Jornal
da Unicamp – Qual a importância da cátedra da FAO no âmbito
das atividades desenvolvidas na Unicamp?
Walter Belik – Essa cátedra premia
nosso esforço de insistir em obter recursos para desenvolvimento
de novas capacidades na área de segurança alimentar e nutricional.
Nós já havíamos concorrido, nos últimos quatro anos, com
várias outras universidades da América Latina. Tivemos agora
a nossa proposta aprovada. Os recursos destinados pela FAO
são importantes porque vão incentivar os jovens talentos
a trabalharem nessa área. Trata-se de um tema que tem que
aparecer de uma forma interdisciplinar, não apenas na Unicamp,
mas também em outras universidades.
JU – Isso não ocorre?
Belik – Não. As pesquisas na Unicamp são, digamos,
seccionadas. As faculdades trabalham “pedaços” do tema.
Na Unicamp, por exemplo, o Instituto de Economia [IE] trabalha
com a parte da produção e distribuição agrícola; já o foco
da Faculdade da Engenharia Agrícola [Feagri] é o aumento
da produtividade; a Faculdade de Engenharia de Alimentos
[FEA] prioriza a questão da inocuidade e da qualidade dos
alimentos; a Faculdade de Ciências Médicas [FCM] dedica-se
ao assunto do ponto de vista da Saúde Pública; temos o Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas [IFCH], que investiga os
aspectos sociais e políticos do tema, e assim por diante.
Nossa proposta visa à criação de um espaço onde os jovens
possam, nos seus projetos de iniciação científica, olhar
um pouco além das disciplinas de suas respectivas especialidades.
É preciso olhar o todo, saber como as políticas se articulam
no seu entorno social, econômico, ambiental, cultural etc.
JU – Há a possibilidade de outras áreas da
Unicamp se integrarem ao projeto?
Belik – Conversamos num primeiro momento com representantes
dessas áreas mencionadas na última resposta e também do
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação [Nepa]. Mas,
obviamente, contamos com uma massa crítica privilegiada,
e nada impede que outras unidades se engajem. Há, também,
representantes de outras áreas afins, e gostaríamos muito
de contar com a participação deles. Por exemplo, os geógrafos,
os alunos dos cursos de Letras, Artes e Engenharia Civil,
entre outros.
JU – A idéia é reunir competências.
Belik - Sem dúvida. Temos muitas questões
que estão ligadas à fome: abastecimento, manifestações culturais,
tecnologias de cisternas, casas que possam garantir saneamento
básico a custos mais reduzidos etc. São várias as inovações
que poderiam ser incorporadas se houver um diálogo interdisciplinar.
Nós pretendemos, mais do que qualquer outra coisa, consolidar
essa área na Unicamp.
JU – Depois de toda a discussão travada acerca
do Fome Zero e de temas correlatos, tem-se a impressão que
o assunto saiu um pouco de pauta. O senhor concorda?
Belik – Em termos de política pública na
área de segurança alimentar, o governo federal concentrou
suas ações em um programa da Transferência de Rendas Condicionada
– o Bolsa Família. O Fome Zero, enquanto política de segurança
alimentar, é mais amplo que um programa de transferência
de rendas. São várias pontas que deveriam estar unidas:
produção, distribuição, consumo e o acesso aos alimentos,
que por sua vez está sendo garantido por meio de transferências
de renda. Como o Bolsa Família, já estava apresentando resultados
significativos em menos de quatro anos – com uma cobertura
quase que total do público eleito pelos estudos, deixou-se
de se falar nessas outras iniciativas que são importantes,
muito embora o governo federal tenha desenvolvido esforços
muito fortes em outras áreas.
JU – Quais seriam?
Belik – Por exemplo, na área da merenda escolar.
O governo avançou muito nessa área com o aumento do aporte
de recursos e da cobertura. Houve também um grande esforço
na implantação de restaurantes populares e bancos de alimentos.
Ademais, surgiram novos programas de financiamento como
o da compra antecipada da agricultura familiar, entre outros.
Ocorre que, dado o seu porte, o Bolsa Família acabou eclipsando
as demais iniciativas.
JU – Em que medida, na sua opinião, a inclusão
do Fome Zero na pauta colaborou para a as discussões sobre
a insegurança alimentar?
Belik – É interessante notar que foi criada
toda uma polêmica em torno do assunto, sobretudo no que
diz respeito à dimensão da fome no país. Indagava-se se
ela existia ou não... Parece que, ao longo do tempo, o assunto
foi se consolidando como aceito entre as diversas posições
políticas.
JU – O senhor quer dizer então que é consensual
a tese de que existe fome no país e que as ações do governo,
por bem-sucedidas, atenuaram esse quadro?
Belik – Acredito que sim, no sentido de que a fome
é a representação de um quadro de insegurança alimentar
e nutricional. Tanto que, nas últimas eleições presidenciais,
todos os candidatos se manifestaram a favor da continuidade
dos programas de transferência de renda e combate à fome.
O tema entrou na agenda como uma política pública importante
e necessária de distribuição de renda e de garantia ao acesso
aos alimentos.
Trata-se de um grande avanço. Não causa mais manifestações
de ordem ideológica e política. Passou a ser vista como
uma ação necessária no contexto das políticas sociais. Nesse
sentido, acho muito positivo que o tema saia da pauta para
se transformar numa rotina. Nós temos hoje uma política
que garante uma rede de proteção social. O objetivo não
é perpetuar essa política, mas sim, na medida em que a população
vulnerável vai se emancipando, trocá-la por outras ações.
Mas é, reconhecidamente, uma política necessária.
JU – Que avaliação o senhor faz do quadro de
insegurança alimentar no país?
Belik – Eu acho que, à medida que avançamos, muitas coisas
foram sendo esclarecidas. O Projeto Fome Zero, quando foi
lançado, tinha inclusive um aposto que falava “em uma política
de segurança alimentar para o Brasil”. Fome era uma espécie
de nome fantasia, que pudesse facilitar a compreensão das
pessoas sobre o problema. Em 2004, o governo passou a pesquisar
a segurança alimentar na população. A PNAD desse ano teve
um suplemento sobre o problema, por meio do qual se perguntou
às famílias sobre a sua avaliação, quase que subjetiva,
acerca da possibilidade de se alimentar. A fome, então,
deixou de ser vista como algo objetivo e medido de uma forma
antropométrica e clínica, para ser vista também como uma
percepção.
JU – E quais são as diferenças mais importantes
entre a análise dessa percepção e dos indicadores antropométricos?
Belik – Normalmente, constata-se que os números referentes
ao índice de massa corporal – utilizado pela área médica
– e à desnutrição infantil, são relativamente baixos. No
caso da desnutrição, continuam baixando, numa trajetória
cujo início data do começo dos anos 90. Por outro lado,
se forem incorporados outros indicadores, entre os quais,
por exemplo, a insegurança das pessoas com relação ao acesso
do alimento no futuro, a realidade é outra.
JU – O senhor poderia exemplificar?
Belik – Uma pessoa que se alimenta de doação, por
exemplo, pode estar com seus indicadores antropométricos
em dia, mas pode também viver numa situação de insegurança,
de vulnerabilidade. Na pesquisa da PNAD, observamos um conjunto
de pessoas que tem uma situação de insegurança alimentar
grave. Estamos falando de 7,7% da população, o que dá um
contingente de 13,9 milhões de pessoas. Se somarmos a este
o grupo ao qual se atribuiu a situação de insegurança alimentar
moderada, vamos ter um total de 38,7 milhões de pessoas
ou 21,9% da população. Essas cifras são muito maiores que
a proporção de pessoas com déficit de Massa Corporal de
5,4%, medida pela POF de 2003, ou os 8% de subnutridos estimados
pela FAO em 2006.
JU – E quando se fala em 40 milhões passando
fome?
Belik – Este número tem a ver com a renda. Trata-se
de um exemplo típico. Se compararmos a renda da população
brasileira com o custo da cesta básica, chegaremos à conclusão
que este número é, inclusive, maior. Se considerarmos uma
ingesta mínima de 1,9 mil kcal/dia dará 77 milhões de pessoas.
Ou seja, se compararmos pelo rendimento, teoricamente, esse
contingente não teria condição de comer.
JU
– O que ocorre?
Belik – Elas recebem apoio, ajuda solidária de instituições,
comem no trabalho e por aí vai. As crianças, por exemplo,
comem a merenda escolar. Tudo isso forma uma rede de proteção
que consegue reduzir esse número.
JU – E qual seria o número?
Belik – O Ministério do Desenvolvimento Social estima
que o público alvo do Bolsa Família seria 14 milhões de
famílias, ou quase 50 milhões de pessoas em situação de
pobreza. Utilizando a PNAD 2004 eu diria que o “núcleo
duro” da pobreza extrema e insegurança alimentar seria de
27 milhões de brasileiros. Essas pessoas estão concentradas
na zona rural e em cidades pequenas e médias, principalmente
da região Nordeste.
JU – Em que medida esse quadro mundial de instabilidade
pode fazer recuar os esforços de combate à fome? Pode haver
um retrocesso?
Belik – Em termos mundiais, já está havendo um retrocesso.
Há uma preocupação em razão da alta no preço dos alimentos,
que ocorreu no começo deste ano. Alguns preços já caíram,
mas as perspectivas são de que eles não voltarão ao patamar
anterior. E, mesmo assim, a volta não se dá de uma forma
imediata no mercado interno. A própria FAO estima que, entre
2007 e 2008, mais de cem milhões de pessoas passaram à situação
de insegurança alimentar. Isso é muito grave porque todos
os países assumiram o compromisso de redução pela metade
do número de pessoas passando fome até 2015, que é o compromisso
número 1 dos Objetivos do Milênio.
JU – Isso era factível?
Belik – A perspectiva já era de não atingir essa
meta até 2015. Agora, a situação piorou. Muito provavelmente
nós voltamos à casa dos 850 milhões de pessoas em situação
de vulnerabilidade, segundo indicadores de subnutrição da
FAO. Trata-se da mesma faixa que tínhamos em meados da década
de 90. Portanto, a perspectiva mundial é muito ruim, considerando
ainda que boa parte dessa população está concentrada na
África e em algumas regiões da Ásia. São países com poucos
recursos e muitos deles estão em guerra. As chances de mitigar
rapidamente esses problemas são muito pequenas. Não há consenso
na comunidade internacional sobre como combater o problema.
JU – E no caso do Brasil?
Belik – Nós estamos numa situação muito favorável.
O país progrediu bastante nos últimos anos. Tanto que a
FAO reconhece que o Brasil já atingiu a meta do Milênio
de 2015.
JU – O senhor acha então que a crise não respingará
no Brasil no que diz respeito ao combate à fome?
Belik – Será um período difícil, mas eu acho que
não. Em termos de Orçamento, existe uma prioridade dos governos
em garantir essa rede de proteção social.
JU – Quanto é destinado para esses programas?
Belik – O programa Bolsa Família custa aproximadamente
R$ 10,8 bilhões/ano. Existem outros programas, estes dispersos,
que precisam ser adicionados. Por exemplo, o programa de
merenda escolar custa em torno de R$ 1,1 bilhão, sendo que
agora o governo decidiu estendê-lo para o ensino médio,
o que é um grande avanço. Outro projeto importantíssimo
é o Saúde da Família, já que não adianta dar comida se tem
uma criança com diarréia. Trata-se de um programa caro.
A Cepal recomenda que o gasto social, nos países da América
Latina, deva ser em torno de 15% do PIB. O Brasil gasta
860 dólares por habitante, segundo dados de 2005 da própria
Cepal. A média latino-americana é de 440 dólares. É preciso
considerar, porém, que, no caso do Brasil, há um agravante:
quase um terço desse gasto social está destinado à aposentadoria,
que vai para as classes que mais contribuíram, ou seja,
as de renda mais elevada.
Por outro lado, deve-se levar em conta também que há um
contingente enorme, como é o caso de 8 milhões de trabalhadores
rurais, que recebem um salário mínimo de aposentadoria mas
que nunca recolheram nada diretamente para a Previdência.
Temos também os casos de benefícios por invalidez e o seguro-desemprego,
entre outros gastos que, diferentemente de outros países
latino-americanos, no Brasil são garantidos de forma universal.
JU – Quanto esses gastos representam na fatia
do PIB?
Belik – São cerca US$ 154 bilhões. O PIB brasileiro
daquele ano estava um pouco abaixo de trilhão de dólares,
ou seja, dá cerca de 15%, o que significa que está dentro
da margem da Cepal.
JU – Que avaliação o senhor faz do papel da
universidade brasileira nos estudos acerca do combate à
fome? A contribuição ainda é tímida ou a academia está engajada
nesse processo?
Belik – O Brasil tem tradição nas pesquisas de combate
à fome. Estamos comemorando este ano cem anos do nascimento
do Josué de Castro. Ele é um marco nesse esforço. Em plena
década de 40, um médico e pesquisador da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro colocou o tema em discussão. Não demoraria
para a questão ganhar dimensão mundial. Depois dele, tivemos
outros expoentes. Praticamente toda a contribuição que nós
temos hoje nessa área da segurança alimentar vem da universidade.
Ocorre que não estamos conseguindo responder, de uma forma
articulada, aos desafios.
JU – O que falta para que isso ocorra?
Belik – O Brasil desenvolveu um modelo de segurança
alimentar que, na minha opinião, está muito concentrado
nos programas de transferência de renda. E esses programas,
a gente sabe, têm problemas. Eles combatem a pobreza, mas
aqui nós estamos falando de alimentação. Teríamos que trabalhar
outras vertentes.
JU – Quais seriam?
Belik – Não temos feito a lição de casa em algumas
delas. Por exemplo, a questão da educação alimentar. Nós
não temos um programa voltado para esta finalidade no Brasil,
como existe em outros países do mundo. Temos apenas boas
iniciativas isoladas. Não dispomos também de um modelo de
política de abastecimento coerente com as mudanças tecnológicas,
organizacionais e econômicas que ocorreram nos últimos anos.
JU – Qual é o modelo adotado no Brasil?
Belik – É baseado em centrais de abastecimento espalhadas
pelo país. Elas são obsoletas. Neste momento, em que estamos
vivendo essa alta da crise dos alimentos, qual a resposta
que podemos dar? Um dos grandes problemas que tivemos no
Brasil foi a falta de uma política de estoques reguladores,
que fez com que alguns preços disparassem no começo do ano.
Qual seria a política agrícola afinada com as novas relações
que existem na economia entre produtores, processadores
e consumidores? No passado, o governo soltava recursos de
uma forma até excessiva e mal dirigida e havia desperdício.
São temas muitos importantes, que demandam um olhar que
transcende o olhar isolado de um economista ou de um sociólogo.
É necessário que esse olhar seja conjunto.
JU – Falta, na sua opinião, um diálogo interdisciplinar
que busque soluções para esses impasses?
Belik – Não só para buscar soluções, mas para propor
novas abordagens e desenhos de política. Essa cátedra, repito,
vem em boa hora. Os jovens pesquisadores precisam se motivar
a abraçar esse desafio. É necessário propor novas soluções
a partir de um espaço de discussão por meio do qual a gente
possa colocar essas questões e avançar. Não podemos mais
ficar reféns de modelos do passado e da literatura estrangeira.
Queremos motivar essa garotada a sair a campo para levantar
material, discutir realidades e ganhar visibilidade. Apenas
assim poderemos implementar propostas objetivas e produtivas.
Pretendemos colocar esses jovens na roda.