Ao
atravessar as bancadas do Laboratório de Físico-Química
Orgânica, do Departamento de Química Orgânica do Instituto
de Química (IQ) da Unicamp, entre pesquisadores de jalecos
impecavelmente brancos, o visitante chega à sala de computadores,
que ocupam uma prateleira disposta ao longo de toda uma
parede. Os professores Roberto Rittner, responsável pelo
laboratório, e Cláudio Tormena, co-responsável, apontam
um computador de grande porte, no canto oposto. Tudo conectado
a apenas um monitor. A organização desse arsenal sugere
a quantidade de gigabites (GB), encontrada em pouquíssimos
laboratórios, que o trabalho desenvolvido exige, mas que
invariavelmente começa com medidas espectroscópicas experimentais,
realizadas nos aparelhos de ressonância nuclear magnética
(RMN), disponibilizados para os pesquisadores do IQ.
As instrumentações e os recursos computacionais utilizados
por esse grupo de pesquisa revelam a peculiaridade do trabalho
ali desenvolvido, que o fazem único nas Américas, à exceção
dos EUA e de países como Alemanha, Inglaterra e Espanha.
A distinção vem da constatação de que geralmente o pesquisador
ou é um experimentador ou um teórico. O experimentador que
sintetiza ou extrai substâncias, identifica-as e estuda
suas propriedades e características. O teórico que desenvolve
métodos mecânico-quânticos para estudos de estruturas moleculares.
O difícil é encontrar quem se dedique simultaneamente a
estas duas atividades fundamentais em pesquisa básica, pois
a evolução da ciência se dá com a experimentação e a criação
e desenvolvimento de modelos teóricos que expliquem os resultados
experimentais.
A dedicação simultânea a estas duas vertentes é que torna
único o grupo criado por Rittner. Esta duplicidade de atividades,
frisa Tormena, acaba trazendo contribuições tanto para a
área experimental como para o desenvolvimento de novos métodos
de cálculo. Rittner constata que os resultados obtidos tornam
os trabalhos competitivos internacionalmente, o que leva
o grupo continuamente a apresentar trabalhos em congressos
internacionais e a publicar artigos nas mais prestigiadas
revistas da área, o que originou a publicação de 180 trabalhos
nos últimos vinte anos de atividade, doze dos quais em 2008.
No laboratório em que atualmente trabalham dois pós-doutorandos,
cinco doutorandos, um mestrando e cinco estudantes de iniciação
cientifica, muitas vezes há necessidade de melhorar o processo
de cálculo para que haja compatibilidade entre os resultados
teóricos e experimentais, possibilitando que um dado calculado
coincida ou se aproxime de uma medida experimental. Em outras
oportunidades há necessidade de desenvolver e aprimorar
métodos experimentais em RMN para obter medidas com maior
precisão, as quais normalmente não seriam conseguidas por
meio dos procedimentos usuais.
O
resultado, dizem os pesquisadores, é que os doutorandos
reúnem tanto o conhecimento prático, aprendido durante o
trabalho experimental, como o conhecimento teórico, adquirido
através da manipulação de modelos matemáticos. Transitam
desde a síntese de moléculas mais simples e que têm interesse
teórico e prático, passam pela determinação de estruturas
e propriedades, realizam cálculos e chegam às extrapolações
e previsões teóricas com vistas ao comportamento de outras
moléculas mais complexas, de forma a conciliar experimento
e teoria. Realizam uma ampla atuação no âmbito das pesquisas
em ciência básica.
Características
Os cálculos teóricos fornecem informações sobre a característica
da molécula estudada, como geometria mais estável, no caso
de isômeros conformacionais, energias envolvidas na sua
formação, distâncias e ângulos de ligações, densidades eletrônicas,
entre outras.Por outro lado, as medidas experimentais em
RMN fornecem os parâmetros que estão intimamente relacionados
com as propriedades previstas teoricamente.
Tormena lembra que uma das propriedades medidas em RMN
é a constante de acoplamento escalar entre os núcleos (spins)
atômicos, propriedade esta que é transmitida através dos
elétrons envolvidos nas ligações químicas. Quanto maior
a densidade eletrônica em uma ligação, maior a propagação
da propriedade espectroscópica medida (acoplamento escalar).
Através da medida experimental desse parâmetro consegue-se
estabelecer o comportamento das ligações químicas e determinar,
de forma rápida e confiável, como se distribui a densidade
eletrônica na molécula ou em parte dela. Para conhecer como
essa propriedade se manifesta em moléculas mais complexas,
entretanto, é preciso entender como ela ocorre em um sistema
mais simples para depois a transpor para um sistema mais
complexo.
“Adotando um sistema modelo simples, se consegue mostrar
como a mudança da densidade eletrônica afeta um parâmetro
experimental e, a partir daí, com base em modelos teóricos
se pode correlacionar essas conclusões com o que deve acontecer
em uma molécula bem maior. E isso é conseguido medindo-se
simplesmente uma propriedade espectroscópica como a constante
de acoplamento escalar. Esse tipo de procedimento constitui
uma das tônicas do nosso trabalho”, afirma o docente.
Critérios de escolha
O estudo procura entender porque uma determinada molécula
adquire certa estrutura e não outra. Os alunos de pós-graduação
são orientados para a escolha de temas que lhes permitam
a aprender trabalhar em laboratório, a sintetizar compostos,
a analisá-los e a realizar cálculos teóricos sobre eles.
Diz Rittner: “Escolhemos moléculas que tenham propriedades
interessantes do ponto de vista pratico e teórico. Selecionamos
casos de difícil estudo, e vamos atrás de desafios para
vencê-los. Procuramos o que ainda não é bem conhecido ou
estudado”.
Cita, a propósito, os ciclopentanos e cicloexanos, difíceis
de estudar porque possuem estruturas conformacionais com
diferenças de energias muito pequenas, o que dificulta os
cálculos teóricos e às vezes as sínteses. Constituem compostos
importantes porque a estrutura básica dos esteróides é formada
por anéis. Sabendo-se como essas moléculas mais simples
se comportam, pode-se entender o comportamento dos esteróides.
Os pesquisadores lembram outro trabalho de doutorado realizado
com derivados aromáticos de flúor, como flúor-benzeno, flúor-amino-benzeno,
entre outros, que são importantes porque muitos fármacos
comercializados possuem átomos de flúor ligados a anéis
aromáticos. O entendimento do efeito eletrônico ou de como
o átomo de flúor influencia a estrutura eletrônica do sistema
pode ser importante para preparar outro fármaco com potencialidade
maior. Segundo os pesquisadores, colocando-se um substituinte
que aumente a densidade eletrônica em uma determinada região,
pode-se usar um parâmetro espectroscópico, portanto experimental,
para tentar quantificar essa densidade. Mas para chegar
ao efeito em uma molécula grande como um fármaco é necessário
dimensionar o que acontece em uma molécula menor.
Outro exemplo que mencionam é o de proteínas e peptídios,
formados por vários resíduos de aminoácidos. Parte da informação
que cada aminoácido transfere para a proteína ele já o traz
naquele resíduo menor. Conseguindo desvendar o que estabiliza
o resíduo, pode-se transpor a informação para entender a
estabilização da proteína ou do peptídio. Uma das alunas
de doutorado do grupo faz isso com ácido aspártico, um dos
aminoácidos essenciais.
A definição
Rittner conta que no doutorado, ainda na USP, começou a
trabalhar com RMN do hidrogênio e no pós-doutorado com RMN
do carbono 13. Mas concluiu que o trabalho experimental
adquiriria maior consistência e alcance se baseado em cálculos
teóricos. Isso o levou a um pós-doutorado na Inglaterra
onde passou a trabalhar com cálculos e de onde trouxe os
programas para o Brasil. Tormena, que vinha da Universidade
Estadual de Maringá, envolveu-se em seguida no trabalho.
Isso há treze anos. Em 2000 ganharam o primeiro projeto
temático da Fapesp e em 2005, o segundo. Constata que o
salto na área de química teórica e computacional foi muito
grande com o avanço da informática. Tormena lembra que os
cálculos que levavam 20 dias em 1995, quando do seu doutorado,
hoje são feitos em dez minutos.