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Uma cátedra para a segurança alimentar
“A fome deixou de ser algo objetivo e medido de uma forma antropométrica,
para ser vista também como uma percepção”

ÁLVARO KASSAB

A Unicamp acaba de conquistar a Cátedra FAO de 2008/2009 na área de Segurança Alimentar e Nutricional. A Universidade concorreu com várias instituições latino-americanas. “Trata-se de um apoio rotativo por dois anos que a Organização para a Agricultura e a Alimentação das Nações Unidas [FAO] concede a partir de um montante de recursos disponibilizados pela AECI [Agência Espanhola de Cooperação Internacional]. Para esses dois anos vamos receber US$ 40 mil que serão alocados em pesquisa”, revela Walter Belik, professor do Instituto de Economia da Unicamp (IE) e coordenador do projeto.

Segundo Belik, a cátedra funcionará como um espaço de pesquisa e docência interdisciplinar. “A nossa proposta se baseou em um projeto para formar novos pesquisadores. Nesse sentido, estamos abrindo um concurso que deverá oferecer um total de cinco auxílios a projetos de iniciação científica e outros três para a preparação de artigos inéditos a partir das dissertações e teses em fase final de elaboração”, revela Belik. Uma comissão formada por docentes de cinco unidades da Unicamp vai analisar as propostas, que devem ser entregues até o dia 5 de novembro. A cátedra foi aberta no último dia 16, data em que se comemora o Dia Mundial da Alimentação.

Na entrevista que segue, Belik fala da importância da cátedra para os estudos na área de segurança alimentar e analisa os esforços que vêm sendo feitos no campo do combate à fome no Brasil e no mundo.

O professor Walter Belik, coordenador do projeto: “Acho muito positivo que o tema saia da pauta para se transformar numa rotina” ( Foto: Antoninho Perri)Jornal da Unicamp – Qual a im­portância da cátedra da FAO no âmbito das atividades desenvolvidas na Unicamp?
Walter Belik Essa cátedra premia nosso esforço de insistir em obter recursos para desenvolvimento de novas capacidades na área de segurança alimentar e nutricional. Nós já havíamos concorrido, nos últimos quatro anos, com várias outras universidades da América Latina. Tivemos agora a nossa proposta aprovada. Os recursos destinados pela FAO são importantes porque vão incentivar os jovens talentos a trabalharem nessa área. Trata-se de um tema que tem que aparecer de uma forma interdisciplinar, não apenas na Unicamp, mas também em outras universidades.

JU – Isso não ocorre?
Belik – Não. As pesquisas na Unicamp são, digamos, seccionadas. As faculdades trabalham “pedaços” do tema. Na Unicamp, por exemplo, o Instituto de Economia [IE] trabalha com a parte da produção e distribuição agrícola; já o foco da Faculdade da Engenharia Agrícola [Feagri] é o aumento da produtividade; a Faculdade de Engenharia de Alimentos [FEA] prioriza a questão da inocuidade e da qualidade dos alimentos; a Faculdade de Ciências Médicas [FCM] dedica-se ao assunto do ponto de vista da Saúde Pública; temos o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas [IFCH], que investiga os aspectos sociais e políticos do tema, e assim por diante.
Nossa proposta visa à criação de um espaço onde os jovens possam, nos seus projetos de iniciação científica, olhar um pouco além das disciplinas de suas respectivas especialidades. É preciso olhar o todo, saber como as políticas se articulam no seu entorno social, econômico, ambiental, cultural etc.

JU – Há a possibilidade de outras áreas da Unicamp se integrarem ao projeto?
Belik – Conversamos num primeiro momento com representantes dessas áreas mencionadas na última resposta e também do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação [Nepa]. Mas, obviamente, contamos com uma massa crítica privilegiada, e nada impede que outras unidades se engajem. Há, também, representantes de outras áreas afins, e gostaríamos muito de contar com a participação deles. Por exemplo, os geógrafos, os alunos dos cursos de Letras, Artes e Engenharia Civil, entre outros.

JU – A idéia é reunir competências.
Belik - Sem dúvida. Temos muitas questões que estão ligadas à fome: abastecimento, manifestações culturais, tecnologias de cisternas, casas que possam garantir saneamento básico a custos mais reduzidos etc. São várias as inovações que poderiam ser incorporadas se houver um diálogo interdisciplinar. Nós pretendemos, mais do que qualquer outra coisa, consolidar essa área na Unicamp.

JU – Depois de toda a discussão travada acerca do Fome Zero e de temas correlatos, tem-se a impressão que o assunto saiu um pouco de pauta. O senhor concorda?
Belik – Em termos de política pública na área de segurança alimentar, o governo federal concentrou suas ações em um programa da Transferência de Rendas Condicionada – o Bolsa Família. O Fome Zero, enquanto política de segurança alimentar, é mais amplo que um programa de transferência de rendas. São várias pontas que deveriam estar unidas: produção, distribuição, consumo e o acesso aos alimentos, que por sua vez está sendo garantido por meio de transferências de renda. Como o Bolsa Família, já estava apresentando resultados significativos em menos de quatro anos – com uma cobertura quase que total do público eleito pelos estudos, deixou-se de se falar nessas outras iniciativas que são importantes, muito embora o governo federal tenha desenvolvido esforços muito fortes em outras áreas.

JU – Quais seriam?
Belik – Por exemplo, na área da merenda escolar. O governo avançou muito nessa área com o aumento do aporte de recursos e da cobertura. Houve também um grande esforço na implantação de restaurantes populares e bancos de alimentos. Ademais, surgiram novos programas de financiamento como o da compra antecipada da agricultura familiar, entre outros. Ocorre que, dado o seu porte, o Bolsa Família acabou eclipsando as demais iniciativas.

JU – Em que medida, na sua opinião, a inclusão do Fome Zero na pauta colaborou para a as discussões sobre a insegurança alimentar?
Belik – É interessante notar que foi criada toda uma polêmica em torno do assunto, sobretudo no que diz respeito à dimensão da fome no país. Indagava-se se ela existia ou não... Parece que, ao longo do tempo, o assunto foi se consolidando como aceito entre as diversas posições políticas.

JU – O senhor quer dizer então que é consensual a tese de que existe fome no país e que as ações do governo, por bem-sucedidas, atenuaram esse quadro?
Belik – Acredito que sim, no sentido de que a fome é a representação de um quadro de insegurança alimentar e nutricional. Tanto que, nas últimas eleições presidenciais, todos os candidatos se manifestaram a favor da continuidade dos programas de transferência de renda e combate à fome. O tema entrou na agenda como uma política pública importante e necessária de distribuição de renda e de garantia ao acesso aos alimentos.
Trata-se de um grande avanço. Não causa mais manifestações de ordem ideológica e política. Passou a ser vista como uma ação necessária no contexto das políticas sociais. Nesse sentido, acho muito positivo que o tema saia da pauta para se transformar numa rotina. Nós temos hoje uma política que garante uma rede de proteção social. O objetivo não é perpetuar essa política, mas sim, na medida em que a população vulnerável vai se emancipando, trocá-la por outras ações. Mas é, reconhecidamente, uma política necessária.

JU – Que avaliação o senhor faz do quadro de insegurança alimentar no país?
Belik ­– Eu acho que, à medida que avançamos, muitas coisas foram sendo esclarecidas. O Projeto Fome Zero, quando foi lançado, tinha inclusive um aposto que falava “em uma política de segurança alimentar para o Brasil”. Fome era uma espécie de nome fantasia, que pudesse facilitar a compreensão das pessoas sobre o problema. Em 2004, o governo passou a pesquisar a segurança alimentar na população. A PNAD desse ano teve um suplemento sobre o problema, por meio do qual se perguntou às famílias sobre a sua avaliação, quase que subjetiva, acerca da possibilidade de se alimentar. A fome, então, deixou de ser vista como algo objetivo e medido de uma forma antropométrica e clínica, para ser vista também como uma percepção.

JU – E quais são as diferenças mais importantes entre a análise dessa percepção e dos indicadores antropométricos?
Belik – Normalmente, constata-se que os números referentes ao índice de massa corporal – utilizado pela área médica – e à desnutrição infantil, são relativamente baixos. No caso da desnutrição, continuam baixando, numa trajetória cujo início data do começo dos anos 90. Por outro lado, se forem incorporados outros indicadores, entre os quais, por exemplo, a insegurança das pessoas com relação ao acesso do alimento no futuro, a realidade é outra.

JU – O senhor poderia exemplificar?
Belik – Uma pessoa que se alimenta de doação, por exemplo, pode estar com seus indicadores antropométricos em dia, mas pode também viver numa situação de insegurança, de vulnerabilidade. Na pesquisa da PNAD, observamos um conjunto de pessoas que tem uma situação de insegurança alimentar grave. Estamos falando de 7,7% da população, o que dá um contingente de 13,9 milhões de pessoas. Se somarmos a este o grupo ao qual se atribuiu a situação de insegurança alimentar moderada, vamos ter um total de 38,7 milhões de pessoas ou 21,9% da população. Essas cifras são muito maiores que a proporção de pessoas com déficit de Massa Corporal de 5,4%, medida pela POF de 2003, ou os 8% de subnutridos estimados pela FAO em 2006.

JU – E quando se fala em 40 milhões passando fome?
Belik – Este número tem a ver com a renda. Trata-se de um exemplo típico. Se compararmos a renda da população brasileira com o custo da cesta básica, chegaremos à conclusão que este número é, inclusive, maior. Se considerarmos uma ingesta mínima de 1,9 mil kcal/dia dará 77 milhões de pessoas. Ou seja, se compararmos pelo rendimento, teoricamente, esse contingente não teria condição de comer.

Pesquisadores em laboratório da Faculdade de Engenharia de Alimentos: esforço interdisciplinar JU – O que ocorre?
Belik – Elas recebem apoio, ajuda solidária de instituições, comem no trabalho e por aí vai. As crianças, por exemplo, comem a merenda escolar. Tudo isso forma uma rede de proteção que consegue reduzir esse número.

JU – E qual seria o número?
Belik – O Ministério do Desenvolvimento Social estima que o público alvo do Bolsa Família seria 14 milhões de famílias, ou quase 50 milhões de pessoas em situação de pobreza. Utilizando a PNAD 2004 eu di­­­­­ria que o “núcleo duro” da pobreza extrema e insegurança alimentar seria de 27 milhões de brasileiros. Essas pessoas estão concentradas na zona rural e em cidades pequenas e médias, principalmente da região Nordeste.

JU – Em que medida esse quadro mundial de instabilidade pode fazer recuar os esforços de combate à fome? Pode haver um retrocesso?
Belik – Em termos mundiais, já está havendo um retrocesso. Há uma preocupação em razão da alta no preço dos alimentos, que ocorreu no começo deste ano. Alguns preços já caíram, mas as perspectivas são de que eles não voltarão ao patamar anterior. E, mesmo assim, a volta não se dá de uma forma imediata no mercado interno. A própria FAO estima que, entre 2007 e 2008, mais de cem milhões de pessoas passaram à situação de insegurança alimentar. Isso é muito grave porque todos os países assumiram o compromisso de redução pela metade do número de pessoas passando fome até 2015, que é o compromisso número 1 dos Objetivos do Milênio.

JU – Isso era factível?
Belik – A perspectiva já era de não atingir essa meta até 2015. Agora, a situação piorou. Muito provavelmente nós voltamos à casa dos 850 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade, segundo indicadores de subnutrição da FAO. Trata-se da mesma faixa que tínhamos em meados da década de 90. Portanto, a perspectiva mundial é muito ruim, considerando ainda que boa parte dessa população está concentrada na África e em algumas regiões da Ásia. São países com poucos recursos e muitos deles estão em guerra. As chances de mitigar rapidamente esses problemas são muito pequenas. Não há consenso na comunidade internacional sobre como combater o problema.

JU – E no caso do Brasil?
Belik – Nós estamos numa situação muito favorável. O país progrediu bastante nos últimos anos. Tanto que a FAO reconhece que o Brasil já atingiu a meta do Milênio de 2015.

JU – O senhor acha então que a crise não respingará no Brasil no que diz respeito ao combate à fome?
Belik – Será um período difícil, mas eu acho que não. Em termos de Orçamento, existe uma prioridade dos governos em garantir essa rede de proteção social.

JU – Quanto é destinado para esses programas?
Belik – O programa Bolsa Família custa aproximadamente R$ 10,8 bilhões/ano. Existem outros programas, estes dispersos, que precisam ser adicionados. Por exemplo, o programa de merenda escolar custa em torno de R$ 1,1 bilhão, sendo que agora o governo decidiu estendê-lo para o ensino médio, o que é um grande avanço. Outro projeto importantíssimo é o Saúde da Família, já que não adianta dar comida se tem uma criança com diarréia. Trata-se de um programa caro.

A Cepal recomenda que o gasto social, nos países da América Latina, deva ser em torno de 15% do PIB. O Brasil gasta 860 dólares por habitante, segundo dados de 2005 da própria Cepal. A média latino-americana é de 440 dólares. É preciso considerar, porém, que, no caso do Brasil, há um agravante: quase um terço desse gasto social está destinado à aposentadoria, que vai para as classes que mais contribuíram, ou seja, as de renda mais elevada.

Por outro lado, deve-se levar em conta também que há um contingente enorme, como é o caso de 8 milhões de trabalhadores rurais, que recebem um salário mínimo de aposentadoria mas que nunca recolheram nada diretamente para a Previdência. Temos também os casos de benefícios por invalidez e o seguro-desemprego, entre outros gastos que, diferentemente de outros países latino-americanos, no Brasil são garantidos de forma universal.

JU – Quanto esses gastos representam na fatia do PIB?
Belik – São cerca US$ 154 bilhões. O PIB brasileiro daquele ano estava um pouco abaixo de trilhão de dólares, ou seja, dá cerca de 15%, o que significa que está dentro da margem da Cepal.

JU – Que avaliação o senhor faz do papel da universidade brasileira nos estudos acerca do combate à fome? A contribuição ainda é tímida ou a academia está engajada nesse processo?
Belik – O Brasil tem tradição nas pesquisas de combate à fome. Estamos comemorando este ano cem anos do nascimento do Josué de Castro. Ele é um marco nesse esforço. Em plena década de 40, um médico e pesquisador da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro colocou o tema em discussão. Não demoraria para a questão ganhar dimensão mundial. Depois dele, tivemos outros expoentes. Praticamente toda a contribuição que nós temos hoje nessa área da segurança alimentar vem da universidade. Ocorre que não estamos conseguindo responder, de uma forma articulada, aos desafios.

JU – O que falta para que isso ocorra?
Belik – O Brasil desenvolveu um modelo de segurança alimentar que, na minha opinião, está muito concentrado nos programas de transferência de renda. E esses programas, a gente sabe, têm problemas. Eles combatem a pobreza, mas aqui nós estamos falando de alimentação. Teríamos que trabalhar outras vertentes.

JU – Quais seriam?
Belik – Não temos feito a lição de casa em algumas delas. Por exemplo, a questão da educação alimentar. Nós não temos um programa voltado para esta finalidade no Brasil, como existe em outros países do mundo. Temos apenas boas iniciativas isoladas. Não dispomos também de um modelo de política de abastecimento coerente com as mudanças tecnológicas, organizacionais e econômicas que ocorreram nos últimos anos.

JU – Qual é o modelo adotado no Brasil?
Belik – É baseado em centrais de abastecimento espalhadas pelo país. Elas são obsoletas. Neste momento, em que estamos vivendo essa alta da crise dos alimentos, qual a resposta que podemos dar? Um dos grandes problemas que tivemos no Brasil foi a falta de uma política de estoques reguladores, que fez com que alguns preços disparassem no começo do ano. Qual seria a política agrícola afinada com as novas relações que existem na economia entre produtores, processadores e consumidores? No passado, o governo soltava recursos de uma forma até excessiva e mal dirigida e havia desperdício. São temas muitos importantes, que demandam um olhar que transcende o olhar isolado de um economista ou de um sociólogo. É necessário que esse olhar seja conjunto.

JU – Falta, na sua opinião, um diálogo interdisciplinar que busque soluções para esses impasses?
Belik – Não só para buscar soluções, mas para propor novas abordagens e desenhos de política. Essa cátedra, repito, vem em boa hora. Os jovens pesquisadores precisam se motivar a abraçar esse desafio. É necessário propor novas soluções a partir de um espaço de discussão por meio do qual a gente possa colocar essas questões e avançar. Não podemos mais ficar reféns de modelos do passado e da literatura estrangeira. Queremos motivar essa garotada a sair a campo para levantar material, discutir realidades e ganhar visibilidade. Apenas assim poderemos implementar propostas objetivas e produtivas. Pretendemos colocar esses jovens na roda.


 

Serviço

Entrega das propostas: até 5 de novembro de 2008

Anúncio dos resultados: 29 de novembro de 2008

Conheça o regulamento no endereço: www.eco.unicamp.br

Mais informações: NEA/IE/Unicamp – (19) 35 21 57 16
ou no ediene@eco.unicamp.br

 

 

 
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