O Piolho Viajante aportou no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século 19 e fez muito sucesso por aqui, até desaparecer de circulação e cair no esquecimento. Escrito por Antonio Manuel Policarpo da Silva, o romance é uma sátira à sociedade portuguesa no período, com a história narrada por um piolho que freqüenta dezenas de cabeças – e por isso sabe o que se passa nelas, principalmente nas mais sujas. Outro romance bastante apreciado na época traz uma história semelhante, a de Gil Blas de Santilhana, do autor francês Lesage. É sobre um criado que vai trocando de patrões e descobrindo as mazelas que eles escondem, como um médico que deixa de receitar os remédios adequados para protelar a cura do paciente e continuar a explorá-lo.
D. Quixote
e Crusoe são
motivo de
controvérsia
sobre origem
“Quando estamos na escola, a impressão é de que o romance sempre existiu. Não é bem assim. O chamado romance moderno começou a ser produzido por volta do século 18 e era um gênero malvisto, cuja leitura não exigia erudição nem o domínio de convenções mais complexas como a retórica, a poética, a mitologia e o latim. Mal comparando, o romance equivalia às telenovelas de hoje, com todo o preconceito que existe contra elas”, afirma a professora Márcia Azevedo de Abreu, diretora associada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
A docente participa do projeto temático interdisciplinar “Caminhos do romance no Brasil – séculos XVIII e XIX”, financiado pela Fapesp. Tomando por base o período mencionado, nele se investiga o processo de implantação e consolidação do gênero romanesco no país, a partir do exame dos romances em circulação, das práticas de leitura por eles suscitadas e dos espaços em que essas práticas se davam. Além de Márcia Abreu, estão à frente do projeto mais três professores: Sandra Guardini Vasconcelos (FFLCH/USP), que também é da área de Letras, e dois docentes da área de História, Nelson Schapochnik (FE/USP) e Luiz Carlos Villalta (Fafich/UFMG). Sob orientação dos quatro professores, aproximadamente 30 alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado, bem como pesquisadores de pós-doutorado, realizam pesquisas sobre temas afins.
“Nosso objetivo é estudar como o romance se desenvolveu na Europa e principalmente no Brasil, a ponto de se transformar quase em sinônimo de literatura e no gênero que mais se lê, hoje em dia”, resume Márcia Abreu. Segundo ela, a controvérsia já começa na identificação do primeiro romance moderno. “Para alguns estudiosos, o primeiro representante do gênero é D. Quixote. Portanto, tudo teria começado no século 17 [Miguel de Cervantes escreveu a obra em 1605]. Mas a maioria vê as origens na Inglaterra, com o surgimento de obras como Robinson Crusoe, em 1719, História de Tom Jones, de Henry Fielding, em 1749, Pamela (1740) e Clarissa Harlowe (1748), de Samuel Richardson.”, diz a professora do IEL.
O professor Luiz Carlos Villalta, que também integra o projeto temático, escreve que “Defoe se tornou o guia e o instrutor dos futuros romancistas” e que Robinson Crusoe “traz estreitas ligações com as Luzes, o capitalismo, a ascensão da burguesia e o colonialismo, não sendo alheio também ao poder monárquico”. Villalta lembra que antes do surgimento do romance moderno, a prosa de ficção “se caracterizava por trazer um conteúdo fantástico, fabuloso, por usar uma linguagem sublime e elevada, consagrando a intervenção dos deuses, focalizando príncipes e princesas e narrando acontecendo absurdos e antinaturais”. “Os romances modernos, embora ficcionais, abandonam os eventos fantásticos e voltam-se para o realismo formal, tentando aproximar-se ao máximo da realidade e da vida cotidiana”, acrescenta Márcia Abreu.
No Brasil – Em Os Caminhos dos livros, a docente da Unicamp pesquisou o papel da censura exercida pela Coroa sobre as publicações que eram embarcadas de Portugal para o Brasil. Eram proibidos escritos com conteúdos que atentavam contra a política real, a religião e a moral. “Acompanhei esse controle da censura, a partir de 1769, para saber o que era embarcado para o Brasil. Percebi que nos navios vinha poesia, literaturaclássica , mas já havia preferência por romance. Isso é interessante porque o gênero estava apenas começando na Europa, mas o Brasil não se encontrava atrás. E, obviamente, muitos livros entravam ilegalmente”.
Márcia Abreu afirma que esse rigoroso controle sobre livros e papéis, embora nefasto para a propagação das idéias, permitiu um registro minucioso da entrada de obras no país – ou seja, daquilo que aqui se lia – ao menos no campo da legalidade. Segundo a professora, no período anterior à vinda da família real para o Rio de Janeiro, foram remetidos de Portugal 1.328 livros de Belas Letras, equivalentes a 519 títulos diferentes. Depois de 1808, quando o sistema de controle foi duplicado, o volume permaneceu elevado, com o envio de 3.003 livros de 851 diferentes títulos. Dentre os escritos de Belas Letras, o gênero que despertava maior interesse no público era, sem dúvida, o romance.
Ainda de acordo com Márcia Abreu, os livros mencionados na maioria dos pedidos refletiam a preferência do público. “Basta saber que o livro mais remetido para o Rio de Janeiro entre 1769 e 1826, considerando todos os pedidos submetidos aos vários organismos responsáveis pela censura à circulação das publicações, era o romance Aventuras de Telêmaco, escrito pelo francês François de Salignac de la Mothe-Fénelon
e publicado em 1699”, registra. Sobre esse livro, a professora observa que ele “realizou o sonho impossível do escritor contemporâneo: manter-se no topo da lista de best-sellers por mais de 100 anos, não só em seu próprio país, mas até mesmo em terras à época longínquas, como Brasil”.
Em seu levantamento, Márcia Abreu aponta que, no período anterior à transferência da Corte para o Brasil, 55% das obras enviadas eram romances; depois de 1808, o gênero representava 69% dos envios. Entre os destaques: Les Aventures de Télémaque, de Fénelon; Histoire de Gil Blas de Santillane, de Lesage; Le Voyageur François, de Laporte; História do Imperador Carlos Magno e dos doze pares de França, de autor desconhecido; Caroline de Lichtfield, de Montolieu; Don Quijote de la Mancha, de Cervantes; Lances da Ventura, de Monroy y Ros; Viagens de Altina, de Caetano de Campos; O Feliz independente do mundo e da fortuna, de Padre Almeida; e Delli viaggi di Enrico Wanton, de Zaccaria Seriman.
O público – Lembrando que os romances – abominados pelos eruditos da época – atingiam as camadas mais populares, Márcia Abreu ressalta o trabalho dos dois docentes historiadores do grupo, que se ocupam em levantar os catálogos das bibliotecas públicas e privadas e dos chamados gabinetes de leitura, a fim de averiguar que lugar os romances ocupavam nas prateleiras e como circulavam no país. “Da mesma forma que eu havia constatado o movimento nos navios, eles atestaram que nas bibliotecas públicas, ao longo do século 19, cresceu cada vez mais a quantidade de romances nos acervos.”
A respeito dos gabinetes de leitura, o professor Schapochnik esclarece que eles surgiram na década de 1820, concebidos como empreendimentos comerciais responsáveis para colocar em circulação, a preço módico, livros de interesse geral. “Ofereciam a alternativa de acesso ao livro para aqueles que não dispunha de dinheiro para adquiri-los. Deles se beneficiou, por exemplo, José de Alencar ao retornar ao Rio de Janeiro depois de concluir seus estudos em São Paulo”.
Já professora Sandra Vasconcelos pretende analisar a presença de obras inglesas no Brasil, observando possíveis influências desses textos no processo de criação do romance nacional. Assim como Alencar lia romances nos gabinetes de leitura, muitos outros escritores leram assiduamente a ficção importada e traduzida – às vezes para o português, outras para o francês.
Grupo
disponibiliza
fac-símiles de romances |
O grupo de pesquisadores do projeto temático “Caminhos do romance no Brasil” mantém um site com todas as informações sobre o trabalho, incluindo uma biblioteca virtual disponibilizando mais de 120 fac-símiles de romances que circularam nos séculos 18 e 19 e que estão liberados para impressão. A página traz ainda ensaios, teses e bibliografias. “Quem quiser comprar O Piolho Viajante, por exemplo, não vai encontrar. Mas ele está disponível no site. São livros que não foram canonizados, pelo menos no Brasil, e que acabaram desaparecendo”, informa a professora Márcia Abreu. O endereço é http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br
No projeto, a diretora associada do IEL investiga a leitura de romances feita por censores encarregados de examinar a conveniência de sua publicação em língua portuguesa ou de sua entrada no Brasil. O professor Luiz Carlos Villalta (UFMG) estuda a composição de bibliotecas privadas e o movimento livreiro no mesmo período, com especial atenção ao lugar que os romances ocupavam nestes acervos, à luz do perfil socioeconômico e cultural dos proprietários de livros na América Portuguesa.
“Cartografia da leitura no Império Brasileiro” é o tema de Nelson Schapochnik (USP), que procura estabelecer os contextos em que o romance é recebido no Brasil oitocentista, por meio do estudo dos acervos de gabinetes de leitura, bibliotecas associativas, bibliotecas circulantes e bibliotecas públicas. E Sandra Vasconcelos (USP) pesquisa as relações entre o romance brasileiro do século 19 e o romance inglês dos séculos 18 e 19, na perspectiva da construção de uma história da formação do romance brasileiro.
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