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Brinquedo de criança,
lucro de gente grande

LUIZ PAULO JUTTEL

A maioria das mulheres, mesmo as que cresceram sob condições financeiras precárias, lembram com carinho das bonecas que as acompanharam durante a infância. Não raro o nome dessas bonecas é o mesmo. Uma, porém, destaca-se nesse universo. De tão vendida e conhecida mundo afora, Barbie é considerada um ícone cultural, com direito à réplica no Museu de Cera de Grévin, em Paris. Desvelar os mecanismos que elevaram o status desse brinquedo a sinônimo de beleza juvenil, elegância e ingenuidade foi o que fez a pedagoga Fernanda Theodoro Roveri em sua dissertação de mestrado intitulada “Barbie: tudo o que você quer ser... Ou considerações sobre a educação de meninas”.

A pedagoga Fernanda Theodoro Rover, autora da dissertação: luz sobre a boneca que virou ícone (Fotos: Antoninho Perri/Reprodução)No trabalho desenvolvido junto à Faculdade de Educação (FE), Fernanda pesquisou uma possível história da boneca. A partir dessa prospecção, ela analisou o sucesso mundial de Barbie, os mecanismos publicitários que conferiram ao brinquedo uma personalidade próxima à de uma pessoa real, e os modelos de feminilidade apresentados às garotas. E o que se pode constatar é que Barbie nunca foi muito ingênua, a começar por sua criação.

A história oficial conta que a criadora de Barbie, Ruth Handler, via sua filha brincar com uma boneca de papel quando imaginou uma boneca 3D revolucionária com rosto e corpo de adulto, inclusive seios. Teria, também, uma infinidade de trajes elegantes, adequados ao gosto de cada criança.

O que a pesquisa de Fernanda traz de diferente nessa história é o fato de que o sonho de Ruth só se concretizou depois de uma viagem que a família Handler fez à Suíça, em 1956. Lá eles conheceram Lilli. Alemã, Lilli era uma boneca feita de plástico, adulta, magra e de lisos cabelos loiros. A diferença entre Barbie e sua precursora é que esta última era vendida em tabacarias, destinada a homens atraídos por suas características eróticas.

A boneca Lilli era fruto de uma personagem de quadrinhos do jornal alemão Bild. “Os desenhos no jornal sempre a mostravam em trajes justos, decotados ou apenas de lingerie. E suas histórias freqüentemente tratavam sobre relacionamentos com homens endinheirados”, conta Fernanda.

Entusiasmada, Ruth Handler levou um exemplar de Lilli para a sua fábrica de brinquedos nos EUA, chamada Mattel. Lá, segundo Fernanda, é que se deu o processo de “desvulgarização” da boneca, transformando-a em algo consumível por crianças. Um maquiador profissional da Universal Pictures remodelou o rosto de Lilli, retirando a sensualidade excessiva de seu olhar. Já o corpo de Barbie teve que ser desenvolvido no Japão, pois os engenheiros da Mattel alegaram que tal processo na América seria muito dispendioso. Na verdade, Ruth acreditava que seus funcionários alegaram isso por achar estranha a idéia de produzir uma boneca com seios.

O trabalho inicial pela busca de inocência e ingenuidade para Barbie terminou no seu lançamento na Feira Anual de Brinquedos de Nova Iorque, em 1959, No entanto, a sociedade norte-americana ainda achava a boneca um brinquedo vulgar. Esse problema só foi resolvido depois que a publicidade revolucionária da Mattel entrou em cena.

Fernanda lembra que, até a época do lançamento de Barbie, os comerciais televisivos de brinquedos eram dirigidos apenas aos pais. A inovação da Mattel consistiu em dialogar diretamente com as crianças. “As primeiras imagens televisivas de Barbie a sugeriam como uma modelo adolescente, uma pessoa real que se mexia na propaganda”, destaca a autora da dissertação de mestrado, que foi orientada pela professora Carmen Lúcia Soares.

A boneca alemã Lilli  (à esq.): “musa” inspiradoraEm pouco tempo, as crianças começaram a se enxergar na boneca e a desejá-la por isso. Porém, muitas mães consideravam “estimulante” demais a idéia de a menina despir uma boneca adulta. Para combater esse pensamento, a Mattel deslizou o sentido – como diriam os especialistas em análise do discurso – de despir Barbie para outro, por meio do qual ela era vestida pela menina. Uma das maneiras que o fabricante encontrou para realizar tal tarefa foi incluir no pacote de roupas de dormir da boneca uma calcinha – para mostrar que ela dorme com roupas íntimas – e um cachorro que sugeria a inocente idéia de que Barbie afagava seu cão enquanto dormia.

O forte trabalho de marketing do casal Ruth e Elliot Handler deu certo. Pouco tempo após seu lançamento, Barbie já era líder em vendas, posto que mantém até os dias de hoje. Fernanda diz que analisar a história dessa boneca nos mostra como a sociedade tem voltado seus olhos para a criança, para a infância, para o brinquedo, para o corpo da menina e para o conceito de beleza padrão. “Na minha dissertação discuto como essa boneca que está sempre na moda consegue seduzir a menina, apresentando-lhe seu pressuposto do que é ser mulher. Analiso também de que forma Barbie contribui para um consumo excessivo que leva a criança a desejar o exemplar mais recente, em detrimento do modelo antigo que possui”.

Um dos capítulos da dissertação de Fernanda mostra uma situação curiosa sobre a conhecida relação Barbie-consumo. Uma comunidade virtual da Mattel chamada Barbie Girls convida a criança a brincar em seu universo virtual, semelhante ao Second Life. A usuária cria uma personagem “transada”, que conversa com outras barbie girls e que sai para gastar seu dinheiro virtual em cinema, café, pet shop, salão de beleza e parque. Para recuperar o dinheiro investido, as meninas podem, entre outras atividades, assistir a trailers dos novos filmes vendidos em DVDs. A partir deles, geram-se freqüentes novas linhas de bonecas.

Contudo, alguns espaços em Barbie Girls só são acessados por membros VIPs. Até pouco tempo atrás era considerado VIP quem comprasse um MP3 Player da boneca, que possuía uma chave de acesso a esses lugares especiais. “Para que a criança pudesse adotar um cãozinho no pet shop de Barbie Girls, seus pais tinham que desembolsar algo em torno de R$ 200,00”, afirma Fernanda. Atualmente ficou mais fácil ser VIP. Basta pagar no próprio site uma taxa mensal de seis dólares.

Uma das conclusões da dissertação apresentada na FE é que a boneca preferida das meninas de todo o mundo se molda de acordo com o que a sociedade de cada época espera de suas crianças. “Noções de domesticidade, independência e diversidade étnica foram exploradas em Barbie sempre que isso trouxe lucros maiores”, declara Fernanda.

No início da década de 90, por exemplo, a empresa lançou bonecas em três cores diferentes. A idéia, segundo a empresa, era refletir em seus brinquedos a beleza natural da mulher afro-americana. Mas, o levantamento bibliográfico feito por Fernanda aponta que o que a empresa queria mesmo era aproveitar o incremento de 155% no potencial financeiro de negros e hispânicos norte-americanos, ocorrido entre 1980 e 1990. Soma-se a isso o fato de que “a diferença entre as bonecas ‘étnicas’ e Barbie se deu apenas na cor do plástico, já que até o cabelo liso era o mesmo da loira. Mesmo assim, elas não eram Barbies”, comenta Fernanda.

Hoje, segundo Fernanda, a tendência explorada pela Mattel é que a menina não possua apenas uma Barbie e diversos trajes, mas muitas bonecas e seus respectivos acessórios, sempre impulsionados pelos filmes regularmente lançados pela Mattel. “A Barbie Sereia não tira a cauda para usar as roupas da Barbie Esportista. Se você quiser a Barbie Fadinha que aparece no filme terá que comprá-la sabendo que suas asas não saem das costas”, destaca Fernanda.

Barbie Tóxica
Um dos capítulos mais polêmicos do trabalho de Fernanda aborda as relações de produção e exploração do trabalho ocorridas em indústrias de brinquedos nos países do Terceiro Mundo. Autores pesquisados por Fernanda, como a jornalista canadense Naomi Klein, denunciam que do mesmo modo que os tênis da marca Nike são produzidos por meio de trabalho semi-escravo no Vietnã, roupas que vestem bonecas Barbie de todo o mundo são costuradas por crianças no Sumatra.

“Hoje, as marcas interessam mais às grandes corporações multinacionais do que os produtos por elas desenvolvidos”, afirma Fernanda. Isso faz com que empresários optem por investir em publicidade e minimizem gastos com manutenção de fábrica, maquinário e trabalhadores.

Fernanda diz que atualmente 65% dos brinquedos da Mattel são fabricados na China. O restante é feito na Indonésia, Tailândia, Malásia e México. Nesses países, aponta a pesquisadora, é imensa a lista de ações que atropelam os direitos trabalhistas, a começar pelos baixos salários. Nos EUA e Alemanha são pagos de U$ 10 a 18,50 por hora ao trabalhador industrial. Na China paga-se, em média, U$ 0,87.

De acordo com o relatório Toys of Misery, divulgado em 2007 pelo National Labor Committe, de Nova Iorque, existem 5 mil operários na fábrica da Mattel em Shenzhen, na China, trabalhando 15 horas por dia, seis dias na semana. Destes, 95% assinam novos contratos de trabalho a cada três meses para que a empresa não tenha que pagar os devidos direitos trabalhistas.

Os atentados contra trabalhadores industriais de países pobres vão além. Diversos especialistas pesquisados por Fernanda denunciam situações degradantes, como a de empregadas filipinas grávidas que são forçadas a fazer aborto para não perderem seus empregos. Em fábricas da China, empregadores controlam o uso do banheiro como tempo improdutivo de seus empregados, que não raro são obrigados a dormir sobre as máquinas. Costureiras chinesas de uma fábrica de roupa das marcas Gap, Guess e Old Navy usam sacos plásticos debaixo das máquinas de costura quando precisam urinar. Em Honduras, anfetamina é injetada nos funcionários quando turnos de 48 horas precisam ser cumpridos.

De um lado, a Mattel anuncia (em 2007) a retirada de quase um milhão de brinquedos devido à possível contaminação por chumbo na tinta. Do outro, em sua fábrica na Tailândia morrem funcionários por conta de contaminação causada pela mesma substância em razão do não fornecimento de máscaras de proteção. Esses exemplos demonstram que, muitas vezes, o lucro vale que o lúdico.

 

 
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