O
livro
O livro A História da Paz é muito interessante porque vai
seguindo as etapas das dificuldades e do surgimento das
instituições. Ele começa com a questão dos concílios medievais,
quando a Igreja era o grande árbitro, e depois segue a cronologia
dos tratados, sem ficar no esquematismo. O meu trabalho
é uma tentativa de mostrar que, pela primeira vez, um tratado
internacional vingou sem as asas da Igreja. A obra aborda
todos os tratados importantes da modernidade, até Kioto.
Há uma estrutura cronológica, que eu diria que é até diacrônica,
mas em cada passo tem coisas diferentes.
A questão dos tratados internacionais é
abordada sob vários ângulos. Não há uma doutrina comum.
Trata-se de um ponto importante do livro: nem todos pensam
da mesma maneira. Há uma diversidade não apenas metodológica
como também doutrinária. Terminando a leitura do livro,
o leitor tem a síntese da situação. Não se pretendeu fazer
uma coisa para esgotar o assunto, seja do ponto de vista
diplomático, filosófico, econômico etc. É uma espécie de
visão sinótica do problema. Apesar de todos os articulistas
tentarem estabelecer uma espécie de agenda da paz, a constatação
é que o que existe de fato é uma agenda de guerra. Trata-se
de uma guerra contínua.
Corrosão do Estado
O Estado vive uma crise inédita no mundo de hoje. Ele enfrenta
uma corrosão, seja do lado do mercado seja do lado das matrizes
éticas mundiais. Neste último caso, estou me referindo particularmente
as grandes religiões de massa. Há, portanto, uma corrosão
que ocorre simultaneamente em termos éticos, econômicos,
tecnológicos e religiosos. Isso tudo coexiste com o fenômeno
da guerra. No primeiro volume, os autores trataram da história
da guerra, que não se pretende uma história no sentido científico
da palavra. Além de historiadores, temos também filósofos,
diplomatas, jornalistas etc. É uma abordagem multidisciplinar
de um fenômeno polissêmico. A guerra, a corrosão do Estado,
a tecnologia e o mercado fazem com que, de certo modo, seja
obrigatória a retomada da história do Estado – das instituições
civis e estatais.
Os
interesses
Temos hoje o financiamento das guerras por grandes grupos.
A produção de instrumentos de guerra está ligada a esses
interesses financeiros, que não correspondem necessariamente
à economia desse ou daquele país. Temos então um mundo que
vive permanentemente em estado de guerra. Não dá para dizer
mais que predomina o interesse da classe burguesa ou da
classe capitalista. É claro que ele existe, mas não é uma
relação que beneficia esses segmentos. Por exemplo, na guerra
do Iraque, temos nos Estados Unidos, e também em seus parceiros,
pequenos grupos dentro do setor financeiro e dentro do setor
petrolífero.
A dissolução
Esses grupos fizeram, nos dois períodos Bush, coisas absolutamente
inéditas em termos de desaparecimento da idéia de público
e de privado. São licitações secretas dirigidas por generais
diretamente interessados nas empresas petrolíferas. Isso
corresponde a uma queda inédita de alguns princípios do
Estado democrático, inclusive o norte-americano, entre os
quais a idéia de transparência. Estudos internos, inclusive
do Congresso norte-americano, mostram que é imensa a quantidade
de atos do Executivo que escapam quase que totalmente ao
resto do Estado. É um fenômeno inédito. É a dissolução do
Estado. Na verdade, tem-se uma apropriação da coisa pública
por grupos que não correspondem exatamente ao setor mais
amplo do capitalismo ou de outros campos.
Agências de fé
Temos, por outro lado, o grande projeto de laicização da
política, que está ligado à temática da racionalização.
Quanto mais racional, tecnológico e científico, tem-se um
Estado-máquina que serve para estabelecer a paz de todos,
para que a lei seja obedecida. Com esse padrão, você enxerga,
na verdade, uma tensão muito grande com aquilo que é chamado
de racional, que é o âmbito da fé religiosa. As grandes
agências éticas, que durante os séculos XVI, XVII e XVIII
foram afastadas inclusive da vida pública, como é o caso
da França, são retomadas no século XIX e XX. O Estado não
conseguiu vencer, em termos estratégicos, essas agências
de fé.
O domínio dos corpos
As agências de fé não se conformam, e jamais se conformarão,
com o papel de uma ordem privada. Tanto no catolicismo como
no islã, para ficar nos dois exemplos, já que a vertente
protestante leva para a secularização da política, predomina
essa forma de dominar corpos, de definir não apenas o que
está no plano da mente e da consciência. Todas as regras
de funcionamento dos corpos estão ali. São agências cujo
espectro é mais amplo que o dos Estados nacionais. Ademais,
têm uma experiência de trato com as populações muito mais
refinada e estabelecida no fundo das almas e que mostram
que elas não são absolutamente alheias à modernidade. Esse
é um traço também que me parece sério, já que, sempre que
se falou de Estado, como no caso de Weber, de Marx, etc;
ele seria a ponta extrema da modernidade. Não é isso que
estamos observando no catolicismo e no islã. Isso leva a
questionar a idéia de modernidade.
O ébrio convertido
A lógica do Estado, tal como foi construída desde o século
XVI, seria a da racionalidade laica, científica e tecnológica
e, portanto, da não-ingerência de valores transcendentes
na ordem da justiça, do mercado etc. No entanto, na mesma
medida em que o Estado não cumpre mais o seu papel de regulador
dos mercados e tudo mais, abriu-se essa lacuna. É possível
entender porque numa democracia laica por excelência, como
nos Estados Unidos, é comandada por um presidente da República
que é quase um pastor leigo... Em campanhas eleitorais,
Bush aparecia como um ébrio que se converteu a Jesus. Com
isso, são vetadas leis que favoreçam até mesmo o tratamento
da Aids, células-tronco etc. E isso não é um fenômeno de
meia dúzia de seitas. Trata-se de um fenômeno muito mais
amplo.
A guerra perene
A questão da guerra e da paz precisa ser vista com o realismo
do que aconteceu com o Estado. Numa perspectiva pessoal,
creio que falar hoje de paz é uma tarefa muito árdua. Tivemos
duas guerras mundiais, dois regimes estatais fortíssimos
– stalinismo e o nazifascismo – e ditaduras que duraram
décadas e mais décadas. Contudo, acabada a Segunda Guerra,
constatou-se, olhando o quadro, que a guerra continua. Não
faltam exemplos: Coréia, Vietnã, conflitos na África, guerras
coloniais, regionais etc. Presenciamos uma continuidade
perene da guerra, sendo que não dá para esperar nem do Estado
nem das agências éticas uma atenuação desse status quo.
E isso, na minha opinião, é o mais trágico. Não há um momento
de paz.
E os tratados?
Não existe mais Estado que seja capaz de garantir a palavra
apenas pela força. Muitas vezes, a palavra é inclusive empregada
justamente para disfarçar a força. O mundo de hoje é dividido
em grandes federações: a norte-americana, com todos os seus
satélites; a européia, com todos os seus problemas; a China,
o Japão e alguns países asiáticos; e a Rússia, que ninguém
sabe para onde vai e não sabe se é européia ou asiática.
Cada bloco tem a força e não hesita em utilizá-la. Quando
se fala dessa crise do Estado, a própria união em termos
federativos já mostra essa crise e a tentativa de encaminhamento
de solução. O que isso quer dizer? Sem essa política dessas
superfederações, não há nenhum tratado internacional que
possa subsistir. E, nisso tudo, a ONU é uma espécie de delírio
ou de sonho. Trata-se de um organismo que na sua própria
constituição já mostra que é uma coisa maluca. Ela tem uma
quantidade imensa de países que aderem a ela. Supostamente, os tratados e convenções que ela proclama
são de validade internacional e são desobedecidos pelos
membros do seu próprio Conselho de Segurança. Não faltam
exemplos. Se a ONU tivesse um exército a seu dispor, talvez
os tratados tivessem validade. Como isso não acontece, os
tratados ajudam apenas a atenuar algumas situações, como
é o caso dos prisioneiros capturados pelos Estados Unidos
e levados para Guantánamo, em Cuba. Os tratados exercem
alguma pressão moral sobre a opinião pública e sobre os
governos, mas o seu alcance é pequeno. No caso de Guantánamo,
pesou a atuação da opinião pública e da imprensa. Nem as
grandes agências éticas ajudaram. Vamos pegar o exemplo
do papado de João Paulo II. O que ele falou, de fato, para
mudar a situação dos prisioneiros? O que foi feito pelo
Vaticano? Nada.
Desejo da paz
A história da paz é a história do desejo da paz. É uma espécie
de alvo que teria o mesmo batismo dos grandes pensadores
sobre a crise da humanidade. Não é mais uma crise de Estado.
É uma coisa muito própria do século XVIII. Apenas nesse
período se encontra, com as Luzes, a idéia de uma Cosmópolis,
de uma grande comunidade de povos regidos por leis internacionais
e válidas para todos. Já o século XIX é o século do nacionalismo,
da recusa dessa idéia. Quando eu era jovem, chamar alguém
de cosmopolita era o equivalente a ser taxado de burguês
idiota do século XVIII. O cosmopolitismo ia contra o nacionalismo
e o marxismo, que era internacionalista.
O corolário
A guerra já traz a morte, a destruição e o sofrimento. Junto
com ela, vem a desobediência aos mínimos preceitos do direito
civil e do respeito aos direitos humanos. Não me parece
irracional fazer a seguinte ilação: não existiria Auschwitz
se não existissem a Primeira e a Segunda Guerras. Nós não
sabemos até onde vai a violência. Não existiria o massacre
em Sabra e Chatila se não houvesse uma guerra permanente
no Oriente Médio. Os atos contra a população é o corolário
da guerra.
As matrizes éticas
A idéia de matriz é uma idéia de forma originária. Ocorre
que essa forma originária é também histórica. Basta pegar,
por exemplo, a matriz ética maior, que abarca o cristianismo,
o islamismo e o judaísmo, e que são as culturas que vão
do Médio Oriente até a Inglaterra, ao longo de dois mil
anos. Nesse caudal, temos elementos de uns emprestados de
outros. Nenhuma delas, porém, surge do nada – são apropriações
seletivas de culturas, tais como a egípcia, a grega, a fenícia
etc. Essa matriz aparece por meio da escrita, por meio do
que chamamos de “religião do livro”, com todas suas variantes,
continuidades e rupturas internas. Quando falo em matrizes
éticas, constato que não é possível identificar os comportamentos
e valores de um segmento ignorando os outros. Aqueles valores
são, em boa parte, partilhados. A questão que se coloca
é: vale a pena fazer a guerra para ampliar a glória de Deus?
Sempre fico com a seguinte frase do Diderot: “Não se pode
transforma Deus num punhal”. Pode-se argumentar que isso
não é fundamental nem no cristianismo, no judaísmo e no
islamismo, mas cabe outra pergunta: onde está esse valor
que não aparece?
O belicismo religioso
É muito interessante observar, na cultura formadora dessa
matriz ética, que ser pacifista muitas vezes é sinônimo
de ser traidor, de não ser suficientemente ardente na fé.
Esse belicismo não é composto apenas de armas físicas; trata-se,
também, de um belicismo intelectual. As idéias são usadas
para arrebentar com o outro. Infelizmente, a cultura universitária
– e, conseqüentemente, a científica – não é diferente. Nem
sempre as idéias estão a serviço do bem da humanidade. Inclusive
é sempre bom lembrar a distinção ética, que na minha opinião
é muito importante: uma coisa é o valor ético e moral do
indivíduo; outra coisa são seus conhecimentos. Imagine um
nazista, altamente qualificado em física, que apóia o Hitler.
É possível encontrar um físico fantástico que seja um cidadão
de quinta categoria, quando não um bandido. Ou, então, é
possível encontrar um grande filósofo que seja um tremendo
nazista, como é o caso Heidegger. É perfeitamente possível
ser louco tendo um cérebro poderoso, com uma capacidade
de intelecção dos problemas humanos e naturais absolutamente
superior. Isso é o mais comum na nossa cultura. Esse ideal
de elevação moral é muitas vezes visto como hipocrisia ou
ausência de coragem para enfrentar a luta.
O útero
Nessa matriz ética, como no caso da União Soviética, a partir
do momento em que o indivíduo recusa os pressupostos do
sistema, se recusa a assumir o papel de guerreiro, para
defender, no caso, o estado soviético, ele acaba no campo
de concentração. Isso aconteceu, também, com as testemunhas
de Jeová. E isso é interessante, porque eles não são um
exemplo de progressistas. Mas, o fato de eles serem pacifistas,
criou problemas com as democracias ocidentais e com o nazismo,
fascismo e o stalinismo. Alguma coisa, portanto, tem que
fazer pensar sobre a matriz ética, que é o que me deixa
mais preocupado. Por isso que eu tentei mostrar, no artigo,
que o Estado até saiu um pouco dessa matriz ética, mas hoje
não é isso que está acontecendo. Ele não conseguiu sair
desse útero, e não vai conseguir.
O intelectual empenhado
Quantos Kant você tem? Quantos Bertrand Russel você tem
na história da filosofia. Não colocaria Sartre nessa lista,
mesmo porque ele abençoava as guerrilhas e a União Soviética.
Essa idéia de intelectual empenhado é muito própria da matriz.
O bom cidadão, nesse contexto, é aquele que assume a defesa
e o ataque dos valores fundamentais, destruindo quem o ameaça.
Pior: destruindo com a bênção de Deus... Não adianta apenas
ter Deus: temos que providenciar uma boa espada...
Ceticismo
Não vejo esperança absoluta em termos de paz porque nós
somos seres naturais e os recursos da natureza são infinitos.
Mas, para nós, os recursos da natureza são escassos, finitos.
Se hoje o petróleo está justificando a invasão do Iraque
e aquela tragédia toda, que é uma coisa que vem do século
XVIII, a hora em que água assumir o estatuto que o petróleo
tem hoje, a coisa vai ser mais selvagem. No caso do petróleo,
você ainda pode tentar energias alternativas, mas e com
a água? Acabou, não tem mais jeito. O mais trágico é que
tudo isso é para aumentar um pouco mais o tempo da existência
de determinado povo no planeta, já que a morte está definida.
Todo mundo sabe que o planeta Terra vai morrer. Isso não
é apenas uma profecia, é um fato real: nós vamos morrer.
Talvez consigamos viver mais um milhão de anos, mas ninguém
sabe. Sair pelo universo à maneira da ficção científica
é um escape, mas é muito mais delirante do que aconteceu
no Renascimento. Uma coisa é você sair de Portugal e da
Inglaterra e ir até Cingapura, e outra é ganhar o espaço.
Delírios
Em 1993, o jornal Libération publicou um dossiê de umas
15 matérias sobre a água no trato palestino-israelense.
A matéria mostra que aquele delírio do deserto, que floriu
no deserto israelense, ocorreu à custa da água retirada
dos palestinos. Contudo, gastaram tanta água que agora existe
uma comissão formada por cientistas israelenses e palestinos
para ver o que pode ser feito para reparar o estrago. Ficam
as perguntas: como vai ser reparado o estrago de uma terra
que já não tinha água? Como a paz vai ser estabelecida com
a morte genérica se tornando cada vez mais dura? Como produziremos
alimentos sem água? O que fazer com esse uso absolutamente
delirante de agrotóxicos?
O calor das massas
Os revolucionários franceses tinham plena noção das nossas
limitações, sobretudo a partir da questão da termodinâmica.
A partir do momento que se percebe que o sistema está esfriando,
para compensar é necessário que se obtenha calor suficiente,
que por sua vez somente pode ser obtido por meio da tecnologia.
Por isso que o pessoal do século XVIII era absolutamente
apegado à tecnologia e ao avanço tecnológico. A Enciclopédia
de Diderot é isso: uma tentativa de ampliar, o máximo possível,
a tecnologia para que mais gente tivesse colaborando nessa
tarefa de ampliar a fonte de calor e de vida.
Mas percebeu-se que a entropia é uma coisa que funciona
no plano da natureza, das relações políticas e do Estado.
Essa idéia, por exemplo, de produzir calor revolucionário.
A frase mais terrível dos jacobinos, proferida por Saint-Just,
quando eles perderam a parada, foi: “A revolução gelou”,
ou seja, as massas já não eram mais fontes de calor. Assim,
é preciso produzir artificialmente, tecnologicamente, o
entusiasmo das massas. E é isso que vivemos desde o final
da Revolução Francesa: os Estados utilizam a propaganda
para produzir o calor das massas. Trata-se de uma produção
que não dá garantia nenhuma...
Domínio da técnica
Vamos supor que funcione a aposta na tecnologia. Nós tivemos
pelo menos três revoluções tecnológicas no século XX, sendo
que as duas últimas são as mais importantes: a informatização
e, por meio dela, a apropriação de determinadas formas de
gerar conhecimento e manter, ao contrário do que se imagina,
em poucos círculos o poder mundial. O capital financeiro
é um exemplo dessa superconcentração. O que vem a ser ele?
É o domínio da técnica de comunicação a serviço da desestabilização
de todo um sistema nacional. Temos, então, as chamadas elites
dos países dominados, que são reprodutoras dessas condições.
Elas não são produtoras. Onde, por exemplo, o Brasil produz
hardware? Nós somos apenas consumidores de tecnologia de
ponta. Vão dizer que sou nacionalista, mas não é nada disso.
Ocorre que há uma distribuição desigual de saberes no mundo.
E o acesso?
Há o ideal da ciência e da tecnologia, mas há tem também
uma apropriação disso, e ela é muito séria. Vamos supor,
por exemplo, que um bioquímico desenvolva uma fórmula para
a economia de água. Quantos povos teriam condições de ter
acesso a esse saber? Aplica-se, então, o aforismo do Bacon:
“saber e poder encontram-se num só...” Com Bacon, a Inglaterra
tornou-se grande potência, unindo ciência, tecnologia e
força física.
Impondo a morte
Na tarefa de tentar adiar essa morte genérica programada,
torna-se necessário impor a morte aos outros. Escapar a
essa lógica é uma tarefa que desafia o pensamento, a moral,
a ética etc. Não é possível dar respostas ingênuas a esse
estado de coisas.
A tradição dos mortos
Quando um país é invadido e sua cultura é atacada, o invasor
está atacando os mortos. Benjamin disse: “Se os vencedores
vencerem, e a história mostra que eles sempre venceram,
então nem os mortos estão em segurança”. Esse imaginário
cultural é justamente o lugar onde as matrizes se manifestam.
A tradição dos mortos é o que garante a nossa continuidade.