda coletânea – O Descontrole da Natalidade no Brasil –, ele aborda algumas concepções sobre a necessidade de se adotarem programas de controle da natalidade no Brasil. Nestas duas coletâneas, havia uma série de artigos autobiográficos reportando a sua trajetória de pesquisa.

Daniela avaliou no doutorado a carreira do médico, já que sua trajetória ilustrava os diversos embates sobre contracepção no Brasil, chegando à discussão sobre a supressão da menstruação. Trabalhou com fontes variadas entrecruzando-as com informações da autobiografia escrita por ele (ainda não-publicada). Muitas das passagens da biografia dialogavam com alguns artigos. O arquivo pessoal de Coutinho, com uma série de artigos de jornais sobre o médico e pesquisador, forneceu também um rico material para a pesquisa.

As investigações do especialista começaram com os hormônios injetáveis para terapia durante o trabalho de parto prematuro. Ao acaso, percebeu que o hormônio depoprovera tinha efeitos contraceptivos e, simultaneamente, suprimia a menstruação. Naquele tempo, no entanto, os contraceptivos eram formulados para evitar este efeito. Houve todo um esforço para fazer com que a pílula simulasse os sangramentos menstruais. Conforme o médico, já teria sido possível que esta primeira pílula atuasse nas mulheres de forma que elas não menstruassem.

Com o efeito supressor dos sangramentos menstruais, a contracepção, na época ainda controversa, ficaria mais escancarada e geraria mais polêmica, isso porque acreditava-se estar mexendo demais na natureza feminina. Foi exatamente nesta discussão que Coutinho se inseriu, enfatiza Daniela. Ao defender a supressão da menstruação, o médico colaborava para mudar o entendimento da contracepção. “Ele foi uma pessoa extremamente corajosa. Hoje em dia existem vários contraceptivos que permitem a suspensão dos sangramentos, contudo estas formulações começaram a ser desenvolvidas depois, a partir da década de 1990 no país.”

Questão de gênero
O objetivo de Daniela era mostrar a trajetória de Coutinho nas pesquisas com contraceptivos e como elas envolviam não somente os médicos, mas também os laboratórios farmacêuticos interessados em desenvolver seu nicho. Principalmente nas décadas de 1960 e 70, a pesquisadora observou que existia um investimento substancial na contracepção que não era ligado necessariamente aos laboratórios farmacêuticos, mas também a instituições internacionais preocupadas com a explosão demográfica. Pesquisas sobre o tema foram seguidamente financiadas pela Fundação Rockefeller, pela Fundação Ford e por agências ligadas ao governo norte-americano, empenhadas em reduzir a explosão populacional em países pobres. No Brasil, o Nordeste, local onde residia e atuava Coutinho, era uma das regiões estratégicas para o desenvolvimento dessas questões.

Para a antropóloga, o médico era a pessoa certa no lugar certo. Era bem-quisto internacionalmente e um dos profissionais médicos-chaves no mundo para a pesquisa da contracepção. Ele teve, então, espaço e apoio para desenvolver diversas pesquisas, não somente com injetáveis, mas igualmente com os implantes subcutâneos e os DIU, contraceptivos de longa duração, baratos e que foram idealizados mesmo para uso em massa pela população.

O especialista também foi um dos cientistas a trabalhar pelo desenvolvimento da pílula masculina, embora ela nunca tenha chegado a ser comercializada, mesmo sendo alardeado o seu lançamento em diferentes momentos. “É uma coisa interessante para se pensar em contraposição a enorme oferta para a contracepção feminina”, contextualiza Daniela. “Isso simplesmente não veio a acontecer inclusive por uma questão de gênero, já que é largamente difundido na comunidade médica que o sistema reprodutor masculino é menos complexo do que o feminino.”

A posição da pesquisadora holandesa Nelly Oudshoorn, relaciona Daniela, é de que ocorre um viés de gênero na pesquisa sobre contracepção e que existe um zelo exagerado em relação à contracepção masculina. “Há uma grande apreensão que a pílula masculina ocasione infertilidade ou impotência. Ao mesmo tempo, as conexões entre contracepção e sexualidade no caso dos homens são muito maiores do que no caso das mulheres.” A antropóloga recorda que, para a pílula masculina, não somente os riscos foram ponderados. Nas pesquisas clínicas, cada etapa que trazia algo imprevisto intimidava a indústria farmacêutica, com os testes “morrendo no nascedouro”.

A trajetória do médico permitiu revelar as tensões presentes nessas questões de gênero, no caso dos diferentes contraceptivos, e também nas discussões sobre o controle populacional. “O debate era fundamental nas décadas de 70 e 80. Hoje esta tensão resolveu-se de outro jeito. Houve um deslocamento da discussão sobre controle de natalidade para se falar em planejamento familiar”, explica Daniela. “O que supostamente incorporou-se a essa discussão foram as questões dos direitos sexuais e reprodutivos, e da saúde sexual e reprodutiva.” A ideia era evitar programas coercitivos, iniciativa que foi assumida pela Índia e pela China (que limitou a um o número de filhos por casal). “O Brasil nunca adotou isso. O que aconteceu aqui, após muitos anos de discussão e embates, foi a incorporação dessa discussão sobre o direito de as mulheres decidirem se queriam ter filhos”, comenta.

A trajetória de Coutinho mostra diversas iniciativas para transformar a contracepção num programa de governo. No entanto, outras estratégias acabaram influenciando a questão no Brasil. Segundo Daniela, alguns autores argumentam que houve uma mudança cultural nos modelos familiares. As novelas, por exemplo, influenciavam a valorização de famílias menos numerosas. Nesse sentido, o especialista também colaborou muito porque falava sempre na mídia sobre a necessidade de reduzir o número de filhos. Mesmo com o Brasil não tendo uma política de controle de natalidade, apresentou uma queda nas taxas de fecundidade a partir da década de 70 que não teve como fio condutor uma imposição. “Foi uma conjunção complexa de esforços, investimentos e vários outros fatores”, constata.

Conclusões
Nos primeiros 20 anos de sua carreira, Coutinho apresentou uma grande produção na pesquisa e estava num lugar muito favorável à sua realização, Salvador, onde a explosão populacional se configurava como um problema político. Ele tinha à sua disposição uma população expressiva, carente não somente de contracepção, mas também de educação, saúde, trabalho, moradia. Aliás, esta foi uma das críticas feitas a ele: “a população não tinha o que comer, mas a pílula não podia faltar”. Daniela revela que ele de fato tinha planos de ajudar a diminuir a natalidade, buscando envolvimento com as políticas públicas, na época da ditadura militar. O governo brasileiro, ainda que muitas vezes afinado com as instituições internacionais que preconizavam o controle da natalidade, propagava uma política inversa: o problema populacional do “preenchimento” dos espaços vazios da nação.

No entender da pesquisadora, Coutinho sempre quis ser polêmico, já que trabalhar com contracepção na década de 1960 no Brasil exigia uma postura de protagonismo e ousadia. Por si, esta já seria uma discussão acalorada em qualquer lugar do mundo. Em países desenvolvidos, a polêmica surgiu inclusive sob forma de reivindicação pelas próprias mulheres.

A autora da tese diz que Elsimar fez as coisas de um jeito que acabou fornecendo munição para polêmicas. “Para ele, o corpo feminino parecia uma máquina reprodutiva e, a menstruação, uma falha neste sistema. Entretanto, paradoxalmente, empenhou-se ao longo de sua trajetória no desenvolvimento de mecanismos que afetam diretamente esses aspectos reprodutivos que ele tanto valoriza em seu discurso: os contraceptivos hormonais.” E muito da polêmica de Coutinho, acentua Daniela, advinha também das pesquisas clínicas com mulheres pobres de Salvador, que não necessariamente levavam em conta, na época, uma série de questões, como os atuais critérios éticos de pesquisa, o consentimento informado e a questão dos direitos sexuais e reprodutivos.

A ligação de Coutinho com instituições internacionais também contribuiu para apimentar a polêmica, pois elas estavam mais focadas na diminuição da explosão populacional do que no direito individual por ter menos filhos. Para a antropóloga, essas coisas caminhavam juntas. O efeito da diminuição da taxa de natalidade – hoje está em 1,86 filho por mulher, segundo dados do IBGE de 2007 – tanto resultava de uma mudança de comportamento na qual as pessoas estavam querendo menos filhos como respondia a uma preocupação dos EUA com o crescimento desordenado da população no Brasil, sobretudo pobre.

 

 
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