Levantamento
coordenado pela professora Guita Debert mostra também
que vítimas cada vez
mais procuram ajuda
TATIANA
FÁVARO
Especial para o Jornal da Unicamp
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A
proferssora Guita Grin Debert: judicialiazação das relações
socias |
Destaque na mídia,
principalmente na televisão, a violência contra idosos é objeto
de estudo da pesquisadora Guita Grin Debert, do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp, desde o início dos anos 90. O mais recente trabalho
da professora de Antropologia é uma pesquisa na Delegacia de Polícia
de Proteção ao Idoso da capital paulista. O levantamento de estatísticas
e depoimentos ainda está em andamento, mas já mostra que, na maioria
dos casos denunciados, quem agride esses homens e mulheres com mais de 60 anos
são seus próprios filhos ou parentes próximos, que podem
ou não morar na mesma residência.
A
maior parte das queixas examinadas pela pesquisadora aquelas registradas
entre janeiro de 1999 e julho de 2000 foi feita por pessoas com idades
entre 65 e 74 anos, havendo um certo equilíbrio entre o número de
denúncias feitas por homens e mulheres.
Outro
dado destacado pela pesquisadora é o aumento da procura de ajuda pelas
vítimas. Cerca de 85% das denúncias partem dos próprios
idosos, diz Guita. As demais queixas costumam ser de vizinhos ou parentes
distantes. O fato de ter aumentado a freqüência e número
de registros de agressões em instituições como a delegacia
e também o Ministério Público indica que o idoso está
mais seguro de que pode procurar auxílio e de que terá onde fazê-lo,
se precisar, diz a professora.
Autora
do livro A Reinvenção da Velhice (Edusp, 1999), que
ganhou em 2000 o Prêmio Jabuti na área de Ciências Humanas
e Educação, Guita classifica agressão, em seu trabalho, qualquer
tipo de violência contra o idoso. Bater, deixar de atender, não
parar o ônibus e atitudes desse tipo são agressões na esfera
pública. Os maus tratos em clínicas e asilos, uma das formas mais
dramáticas de violência contra o idoso, são consideradas agressões
na esfera semi-pública. E a violência doméstica, incluindo
ameaças e injúrias, são consideradas privadas, classifica.
Segundo ela, o tipo de violência mais denunciado é aquele praticado
dentro das residências.
Infelizmente,
o que vemos é que o agente que mais recebe esse tipo de denúncia
não é nem a Delegacia Especial de Proteção ao Idoso,
nem a Justiça propriamente dita, por meio dos Juizados Especiais Criminais
ou Ministério Público, mas sim a mídia, comenta. É
inegável que ela tem seu papel social, mas é lastimável que
ela seja a principal referência na busca do idoso pela informação,
pois ali, naquele espaço, seja na novela ou nos programas de auditório,
existe a crítica, mas não a explicação detalhada dos
direitos.
Financiada
pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) e pela Fundação Ford, a pesquisa na Delegacia do Idoso de
São Paulo começou oficialmente em 2000. Mas é fruto de um
trabalho maior, que Guita iniciou em 1990. Professora desde 1984 na Unicamp, ela
orientou o trabalho de duas alunas do curso de Ciências Sociais sobre assistência
a idosos em Campinas. Elas é que descobriram que seriam criadas as
Delegacias Especiais de Proteção ao Idoso no Estado em 1991 e me
trouxeram essa informação, lembra. A partir de então,
Guita se aprofundou no assunto e foi descobrir que tipo de queixa essas pessoas
faziam, quem eram seus agressores, como eram classificados esses delitos pelo
código penal, quais as penas para essas atitudes e tantas outras dúvidas
que, ao longo do caminho, foram aparecendo.
Juizados
- Durante esse percurso, em 1995, foi sancionada a Lei 9.099, que criou os Juizados
Especiais Criminais e as penas alternativas, na tentativa de promover a rápida
e efetiva atuação do Direito, simplificar e acelerar os processos
emperrados nas prateleiras do Judiciário brasileiro. Ela trataria de contravenções
e crimes considerados de menor poder ofensivo, cuja pena máxima não
ultrapassaria um ano de reclusão. Na verdade, o objetivo principal
foi desvirtuado, pois esses juizados acabaram atendendo um público maior
do que o esperado porque, entre os denunciantes, havia uma parcela da sociedade
adormecida, em silêncio, esperando uma oportunidade de se manifestar contra
a violência doméstica, avalia a pesquisadora.
Nesses
juizados, os princípios da informalidade e da economia processual dispensavam,
e dispensam hoje, em muitos casos, a realização do inquérito
policial. O Boletim de Ocorrência é substituído pela
elaboração de um Termo Circunstanciado, que traz um relato dos fatos
e a caracterização das partes. O primeiro segue para o tribunal
comum. O segundo, pode ser encaminhado com presteza ao juizado especial,
completa Guita.
O efeito dessa lei e da
nova institucionalidade sobre as Delegacias Especiais de Polícia (não
só de Proteção ao Idoso, mas também as da Mulher)
foi bom, segundo a professora, porém, tem lá suas falhas. A
maioria dos casos atendidos é de crimes de menor poder ofensivo, como as
lesões corporais e ameaças e, como tal, eles passam a ser objeto
de atendimento dos novos juizados, afirma. Antes, havia uma crítica
de que as denúncias não chegavam à Justiça. Agora
elas chegam, mas criam-se outros buracos entre os idosos e o Poder
Judiciário, entre a mulher e o Poder Judiciário. As delegacias,
que tinham o papel de serem mais duras na condução desses casos
e, portanto, acabavam sendo menos impessoais, estão dividindo sua demanda
e os juizados ficam sobrecarregados.
Durante
todo o ano de 1999, foram registrados 63 Termos Circunstanciados na Delegacia
do Idoso de São Paulo. Em 2000, somente de janeiro a julho, foram registrados
53 desses termos. A maioria dos casos avaliados até agora pela pesquisa,
isto é, de 23% a 33% das queixas, dependendo do período, refere-se
a algum tipo de lesão corporal (dolosa ou culposa). As ameaças e
injúrias ocupam o segundo lugar (de 10% a 15% dos casos), também
conforme o período analisado.
Segundo Guita, registradas como Termos
Circunstanciados, essas ocorrências podem ser rapidamente encaminhadas à
Justiça e as partes devem ser chamadas a comparecer a uma audiência.
Os juizados especiais não só transformaram a dinâmica
das delegacias e o modo como elas conduzem os delitos, como afetaram suas próprias
demandas. Criados para, na prática, assumirem uma parcela dos processos
criminais das varas comuns, esses órgãos passam a dar conta de um
outro tipo de delito, que não chegava às varas judiciais.
Assistentes
sociais - Para a pesquisadora, instituições como as Delegacias
Especiais de Polícia e os Grupos Especiais do Ministério Público,
criados para exercerem um papel de defensores da sociedade (dos idosos, das mulheres
etc.), transformaram a violência doméstica, uma questão inicialmente
individual e social, em domínio público. Muito bom, porque a sociedade
passa a tolerar muito menos esse tipo de atitude. Mas ruim, por estar atrelado
a conseqüências como a descaracterização dos papéis
de cada um desses organismos.
Uma das maiores queixas nas Delegacias Especiais
de Polícia, por exemplo, não vem de fora da unidade. Está
ali dentro, onde as atividades acabam sendo consideradas, principalmente por seus
funcionários, um trabalho mais voltado à assistência social
do que à prática policial.
O
problema, segundo a pesquisadora, é que falta muitas vezes infra-estrutura
básica para o exercício das funções policiais. Já
teve delegado da Mulher da capital que reclamou para mim da falta de lápis
e papel, exemplifica.
Outro conflito apontado na pesquisa é que,
com a invasão do Direito na organização da vida social ficam
prejudicadas as relações privadas. O que tem ocorrido é
a judicialização das relações sociais, afirma
Guita. Porque o Direito não se limita à esfera propriamente
política, mas tem regulado a sociabilidade e as práticas sociais,
como decidir as punições pelo tipo de tratamento dado às
crianças pelos pais ou aos pais pelos filhos adultos.
O
trabalho de Guita ao longo dos últimos anos já tocou nesse ponto
e mostra que alguns analistas, como Werneck Vianna em seu livro A Judicialização
da Política e das Relações Sociais no Brasil (Ed. Renavan),
consideram essa expansão do Direito e de suas instituições
ameaçadora à cidadania e dissolvente da cultura cívica,
à medida que tende a substituir o ideal de democracia por um ordenamento
de juristas. As Delegacias Especiais de Polícia foram criadas
com o objetivo de politizar a Justiça. Os juizados especiais não
podem se limitar a judicializar as relações familiares dos cidadãos
pensados como falhos, diz a pesquisadora.
Prioridades
- Um dos motivos de o Ministério Público e o Poder Judiciário
ser cada vez mais procurado para resolver os problemas familiares é, segundo
Guita, uma regressão no trabalho das Delegacias Especiais de
Polícia. Depois da criação da primeira Delegacia de
Proteção ao Idosos, em 1991, por meio do Fundo Social de Solidariedade
do Estado de São Paulo, outras dez unidades foram instaladas entre capital,
ABC e interior, lembra a pesquisadora. Depois, no governo Covas, um
decreto determinou a extinção de quase todas elas, restando apenas
as unidades da capital e de Osasco, comenta. Tratava-se do Decreto 40.215,
de julho de 1995, que fechava as delegacias devido a uma reorganização
do Departamento de Polícia Judiciaária do Estado de São Paulo.
Nos
dois primeiros anos de funcionamento da Delegacia do Idoso da capital paulista,
foram atendidas mais de 13.500 pessoas, das quais 9.525 foram tirar cédulas
de identidade, 3.350 pediram informações, 515 registraram Boletins
de Ocorrência e 270 estavam à procura de documentos perdidos ou furtados.
Foram instaurados 123 inquéritos, recorda Guita. A unidade
funcionava num local de fácil acesso, a Estação de Metrô
Barra Funda, onde ficou até 1998.
Naquele
ano, foi transferida para a Rua Bitencourt Rodrigues, atrás do Pátio
do Colégio, no Centro de São Paulo. Para chegar à delegacia,
as pessoas com mais de 60 anos tinham que descer uma ladeira e alguns lances de
escada, pois a unidade ficava no subsolo da Delegacia da Mulher ali instalada.
O pior era, depois, fazer o caminho inverso, salienta a pesquisadora.
A
delegacia ficou ali até o ano passado. No começo deste ano, foi
para a Praça da República e, apesar de ainda não terem sido
compilados dados estatísticos sobre os reflexos da mudança de endereço,
tanto a pesquisadora quanto sua assistente e os funcionários consultados
para o trabalho acreditam que a transferência da unidade foi de grande valia,
pois a freqüência e as denúncias de casos de violência
contra idosos devem crescer.