Para reavivar a memória da barbárie
Unicamp
sediará entre 9 e 11 de setembro o “III Colóquio Escritas
da Violência – Representações da Violência na História
e na Cultura Contemporâneas da América Latina”, cujo
objetivo é reunir pesquisadores do continente para refletir
sobre a problemática da violência nos países que constituem
o bloco. O evento, que será realizado no auditório do
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), faz parte de
projeto temático financiado pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
De
acordo com um dos coordenadores do encontro, professor
Márcio Seligmann-Silva, a expectativa é que os estudos
que serão apresentados contribuam para aprimorar conceitos
e aprofundar a análise histórica em torno da temática.
“Lamentavelmente, a América Latina tem uma longa tradição
de violência. Uma das propostas do colóquio é trazer
à tona essa questão, sobretudo em relação ao Brasil,
onde persiste um discurso conservador segundo o qual
não há sangue na história do país, de que nossa trajetória
sempre foi marcada por acordos amigáveis. Isso não é
verdade. Há, sim, muito sangue e muita violência na
nossa história. Basta visitar nossas periferias ou nossos
cárceres para constatar isso”, afirma. Na entrevista
que segue, o docente dá mais detalhes sobre o encontro
e faz outras reflexões acerca do fenômeno da violência.
Jornal
da Unicamp – Qual o objetivo desta terceira edição do colóquio
e em que ela se difere das experiências anteriores?
Márcio Seligmann-Silva – O evento ocorre
depois de dois anos e meio do início do projeto temático.
Nesta edição, organizada por mim, pelo professor Francisco
Foot Hardman, do IEL, e o professor Jaime Ginzburg, da FFLCH-USP,
estamos abordando mais especificamente a questão da violência
na América Latina. Nos eventos anteriores, as abordagens
foram mais abrangentes. Estaremos recebendo especialistas
de vários países do continente para discutir as diferentes
questões em torno da violência. Será uma grande oportunidade
para que travemos contato com colegas que virão da Argentina,
Colômbia, Peru etc e que têm reflexões importantes em torno
dessa questão.
JU – A violência
é uma marca da América Latina?
Márcio Seligmann-Silva – Lamentavelmente,
a América Latina tem uma longa tradição de violência. Isso
vem desde a chegada dos colonizadores às Américas. Uma das
propostas do grupo é trazer à tona esse aspecto, sobretudo
no Brasil, onde persiste o discurso conservador segundo
o qual não há sangue na história do país, de que nossa trajetória
sempre foi marcada por acordos amigáveis. Isso não é verdade.
Há, sim, muito sangue e muita violência na nossa história.
Basta visitar nossas periferias ou nossos cárceres para
constatar isso. Então, uma das propostas do evento é discutir
essa realidade e como ela é representada. Se você perguntar
se hoje em dia a situação da violência está pior na América
Latina, eu diria que nós estamos mais conscientes, inclusive
dos paralelos que temos com outros países do bloco. A ideia
de trazer esses diferentes pesquisares é trocar impressões
sobre biografias e conceitos, para aprofundar a análise
histórica sobre a violência.
JU – A violência
presente nas ditaduras é um aspecto que aproxima vários
países latino-americanos, não?
Márcio Seligmann-Silva – A questão das
ditaduras da América Latina constitui um capítulo à parte
na história da violência. O que aconteceu em países como
Chile e Brasil é que as ditaduras civil-militares se auto-anistiaram.
Criaram leis com as quais tentaram acabar com qualquer recurso
jurídico ao final dos regimes de exceção. Nós acabamos de
comemorar os 30 anos da anistia brasileira. Na verdade,
a luta travada até o momento foi inglória, porque as conquistas
foram poucas. Com apenas uma exceção, nenhum militar brasileiro
foi julgado e condenado, apesar de tudo o que aconteceu.
Milhares foram torturados e ainda temos algumas centenas
de desaparecidos. A luta contra a impunidade pressupõe o
direito à verdade e à memória. O espaço jurídico é essencial
para que essa transição da ditadura para a democracia ocorra
de fato. Precisamos de um gesto jurídico exemplar para que
o período de exceção não volte. Se a impunidade prevalece,
a tortura continua. E nós sabemos que apesar do fim da ditadura,
a tortura continua. Hoje em dia, a prática está concentrada
na periferia. Então, a ideia que corre o risco de prevalecer
é a seguinte: se a tortura sempre existiu e nunca aconteceu
nada, então vamos continuar torturando. Esse enfrentamento
do período ditatorial é essencial, e deve ocorrer tanto
no campo da memória quanto no campo jurídico. O processo
jurídico é essencial para a construção da democracia.
JU – Falando
em memória, os documentos oficiais do período ditatorial
brasileiro continuam arquivados...
Márcio Seligmann-Silva – O caso do Brasil
é dos mais radicais no sentido do impedimento da construção
de uma memória da barbárie comandada pelo Estado. Enquanto
em países como Argentina, Uruguai, Chile e Peru conseguiu-se
abrir em boa parte os arquivos e estabelecer processos judiciais,
no Brasil os arquivos militares ainda estão totalmente fechados.
Apesar de todas as promessas de abertura, feitas tanto no
governo de Fernando Henrique quanto no de Lula, os principais
arquivos ainda não foram abertos. Além disso, cadáveres
continuam desaparecidos. Não tendo documentos ou corpos,
ficamos impedidos de criar memória, verdade e justiça.
JU – Partindo
desse ponto de vista, o senhor diria que o Brasil ainda
não conseguiu atingir uma democracia plena?
Márcio Seligmann-Silva – É uma democracia
que foi acertada entre a oposição e os donos do poder. As
bandeiras de democratização e de reconstrução do estado
de direito foram, de certa maneira, cerceadas em função
de uma integração dos políticos da oposição ao esquema de
poder. Hoje em dia, o Sarney, que era o presidente da Arena,
continua sendo um homem forte do governo. É uma continuidade
total. Não ocorreu a ruptura que muitos pensam que houve.
Na realidade, os políticos denegam totalmente a necessidade
de se enfrentar o passado.
JU – O cinema
brasileiro tem tratado a questão da violência com frequência,
principalmente aquela que atinge a periferia da grande cidade.
Isso de alguma forma contribui para uma reflexão mais crítica
sobre o tema?
Márcio Seligmann-Silva – No Brasil, essas
questões muitas vezes têm encontrado espaço no cinema. O
cinema tem uma significativa importância na memória da ditadura.
Temos diversos filmes que tratam do tema. Por ser uma mídia
muito forte e impactante, muitas vezes é a partir dela que
temos avançado na direção de estabelecer uma memória, mais
ainda do que na literatura. Ainda é um espaço insuficiente,
mas é algo relevante. Quanto ao cinema, precisamos tomar
cuidado com posturas moralizantes e rápidas. Condenar a
possível espetacularização da violência por parte desses
filmes pode ser um equívoco. Na verdade, eles fazem parte
da indústria cultural e de um sistema que é perverso, no
qual existe a exploração da violência. Mas não é por causa
disso que vamos condená-los sem analisá-los a fundo. Muitas
vezes eles servem para refletir. O filme Tropa de Elite,
que talvez tenha sido o mais criticado nesse sentido, tem
aspectos interessantes do ponto de vista cinematográfico.
Como ele se aproxima da estética do documentário, faz com
que o público tenha uma recepção na seguinte linha: nossa,
como esse filme pode apresentar o ponto de vista de um capitão
fascista? Entretanto, ele está apresentando algo muito real.
Nesse sentido, é uma obra de arte que serve para pensar
criticamente a nossa realidade.
JU – De todo
modo, a violência também serve à espetacularização. Alguns
programas televisivos travestidos de jornalísticos banalizam
muito o problema, não?
Márcio Seligmann-Silva – Temos que saber
diferenciar. Alguns programas, apelidados de pinga-sangue,
de fato exploram essa violência explicitamente. É uma exploração
que tem uma ideologia de fundo extremamente fascista, que
diz o seguinte: se é pobre, é marginal; portanto tem que
prender e matar. Isso vai contra a ideia de sociedade democrática.
Esses programas têm o caráter não apenas de apresentar a
violência como “mercadoria”, mas também de apresentar um
pacote ideológico fascista junto. Uma das nossas funções
na universidade é refletir sobre essa tendência que existe
não apenas no Brasil, mas no mundo em geral, de transformar
segmentos da sociedade numa espécie de resto indesejável.
Isso é inadmissível.
JU – Há uma
tendência de criminalizar o pobre, é isso?
Márcio Seligmann-Silva – A violência se
origina de um sistema social violento. Tanto na América
Latina quanto no restante do mundo a violência atual tem
origem nessa perversa estrutura da globalização, na qual
os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez
mais pobres. Os pobres estão sendo “retirados” da esfera
da humanidade. Isso é terrível, e temos que lutar contra
essa tendência. Tanto em relação ao modelo econômico, quanto
no plano simbólico, que é o que a gente trabalha mais especificamente
no IEL. Temos que tentar desmontar a naturalização da exploração
e da exclusão.
JU – Por ser
mais sutil, a violência simbólica, expressa no racismo ou
na xenofobia, por exemplo, tem sido menos discutida que
a violência física?
Márcio Seligmann-Silva – O tema da violência
é estudado por várias áreas, da história à psicanálise.
É um tema que faz parte do ser humano desde sempre. Não
existe cultura sem violência. A violência simbólica, no
Brasil, está presente o tempo todo. A gente acaba não percebendo,
em função da naturalização de certos padrões de comportamento.
Quer um exemplo? Em 2000, fui passar um ano na Inglaterra
com minha mulher. Como tinha filho pequeno, levei minha
babá junto. Lá, ela ficou impressionada por ser tratada
como uma pessoa por inteiro, ao contrário do que ocorria
no Brasil. Aqui, ela era praticamente invisível. Resultado:
ela ficou por lá, casou-se, teve filhos. A violência simbólica
que essa mulher sofria no Brasil continua atingindo milhões
de brasileiros todos os dias. É uma violência que faz com
que as pessoas não tenham acesso à felicidade, princípio
que de certa maneira está no ideal de qualquer sistema político
democrático.
JU – O Estado
brasileiro é violento?
Márcio Seligmann-Silva – O Estado brasileiro
reflete a estrutura social brasileira. Infelizmente, ele
responde violentamente à situação de tensão social que existe
hoje. Ele persegue, tortura, prende, mata. Tudo isso para
impedir que haja uma movimentação contra a grave divisão
social presente no país.
JU – Na literatura,
as obras testemunhais são as que proporcionam mais impactos
quando o assunto é a violência?
Márcio Seligmann-Silva – O texto narrado
em primeira pessoa, com teor testemunhal, tem grande apelo
ao leitor. O narrador viu, sentiu na carne. A gente tem
a impressão de que essa pessoa é a mais capaz de nos apresentar
o que aconteceu. Em São Paulo, há um gênero que foi classificado
como “literatura do cárcere”, que fala sobre a violência
nas unidades prisionais e nas periferias. Trata-se de uma
literatura interessante porque tem relação distinta com
a tradição literária. Normalmente são obras produzidas por
pessoas com tradição oral, que tem relação com o rap, por
exemplo. Isso é bom para a gente fazer uma crítica do cânone.
Temos a tradição de estudar sempre as obras canônicas. É
interessante ver essa nova literatura porque ela leva a
um novo olhar sobre a literatura canônica. Desconstrói,
de certo modo, a assim chamada “grande tradição literária”,
que é fundamentalmente eurocêntrica. Acho que essa literatura
traz uma grande contribuição para a literatura da América
Latina.