Agricultura familiar parece
coisa do passado, atrasada, sem importância.
Em um país como o Brasil, dominado por grandes
propriedades muitas extremamente modernas
e competitivas, e muitas ainda improdutivas parece
um anacronismo falar em pequenos agricultores que
trabalham a terra com base no esforço da família,
e no comando do trabalho temporário de diaristas.
A imagem difundida no Brasil é a de agricultores
de subsistência, que resistem ao progresso e
insistem em produzir alimentos básicos para
consumo próprio; que reagem às recomendações
técnicas dos especialistas, que têm medo
de tomar crédito e de inserir-se na competição
dos mercados. Esta imagem revela apenas uma parte
do universo de 4.100 milhões de agricultores
familiares. Estudo recente realizado pelo Convênio
FAO/Incra, com a colaboração de professores
e estudantes do Instituto de Economia da Unicamp (Guanziroli
et al. 2001), traça uma reveladora fotografia
da agricultura familiar no Brasil: em 1995/6 correspondia
a 85,2% dos estabelecimentos, ocupava 30,5 % da área
total no campo, recebia 25% do crédito destinado
à agricultura e respondia por 37,9% da produção
agropecuária, indicando que o uso intensivo
de certos fatores, principalmente do esforço
familiar, permitiu à uma parte dos agricultores
superar as restrições estruturais, sobreviver
e gerar renda, ocupação e produção
de alimentos e matérias-primas.
Esse quadro desmistifica o
caráter idílico que muitos querem atribuir
à agricultura familiar, e revela que de fato
o agricultor é familiar em grande parte por
sofrer uma restrição forte na área
de terra disponível para cultivo. A evidência
é que muitos dos agricultores que venderam
suas pequenas propriedades no sul do país,
e migraram nos anos 70 e 80 para Mato Grosso do Sul,
Mato Grosso, Sudoeste da Bahia, são hoje grandes
produtores e líderes do moderno agro-negócio
brasileiro. Os tempos eram outros: as terras na fronteira
eram acessíveis, o crédito abundante
e barato, a política de preços mínimos
contribuía para reduzir riscos e assegurar
renda. De qualquer forma, é evidente que esta
trajetória só se aplica a alguns poucos,
e a grande maioria continua enfrentando restrições
e dificuldades para sobreviver em mercados cada vez
mais competitivos e exigentes. O mesmo estudo revelou
que em 10 anos mais de 1 milhão de agricultores
familiares foram expulsos do campo e certamente a
grande maioria já não encontra ocupação
nos meios urbanos. Resultado: conflitos agrários
e tensão social, no campo e nas cidades.
Nos últimos anos as
medidas de política passaram a reconhecer a
importância da importância da agricultura
familiar, principalmente por programas de crédito
como o Pronaf. Mas é preciso reconhecer que
o crédito ajuda, mas não é tudo.
Sem tecnologia o agricultor familiar não consegue
manter-se competitivo, e não conseguirá
sobreviver. Esta de fato é uma das prioridades
da Embrapa. A questão que se coloca é
de que tecnologia estamos falando. Existe uma tecnologia
apropriada para agricultores familiares?
O estudo do perfil da agricultura
familiar revela que uma diversidade tão grande
de sistemas produtivos, de estratégias de produção
e sobrevivência, de condições
estruturais e disponibilidade de recursos que seria
impossível pensar em desenvolver tecnologias
para os agricultores familiares. Além disso,
os que pensam em tecnologia apropriada se esquecem
que vivemos em um mundo no qual o ritmo das transformações
sociais, econômicas e tecnológicas é
vertiginoso, e que a tecnologia apropriada de hoje
será inútil amanhã, quando provavelmente
começar a ser difundida entre os agricultores.
A possibilidade de sobrevivência
dos agricultores familiares depende de sua capacidade
de aproveitar aquelas tecnologias que melhor potencializam
as suas vantagens competitivas, quais sejam, uma maior
eficiência na obtenção de produtos
cujas etapas produtivas exigem atenção
e cuidados especiais e por isto elevam de maneira
significativa o custo de monitoramento das unidades
capitalistas baseados no trabalho assalariado.
Além disso, a agricultura familiar facilita
arranjos cooperativos que combinam a competência
familiar com a necessidade de contínuo intercâmbio
de informação e de ações
conjuntas por parte de seus participantes. A busca
de conservação ambiental nos projetos
do tipo Microbaciais dá um exemplo claro de
vantagens da forma familiar de organização
da agricultura: dificilmente se poderia garantir,
com trabalho assalariado, o cuidado necessário
para evitar quebras de acordos cooperativos e o fracasso
dos programas conjuntos.
É fato que a força
tarefa central da pesquisa agrícola explora
as fontes de economia em três caminhos básicos:
a) a redução do risco de produção,
representado pelos choques da natureza, do clima às
doenças de plantas; b) a busca de um melhor
aproveitamento das dotações naturais,
em uma função de adaptação
a diferentes condições edafo-climáticas;
c) pela padronização dos processos que
compõem as etapas de um ciclo de produção
agrícola, favorecendo a mecanização
e as técnicas de manejo produtivo. As tecnologias
não são neutras nem em relação
à escala e nem às formas organizacionais
da produção. A biotecnologia moderna
atua nos três processos, e pode ou não
favorecer os agricultores familiares; os conhecimentos
de informática e geo-processamento, assim como
a mecanização, nos moldes praticados
no Brasil, favorecem a grande produção
agroindustrial, estreitando teoricamente, os espaços
econômicos da pequena produção.
A inovação tecnológica
interage com as regras dos mercados, e o resultado
da interação não é zero
e nem predeterminado. A exigência legal do pré-resfriamento
do leite no campo reduz vantagens do agricultor familiar
neste ramo, e pode ser vista como um fator de destruição
da pequena exploração leiteira, mas
também como um incentivo à geração
de formas cooperativas de compartilhar investimentos.
A produção de mudas teladas de citros
não precisa resultar no fechamento de milhares
de pequenas unidades produtoras de mudas de frutas,
como ocorreu na Espanha na década de 90. Ao
contrário, ela pode servir de plataforma
para a multiplicação de vários
tipos de mudas e pela intensificação
do uso de técnicas de cultura de tecidos, com
efeitos virtuosos sobre a qualidade dos produtos finais
obtidos, atraindo assim novos consumidores. Nosso
foco é portanto tecnológico, mas também
organizacional. A ênfase em novas formas de
organização se origina da necessidade
de criar capacitação continuada para
enfrentar desafios postos pela própria dinâmica
da relação entre agricultura e mercados
consumidores.
No Brasil os agricultores
familiares, mesmo os que podem ser economicamente
viáveis, enfrentam a restrição
do tamanho da propriedade. Neste sentido, tecnologia
apropriada para os agricultores familiares são
aquelas que permitem a intensificação
da geração de valor agregado em pequenas
áreas, a redução da restrição
colocada pela disponibilidade de mão-de-obra
familiar e a exploração das vantagens
organizacionais associadas à base familiar.
Isto dá sentido à idéia de tecnologia
para agricultura familiar. Em grande medida, essa
tecnologia já existe, não requer maior
esforço de pesquisa, e precisa apenas ser adaptada
e disponibilizada.
Ao lado do esforço
de adaptação é preciso reconhecer
que a agricultura familiar não pode ficar fora
dos avanços que vêm sendo desenvolvidos
pelas redes de pesquisa, incluindo a biotecnologia
(transgênicos), a informática e os novos
processos de gestão e monitoramento da produção,
como por exemplo o controle da florescimento e maturação
de frutos, micro irrigação etc. Deve
incluir também pesquisas e medidas de política
que reduzam os custos da agricultura orgânica
e incentivem a indústria rural. Não
se trata, portanto, de defender a existência
de um processo espontâneo e menos ainda baseado
unicamente em conhecimentos seculares de agricultores
sábios, transmitindo conhecimentos de pai para
filho em comunidades rurais isoladas.
A apologia de formas precárias
de organização, eqüitativas na
pobreza, soaria romântica se não levasse
a resultados desastrosos. Insistir na produção
familiar de milho, feijão e mandioca com base
na tradição alimentar de nosso povo
é ignorar, antes de mais nada, as mudanças
nos hábitos alimentares da população,
e subestimar os impactos decorrentes do avanço
realizado pela pesquisa agrícola. É
muito provável que a tentativa de impor filtros
tecnológicos tenha como primeira vítima
a própria agricultura familiar.
A preocupação
legítima com a agricultura familiar tem custos
e demanda investimentos públicos em pesquisa;
em programas de capacitação em gestão
da produção e de negócios (empreendedorismo
no campo); no apoio às formas de organização
que melhor aproveitam suas vantagens em explorar novos
mercados de produtos e serviços, agrícolas
e não-agrícolas; e na provisão
de recursos para formação de capacidade
produtiva. Aí sim a experiência dos ex-agricultores
familiares bem sucedidos que estão espalhados
pelo Brasil poderá se multiplicar.
Robin
Hood, não Wood
O Embora vivesse e agisse
numa floresta, o bandoleiro que na Inglaterra
medieval roubava dos ricos para dar aos
pobres chamava-se Robin Hood (capuz) e
não Wood (floresta), como o Jornal da
Unicamp grafou erradamente no título
da entrevista com o professor Wilson Cano sobre
a reforma da Previdência, publicada na
edição da semana passada. Sete
e-mails de leitores nos alertaram para o equívoco.
Concorreu certamente para o engano o fato de
que Robin viveu na floresta de Sherwood, de
onde partia para suas incursões contra
o xerife de Nottingham. Tampouco nos serve de
consolo o fato de que uma simples busca na Web,
pelo Google, mostra milhares de equívocos
semelhantes em todo o mundo.
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