Faz
muitos anos que a professora Irenilza de Alencar Naas realiza
pesquisas com criações de aves, suínos e bovinos pela Faculdade
de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp. E sempre se
intrigava quando o granjeiro, depois de ouvir o piado dos
pintinhos do novo lote, reclamava: “Ih, essa ninhada não
vai dar certo”. O mesmo acontecia com os suínos, onde um
grunhido diferenciado atentava o tratador para algo de errado.
“É natural que, quem trabalhe por tanto tempo dentro do
galpão, tenha o ouvido treinado para perceber nuances no
som emitido pelos animais”.
O desenvolvimento de um software capaz de interpretar a
vocalização de aves, suínos e bovinos, identificando se
estão com frio, fome, medo ou frustração, é um dos resultados
das pesquisas orientadas por Irenilza Naas desde que ela
passou a atuar com zootecnia de precisão e, mais precisamente,
com a questão do bem-estar animal. “A zootecnia de precisão
é uma área que concentra o olhar nos detalhes, já que o
lucro da produção hoje está nos centavos”.
Segundo a pesquisadora da Feagri, os países compradores
começam a questionar cada vez mais a forma como o Brasil
produz a carne que exporta. “O animal pode ser criado em
boas instalações e apresentar ótima produtividade, mas isto
não significa que tenha deixado de passar fome, sede, frio
ou estresse em alguma etapa do sistema de produção. A questão
que se apresentava era como aferir o bem-estar animal efetivamente,
e não subjetivamente”.
A idéia inicial foi encontrar um meio de compreender “fala”,
postura ou comportamento dos animais que indicassem condições
de conforto e desconforto. Irenilza Naas e Daniella Moura,
também professora da Feagri, envolveram muitos estudantes
em vários projetos enviados à Fapesp e ao CNPq. “Além de
complexo, era um tema inédito, estudado apenas por mais
dois grupos nas universidades de Lowven (Bélgica) e de Tskuba
(Japão). Havia poucas informações”.
A escassez de fontes fez com que os pesquisadores, curiosamente,
buscassem inclusive estudos sobre o choro de crianças no
período neonatal, supondo que um recém-nascido apresentaria
os mesmos problemas de vocalização que um animal. Eles recorreram
também a pesquisas focando a interpretação de sons de animais
selvagens, a exemplo dos pássaros do professor Jacques Villiard,
do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, que tem alguns
trabalhos nesse sentido.
Compreendidos certos princípios da “fala” dos animais,
o grupo da Feagri buscou uma fundamentação científica para
o conhecimento adquirido pelos tratadores em sua lida diária.
“Como por brincadeira, passamos a gravar sons de aves, bovinos
e suínos em várias idades, expandindo depois o espectro
do som para verificar as variações. E pudemos, realmente,
perceber diferenças de espectro para diferentes situações”.
Ainda assim, como observa Irenilza Naas, havia necessidade
de mecanizar este processo de identificação, a fim de que
ele pudesse ser utilizado por todo criador de animais e
não apenas por um especialista. “Veio então a idéia do software,
com o qual é possível interpretar os sons de maneira simples.
Ele já foi utilizado para várias espécies e só não solicitamos
a patente por que ainda estamos fazendo alguns ajustes para
facilitar ainda mais o seu manejo pelo usuário”.
Constatações
Os testes com o software permitiram aos pesquisadores identificar,
em aves e suínos, sons associados a medo, dor, frustração
e fome, com os espectros correspondentes. “Confirmamos aspectos
corriqueiros apontados pelo granjeiro, como o fato de o
pintinho piar mais (e agudamente) quando está com frio,
possivelmente chamando a mãe para aquecê-lo, insatisfeito
com as condições do incubatório”.
Outra constatação foi de que a porca chama os leitões para
mamar e que, quando isto acontece, o desmame ocorre de maneira
mais tranqüila. “Gravamos e reproduzimos o chamado em ambientes
onde estavam outras porcas. Bastava o som ambiente para
que os leitões atendessem prontamente e mamassem mais. Há
efetivamente uma comunicação entre os animais, o espectro
mostra ‘falas’ que variam conforme a situação”.
A docente da Feagri adianta que já pensa na utilização
da técnica para determinação de estro, como no caso dos
suínos e bovinos. “Uma das conseqüências do calor é o estro
silencioso. A vaca precisa ser inseminada no dia correto
e, se não sabemos que está em estro, podemos perder o ciclo,
o que representa prejuízo econômico. Estamos verificando
se o estro resulta em alguma manifestação vocal passível
de reconhecimento, o que ofereceria uma indicação a mais
sobre o momento certo da inseminação”.
Ferramenta
O grupo de Irenilza Naas teve o trabalho publicado no exterior
há três meses e em seguida no Brasil – praticamente ao mesmo
tempo em que um grupo japonês divulgava seu estudo sobre
identificação de vacas em sofrimento. “Passamos a ter uma
ferramenta para efetivamente monitorar o bem-estar animal.
Ao invés de apenas supor, agora podemos medir, como todo
engenheiro deseja. Esta é a grande valia deste trabalho”.
A pesquisadora da Feagri acredita em uma boa aceitação do
software pelo setor produtivo, principalmente se for barato
e de fácil manuseio, como promete. “Aos sons podem ser associadas
imagens por meio de uma câmera de vigilância, ao menos durante
os períodos críticos da produção destes animais, que já
conhecemos. O sistema ajudaria em termos de auditoria, sendo
que o produtor poderia receber um selo atestando as condições
de bem-estar da sua criação”.
Irenilza Naas ressalta a importância de os produtores brasileiros,
na condição de maiores exportadores de carne, passarem a
priorizar a questão do bem-estar animal, diante de um interesse
mundial muito acima do esperado. “Até cinco anos atrás,
este assunto era pouco discutido nos Estados Unidos, grande
consumidor e produtor de carne. Hoje, o McDonald’s e a maioria
das cadeias de fast food mantêm equipes especializadas no
tema”.
Essas equipes, segundo a professora, estão preparadas para
atender à demanda de um público que, embora vá se alimentar
da carne, condena que o animal sofra durante o processo.
“Quem trabalha com animais de produção nunca pensa neles
como semelhantes do animal que temos em casa. O setor é
uma máquina de produzir alimento. No entanto, por que esses
animais não se comunicariam? Sempre aprendendo com a simplicidade
do pessoal do campo”.