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A história esquecida no porão
Grupo de pesquisa da FE resgata cerca
de mil documentos da antiga Escola Normal
ISABEL
GARDENAL
As
Escadarias em mármore de Carrara, assoalhos de madeira de
Riga da Letônia e ladrilhos da Alemanha. Estes detalhes observados
na Centenária Escola Normal de Campinas, do período da República,
nem de longe lembram o que a instituição ocultou ao longo
desses anos em seus porões: um rico acervo bibliográfico,
com obras em vários idiomas, em péssimo estado de conservação.
Esta situação, porém, não impediu que grande parte do arquivo
histórico, com mais de mil documentos produzidos pela instituição,
fosse recuperado pela professora da Faculdade de Educação
(FE) da Unicamp Maria Cristina Menezes e por colaboradores.
O trabalho, segundo a educadora,
contribuirá para estudos e desenvolvimento de pesquisas, com
importantes esclarecimentos sobre a história da educação em
Campinas e no Estado de São Paulo.
Esse período está devidamente
registrado no livro Inventário Histórico Documental: Escola
Normal de Campinas (1903-1976) – De Escola Complementar a
Instituto de Educação, recém-saído da Gráfica da Unicamp,
organizado também pelos pós-graduandos da Universidade Eva
Cristina Leite da Silva, Maria de Lourdes Pinheiro e Oscar
Teixeira Junior.
A obra parte dos primórdios
da instituição como Escola Complementar (1903-1911) até o
período em que ela passa a Instituto de Educação de Campinas
(1951-1973) e resulta da pesquisa financiada pela Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) intitulada
“Preservação do patrimônio histórico institucional: Escola
Estadual Carlos Gomes”. Os custos da primeira edição foram
arcados pela Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP) da Unicamp, por
meio do Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão
(Faepex).
A
proposta agora é encaminhar os exemplares para outros centros
de pesquisa, sobretudo universidades brasileiras e estrangeiras
que compartilham das mesmas preocupações. Várias solicitações
já foram recebidas de pesquisadores ligados à Rede Ibero-Americana
para Investigação e Difusão do Patrimônio Histórico-Educativo
(RIDPHE), que hoje conta com uma lista de discussões que está
locada no âmbito das listas de discussão da Unicamp. Menezes
coordena a Rede na América Latina.
Inventário
O inventário permitiu trazer aspectos da Escola Normal que
pouquíssimas pessoas conheciam. Muitas informações teriam
ficado perdidas para sempre sem essa documentação. O parâmetro
para a descrição dos documentos foi a história da instituição,
que envolveu um árduo trabalho, mediante consulta aplicada,
sendo pesquisados os arquivos do Centro de Memória da Unicamp,
Câmara Municipal de Campinas, Arquivo do Estado de São Paulo,
Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) de Campinas, imprensa
e outros.
A publicação deste inventário
demandou uma parceria de Menezes, na coordenação, com pós-graduandos,
bolsistas SAE, de iniciação científica e, nos últimos tempos,
os bolsistas do Programa de Iniciação Científica Júnior (PIC-Jr.),
que têm tido uma “participação inestimável”, avalia a educadora.
A iniciativa PRP e CNPq é dirigida a alunos do ensino médio
da região de Campinas. São 15 alunos do PIC-Jr. orientados
por Menezes, sendo que nove trabalhando na E.E. Carlos Gomes,
terminando o acondicionamento de todo material.
Segundo
a professora, os documentos apontaram que a escola chegou
a receber oito denominações até hoje, sobre as quais se deteve
o inventário que recuperou seis delas: Escola Complementar
de Campinas, Escola Normal Primária, Escola Normal de Campinas,
Escola Normal Carlos Gomes, Escola Normal e Ginásio Estadual
Carlos Gomes, Instituto de Educação Estadual Carlos Gomes.
Atualmente, a escola denominada E.E. Carlos Gomes já não oferece
o curso Magistério, que formou sua última turma em 2005.
No início, a Escola Complementar
foi criada para ser uma complementação do ensino primário,
principalmente para atender as alunas concluintes do curso
preliminar dos grupos escolares que não podiam frequentar
o Ginásio de Campinas, restrito ao sexo masculino. A primeira
turma da instituição era composta por 72 moças e 28 rapazes,
com idades entre 12 e 20 anos. No entanto, o cumprimento posterior
de prática de ensino, em um grupo escolar, habilitaria o aluno
para o Magistério.
Em 1911, a escola passou para
Escola Normal Primária, por conta da legislação que a definiu
como ensino profissionalizante e, como tal, deveria garantir
aos candidatos educação intelectual, moral e prática, pondo
fim às ambiguidades anteriores. “A escola, em seus momentos
de glória, foi contemplada com uma riquíssima biblioteca portadora
de importantes obras, nas várias modalidades de ensino que
abarcou. Lamentavelmente, parte do acervo se perdeu nos porões
da instituição. Acredita-se que esse acervo chegou a reunir
algo em torno de 30 mil volumes”.
Risco e recuperação
Os documentos do arquivo encontrados no porão da escola apresentavam-se
em situação de risco. Menezes revela que eles estavam todos
infestados com cupins, com brocas, além de cobertos por poeira
e fungos. Alguns materiais não puderam ser salvos pelo adiantado
processo de deterioração. Preservaram-se, principalmente,
os livros de capa dura costurados a mão e com gramatura mais
grossa. Entre os escombros, uma relíquia: a ata de inauguração
da escola, de 1903, que traz também a ata da primeira reunião
da Congregação da escola.
O inventário reuniu documentos
administrativos, livros-ponto de pessoal docente e administrativo,
livro de faltas e de nomeação, termos de compromisso de posse,
relatórios de novas diretorias, inscrições de concurso de
professores, registro de imposições e penas, registro de notas
de alunos, atas da congregação, inventário de material e livros,
e livros de correspondência, entre outros. Os documentos foram
inventariados e descritos um a um de acordo com a Norma Geral
Internacional de Descrição Arquivística, Isad (G).
Conforme Menezes, o primeiro
passo para a recuperação dos documentos envolveu o processo
de desinfestação, quando os livros foram todos acondicionados
em sacos plásticos de barreira, com a retirada do oxigênio
e introdução do nitrogênio. Tais procedimentos contaram com
o apoio técnico de Maria Aparecida Remédio, do Arquivo Edgar
Leuenroth, da Unicamp.
Após esse processo, todos
os livros passaram por higienização com pinceis macios, página
por página. Foi um trabalho que necessitou de muitos braços,
conta Menezes. Na ocasião, o Faep/PRP subvencionou o projeto
“As normalistas vão ao arquivo”, que pôde contar com a participação
de alunas do 3º ano do Magistério. A higienização, salienta,
trouxe maior segurança para começar a identificação dos livros
e inclusive para organizar a sua descrição.
A fase de identificação exigiu
um levantamento documental que permitiu a visualização do
movimento desta escola. Um fato que saltou aos olhos da coordenadora
do projeto foi que nos livros eram registradas as profissões
dos pais dos alunos, o que permite abrir várias frentes de
estudo sobre ofícios que não existem mais. Muitos destes se
articulavam com a rede ferroviária e fábricas já inexistentes
como a de chapeus.
Em meio aos escombros dos
porões, foram encontradas outras raridades, como três antigas
carteiras higiênicas. Elas funcionavam com um dispositivo
que as regulava com a finalidade de se adaptar ao tamanho
do aluno, necessárias devido ao grande diferencial entre as
idades das primeiras turmas e pelas preocupações da época.
Menezes recorda ainda outro
episódio pitoresco em que foi necessário organizar uma classe
mista (até então homens e mulheres ficavam em salas separadas).
O diretor da escola ficou inconformado e lutou de todas as
formas para impedir a situação, emitindo correspondência para
as instâncias superiores. Isso aconteceu em 1908. Ao final,
o dirigente da escola obteve uma resposta: construir mais
uma classe, separando novamente meninos e meninas.
Projeto continua
Um projeto semelhante, desenvolvido a partir de financiamento
do CNPq, está em andamento no Colégio Culto à Ciência, hoje
E.E. Culto à Ciência, o primeiro Ginásio de Campinas e o segundo
do Estado. A peculiaridade é que ele começou como uma escola
da maçonaria, organizado pela Sociedade Culto à Ciência. Somente
em 1896, depois da República, começou a operar como Ginásio
Republicano.
As tarefas têm sido executadas
com auxílio de bolsistas da graduação da Unicamp, bolsistas
SAE, bolsistas de iniciação científica, pós-graduandos e também
com um grupo de PIC-Jr., que está se empenhando em suas atribuições.
De acordo com Menezes, o grupo está avaliando documentos de
1896 a 1986 e estão no momento todos identificados, com a
maioria já descrita. A mesma sistemática também se aplica
aos documentos dos três primeiros grupos escolares de Campinas:
Grupo Escola Francisco Glicério, Dr. Quirino dos Santos e
Artur Segurado.
Menezes espera que o trabalho
possa sensibilizar a comunidade escolar e as autoridades para
a importância da preservação desses acervos históricos. “A
partir do realizado, poderemos começar a constituir lugares
de memória nestas instituições históricas. Não temos ainda
no país políticas públicas de preservação desses espaços e
dos seus acervos, que trazem a possibilidade de criar lugares
nos quais possamos vivenciar uma memória que já não temos
de nossa educação escolar. Tal legado pertence a toda sociedade
e sobretudo às novas gerações”, enfatiza. “O nosso medo é
que o trabalho de anos, com a organização deste acervo, por
falta de políticas públicas de preservação, seja perdido,
retornando o abandono – nos porões.”
Exposições
Em 2003, marco do centenário da Escola Normal, o grupo liderado
por Menezes foi convidado a organizar uma exposição documental.
A publicação do catálogo desta exposição constituiu-se material
histórico emblemático do centenário da instituição. A escola
ficou aberta ao público por uma semana, com uma mostra de
trofeus e materiais cedidos por professores. Muitos ex-alunos
visitaram o evento, inclusive grupos de antigas normalistas
que se reúnem até hoje.
Posteriormente, foi realizada
exposição fotográfica “Escolas de Campinas”, no VI Congresso
Luso-Brasileiro de História da Educação, em 2006, com fotos
dos primeiros três grupos escolares, além da Escola Normal
de Campinas e da Escola Culto à Ciência. Nos 110 anos da E.E.
Francisco Glicério, em 2007, o 1º Grupo Escolar de Campinas,
também foi feita uma exposição fotográfica e de mobiliário.
As exposições realizadas ficaram registradas nas publicações
dos respectivos catálogos.
Discípulo de Ramos de Azevedo
projetou prédio
O prédio da Escola Normal
começou a funcionar em 1924, mas a escola já tinha iniciado
suas atividades em 1903, num prédio alugado, situado
na Rua 13 de Maio, onde está estabelecida atualmente
a loja Magazine Luiza, no centro da cidade. O casarão
pertencia a uma família tradicional e foi adaptado para
que a escola funcionasse ali.
O atual prédio da escola,
na Avenida Anchieta, foi projetado em estilo neoclássico
por Cesar Marchisio, um discípulo de Ramos de Azevedo,
o arquiteto da República. “Ele traz a simbologia da
época e, ao olhá-lo, já se vislumbra uma construção
do início da República, assim como os grupos escolares.
A escola tornou-se um modelo não somente em termos de
ensino, mas sua construção foi considerada paradigmática
para outras instituições do interior de São Paulo”.
Ao se adentrar o edifício
da Avenida Anchieta, observam-se, além da rica arquitetura,
os móveis austríacos, os ladrilhos importados, vitrais
sofisticados e pinturas do artista italiano Carlo De
Servi, que tem obras inclusive expostas no Museu do
Ipiranga e em Igrejas do interior paulista. Isso sem
falar na decoração, em que se sobressaem aspectos do
estilo art nouveau. A antiga Escola Normal, tombada
pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico,
Artístico e Turístico (Condephaat) e pelo Conselho de
Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Condepacc),
recentemente recebeu do Governo do Estado uma verba
para restauração do prédio. |
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