A
forma como o corpo humano é visto e entendido sofreu inúmeras
transformações ao longo da história. Na Idade Média, por
exemplo, ele era considerado profano pela Igreja Católica.
O papa Gregório Magno chegou a classificá-lo como “abominável
vestimenta da alma”. No Renascimento, porém, o corpo ganhou
novas representações, algumas ainda em vigor. “Na Renascença,
teve início o que classifico de projeto educativo de racionalização
do corpo. Graças ao uso de imagens, sobretudo as produzidas
pela anatomia, foram construídas novas idéias e imaginações
sobre essa estrutura física”, afirma Vinícius Demarchi Silva
Terra, que tratou do tema em sua tese de doutoramento, apresentada
na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Segundo ele,
tal construção não foi neutra, visto que foi feita num contexto
histórico, político e estético específico.
Intitulado “Memórias anatômicas”, o estudo feito por Vinícius
Terra foi orientado pela professora Carmen Lúcia Soares.
Nele, o autor analisou imagens produzidas pela ciência para
estudar o corpo humano. O clima reinante no Renascimento,
segundo ele, favoreceu a formulação de novos olhares acerca
da realidade, o que ajudou a impulsionar o desenvolvimento
da anatomia. Naquele momento ocorreu o que o pesquisador
classifica de formulação de uma “cultura da dissecação”.
Antes de consolidar-se como uma área do conhecimento, entretanto,
a anatomia viveu uma situação marginal. Isso se explica
por conta da ciência ter sido praticada inicialmente pelos
cirurgiões, que à época eram meros auxiliares dos médicos.
“A função de cirurgião estava no mesmo patamar da dos barbeiros,
que eram os técnicos da dissecação. Eles não possuíam os
conhecimentos filosóficos que caracterizavam aquela medicina.
Eram os que faziam os trabalhos rudimentares de cura, como
cuidar de uma ferida ou uma unha encravada”, detalha o autor
da tese.
Até se estabelecer como expressão do saber oficial, a anatomia
foi exercida por esses cirurgiões-barbeiros. Eles representavam,
por assim dizer, o nascimento de uma nova cultura e de uma
nova forma de pensar tanto o corpo quanto o mundo. Conforme
Vinícius Terra, o processo de afirmação dessa ciência foi
lento e lançou mão de algumas estratégias. O uso de imagens
didáticas foi uma delas. “As imagens constituíram um discurso
visual e com ampla capacidade de difundir idéias. A anatomia
nos ensinou a ver o corpo, assim como a perspectiva nos
ensinou a olhar o espaço, definindo fronteiras entre o sujeito
e o objeto”, considera o pesquisador. Além disso, prossegue
ele, a produção dessas imagens, e a conseqüente difusão
dessa nova cultura, teve que ser objeto de variados acordos
e homologações junto aos poderes constituídos. “Daí o fato
de o projeto educativo de racionalização do corpo não poder
ser considerado neutro”, acrescenta.
A escolha do objeto de estudo em questão, destaca Vinícius
Terra, não foi somente o corpo, mas o corpo morto. A idéia
da morte, nesse caso, pode ser entendida como um desejo
de racionalidade e controle sobre o corpo. Dito de outro
modo, a concepção da morte mantinha, à época, vínculo estreito
com a forma de domínio e colonização do mundo. “O corpo
foi imaginado como um novo mundo a ser descoberto pela anatomia.
Ou seja, também foi dado início a um processo para a sua
colonização”. A anatomia, continua o pesquisador, promoveu
uma espécie de mapeamento profundo do objeto estudado. Como
a vida não poderia ser mapeada e controlada, optou-se então
pelo cadáver. “Escolher um corpo morto era como escolher
uma relação de domínio e submissão. Dentro dessa lógica,
para que houvesse colonização era preciso que houvesse também
a morte do outro”, compara.
Essa relação de domínio, assinala Vinícius Terra, preparou
o corpo para ser pensado como um sistema mecânico. De certa
forma, afirma o pesquisador, isso influenciou a ação da
ciência e da saúde. Ao eleger a anatomia como a “ciência
do corpo”, uma série de outros saberes a esse respeito foi
colocada na marginalidade, entre eles a teoria dos humores.
Relacionada à alquimia, aos quatro elementos e temperamentos
da matéria, esta cosmologia procurava entender o corpo –
e por associação a saúde – sob uma perspectiva mais global.
Buscava-se, segundo essa teoria, o estado de equilíbrio
do corpo, ainda que este pudesse ter composições diferentes.
“O saber anatômico, por sua vez, estabeleceu a noção de
corpo médio, de corpo padrão. A partir de então, a busca
deixou de ser pelo equilíbrio e passou a ter como referência
o padrão numérico. Não por acaso, hoje as pessoas se preocupam
com a quantidade de calorias ingeridas, com as medidas da
cintura etc. É a isso que eu chamo de racionalização. Atualmente,
as formas de medicação também levam em conta quase que exclusivamente
esses dados, desprezando as individualidades”, sustenta.
Essa
tendência à padronização, segundo o autor da tese, pode
ser encontrada em maior ou menor grau em áreas como a medicina,
a nutrição e a própria educação física. Ao adotarem esse
modelo, no entanto, tais áreas da ciência deixariam, segundo
ele, de considerar as idiossincrasias e especificidades
do corpo, aspectos importantes para a compreensão desse
tema. “O corpo tem uma história, e isso não pode ser desprezado.
E não se trata somente da história do local de nascimento.
Há uma série de fatores que precisa ser considerada. As
antigas cosmologias sabiam disso. A idéia da medicina familiar
vem daí. Os antigos sabiam que integrantes de determinadas
famílias estavam mais propensos a certas enfermidades do
que os membros de outras famílias”.
Estratégias
Como dito anteriormente, a anatomia começou a ganhar espaço
como um saber oficial no período em que o homem passou a
ter necessidade de dominar e colonizar outras sociedades.
Mas para que essa ciência prevalecesse sobre as demais foi
preciso formular uma estratégia política e estética muito
bem articulada, como esclarece Vinícius Terra. “O que os
cirurgiões da época fizeram, após articularam-se com os
representantes do poder da época, foi criar uma produção
cultural, de modo a sistematizar e consolidar a anatomia.
Para atingir essa meta, eles usaram a tecnologia de difusão
mais avançada no momento, que era a imprensa”, diz.
A ação compreendia o emprego da imprensa para reproduzir
gravuras extremamente detalhadas do corpo humano. À época,
os “anatomistas” chegaram a encomendar obras nesse sentido
a alguns dos mais renomados pintores em atividade, como
Ticiano, um importante pintor da escola veneziana no período
do Renascimento. “Essas gravuras eram posteriormente enviadas
para os melhores impressores da Europa. As produções eram
tão bem feitas, que hoje são consideradas obras de arte”.
Além da imprensa, o “movimento pró-anatomia” também fez
uso da arquitetura e das artes cênicas para impactar a sociedade
de então.
Em algumas cidades européias, como Pádua e Montpellier,
foram criados os teatros anatômicos, nos quais eram realizados
verdadeiros espetáculos de dissecação de cadáveres, sob
a forma de aulas de anatomia. As demonstrações, de caráter
público, eram normalmente realizadas durante o Carnaval.
“Tratava-se de um período propício, tanto por ser inverno,
o que evitava a rápida decomposição dos corpos, quanto por
ser uma época profana segundo o calendário católico”, esclarece
Vinícius Terra. Conforme o pesquisador, os teatros eram
divididos para receber o público comum e os convidados especiais,
os vips de hoje.
Além disso, durante as dissecações, há relatos da utilização
de máscaras pelo público, como se este estivesse participando
de uma festa carnavalesca. Concomitantemente, ocorriam apresentações
musicais, diálogos cênicos e até mesmo pregações por parte
de membros da Igreja, que aproveitavam a oportunidade para
falar do destino do homem. De acordo com os clérigos, o
que se via ali era apenas carne, que nada valia. O importante
era cuidar do espírito. “Tudo isso acabou se constituindo
em uma produção cultural da época, que ajudou a consolidar
o paradigma anatômico. Nenhuma ciência ou saber consegue
se estabelecer sem esse aporte cultural, que em última análise
é uma ação de poder. Tratou-se, ainda, de uma produção cultural
acadêmica, que em vez de artigos, utilizou a tradição oral
para se firmar e se difundir”.
A estratégia foi tão bem-sucedida, na opinião do pesquisador,
que os cirurgiões, outrora coadjuvantes, hoje são protagonistas
desse modelo de compreensão e tratamento do corpo humano.
“Com esses cirurgiões, nasceu a cultura da dissecação, que
evidentemente influenciou a forma de se entender a saúde.
Atualmente, prevalece a racionalização e a naturalização
do corpo. Ocorre, porém, que o corpo não é uma natureza.
Ele é histórico. Ao contrário da ideologia do corpo morto,
o corpo humano tem individualidade, memória e idiossincrasia.
Hoje, estamos estendendo a idéia da doença para a saúde.
Exercitamos o corpo numa academia de ginástica como se ele
estivesse doente. A busca do padrão externo, vale insistir,
é a negação de si, da sua própria identidade”, analisa Vinícius
Terra, que contou com o apoio do Serviço Social do Comércio
(Sesc) de São Paulo, onde trabalha, para produzir sua tese.