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Arquiteta investiga “fase
renegada” de Niemeyer

Arquiteto omite da autobiografia projetos executados
para o mercado imobiliário em São Paulo

LUIZ SUGIMOTO

Isto é bobagem”, foi a vaga resposta de Oscar Niemeyer ao telefone. Do lado de cá da linha, a arquiteta Daniela Viana Leal queria detalhes sobre uma passagem do mestre por São Paulo, do início até meados dos anos 1950, quando ele criou projetos de prédios residenciais e comerciais para o mercado imobiliário, omitidos em suas memórias. Niemeyer, como em seus desenhos, fez uma curva em torno da questão e desconversou. Daniela, que durante dois anos insistiu sem sucesso em uma entrevista pessoal, percebeu então que precisaria obter por conta própria as informações para sua dissertação de mestrado em história da arte. A dissertação, orientada pelo professor Marco Antonio Alves do Valle, foi defendida março deste ano no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

No referido período, Oscar Niemeyer manteve na capital paulista um escritório satélite nunca mencionado, cuja chefia entregou a Carlos Lemos, que também se tornaria um nome de referência escrevendo livros sobre história da arquitetura. “Já reconhecido mundialmente por projetos como os da Pampulha e do pavilhão de Nova York, o poeta das formas livres, autor de grandes obras governamentais em espaços infinitos, viveria naqueles tempos o dia-a-dia dos arquitetos que lutam pelo ganha-pão. Sua fama começou a ser usada para vender edifícios”, conta Daniela Viana.

Residente no Rio, o mestre chegava ao escritório com sua equipe de desenhistas para as chamadas “viradas”. Trazia também amigos e artistas para recarregar as energias em rodas de violão. “Eles viravam 48 horas sem dormir, desenhando plantas que precisavam ser aprovadas pela prefeitura antes do início das vendas. Iam embora e Niemayer deixava as outras definições por conta de Lemos. Percebe-se que ele não mantinha controle direto sobre os projetos e, por isso, esta fase da carreira tem um perfil diferenciado”, afirma a mestranda.

A pesquisa concentra-se nos edifícios Copan, Montreal, Triângulo, Califórnia e Eiffel, encomendados pelo Banco Nacional Imobiliário (BNI). “O BNI foi fundado em 1945 e, ao contrário dos bancos da época, investiu nos pequenos investidores, conquistando a classe média que crescia no boom do pós-guerra. Começou construindo casas, passando aos edifícios que surgiam como boa opção de habitação numa São Paulo que se transformava em metrópole”, lembra a pesquisadora.

Amarras da lei – Segundo Daniela Viana, Niemeyer não produziu tantos edifícios marcantes em São Paulo, em boa parte devido à sua dificuldade em trabalhar com os limites impostos pela legislação local. Além de convencer o cliente sobre a viabilidade do projeto, o arquiteto precisa convencer a prefeitura de que a obra pode ser erguida dentro das regras. “Para isso, são feitos desenhos não muito detalhados, mas que devem explicitar a área disponível, a volumetria (espaço construído e não-construído) e os recuos no edifício depois de determinada altura (o bolo de noiva)”, explica a arquiteta.

Niemeyer, pelo visto, tinha pouco conhecimento desses trâmites e sentiu dificuldade em enquadrar sua arquitetura dentro deles. “Trabalhar nos limites de um lote urbano exige um tipo de arquitetura muito diferente daquela de de Brasília, que permitiu enorme liberdade de criação. Não que a legislação fosse tão ruim, pois outros profissionais encontraram boas soluções como o Conjunto Nacional, na avenida Paulista”, observa Daniela, acrescentando os “bolos de noiva” do Banespa, na São João, e do Santa Mônica da Praça da República.

Outro fator contra Niemeyer, de acordo com a mestranda, é que ele sempre trabalhou com engenheiros calculistas excepcionais, capazes de concretizar as idéias mais ousadas. “É difícil encontrar profissionais como JoaquimCardozo, que acordava o chefe de madrugada avisando que tinha descoberto o ângulo para a parábola da Igreja da Pampulha. Já a reação dos engenheiros contratados pelo BNI, quando recebiam um projeto de Niemeyer, era a de ‘não quero nem ver’”, ironiza Daniela.

Crítica e reação – O arquiteto ousou já no seu primeiro prédio em São Paulo, o Califórnia, sustentado-o com três pilares que se abriam delicadamente em “v”. Desconsertados, os engenheiros calcularam cinco pilares, em sólidos triângulos inteiriços. Houve muita discussão para viabilizar um pilar de desenho mais truncado que os leves pilotis que sustentam, por exemplo, a sede do Detran. Ainda assim, a estética obtida ajudou a vender o edifício, com o “v” rasgado em três páginas de publicidade.

Os mesmos pilares, porém, motivaram as primeiras críticas a Niemeyer, que então só merecera elogios. O suíço Max Bill, vindo ao Brasil para a Bienal de 1954, visitou as obras do Califórnia e foi ácido: “É o fim da arquitetura moderna. É um desperdício anti-social, sem responsabilidade”. O ataque de Bill se estendeu à arquitetura do Ibirapuera, que considerou um exibicionismo caro e desinteressante. Arquitetos brasileiros aderiram às críticas e, criado o debate, Niemeyer viu-se obrigado a dar satisfações sobre suas obras, o que também nunca fizera.

“É quando ele começa a produzir textos para explicar o que entende por sua arquitetura”, ressalta Daniela Viana. E, nos textos, ela encontra outro motivo para Niemeyer apagar o período paulistano das memórias. “Seus argumentos vão contra o que tinha acabado de produzir, ele se contradiz. Ainda no caso do Califórnia, ele explica que os pilares em ‘v’ não são simplesmente estéticos, pois visam liberar o térreo para uma galeria. Portanto, o recurso só se justificaria se pudéssemos enxergar o prédio solto na paisagem, quando o Califórnia está grudado aos edifícios vizinhos”, aponta.

A pesquisadora arrisca-se a afirmar que tais projetos serviram como uma experimentação, que viria a ser fundamental para a construção de Brasília. “Creio que ele cresceu com a crítica, o que o enobrece ainda mais. Mesmo renegando esta fase, é notória sua importância para a produção posterior de Niemeyer”.

Obras distorcidas

Ibirapuera e Copan foram os grandes projetos para São Paulo apresentados por Oscar Niemeyer em 1951, encomendados para o 4º Centenário da cidade. O arquiteto relaciona ambas as obras na autobiografia, apesar da insatisfação quanto ao Copan, cuja execução entregou a Carlos Lemos ao ver o edifício residencial apenas no terceiro piso durante as festas dos 400 anos, e também porque estava a caminho de Brasília. “Talvez, Niemeyer não comente esta fase também porque as obras não saíram de acordo com os projetos”, observa a pesquisadora Daniela Viana Leal

O Copan que vingou é fruto isolado do projeto prevendo um hotel vizinho e ainda mais grandioso, uma laje ligando os dois prédios e sustentando um restaurante, além de piscina e galeria de lojas. A obra foi truncada pela quebra do Banco Nacional Imobiliário (BNI) e a conclusão do edifício residencial levou 18 anos. No prédio bem menor do que seria o hotel, funciona hoje uma agência do Bradesco, que absorveu o BNI.

O Edifício Triângulo em seu estilo “Manhatan”, envolto por três tipos de vidro, é mais um projeto frustrado de Niemeyer. O volume prismático, com brises que o tornariam ainda mais reluzente, foi desaprovado pela prefeitura, que exigiu os recuos de “bolo de noiva”. O prédio foi finalizado sem controle da construção e, sem a devida manutençao, ficou deformado ao longo dos anos, sem brises que o protejam do sol. “Tiveram de colocar cortinas e ar-condicionado. Virou um monstrinho”, lamenta a mestranda.

Já quando quiseram fazer do Edifício Montreal novo “bolo de noiva”, Niemeyer brigou. Enviou carta, fotos e croquis justificando ponto por ponto do projeto, mostrando a distorção que a lei provocaria. Que as autoridades mudassem a lei, pois a proposta, acima de lucro para o mercado imobiliário, traria o benefício urbanístico de fazer do edifício um ponto focal da cidade. “Ele conseguiu e o Montreal, na avenida Ipiranga, virou cartão postal”, diz Daniela.

Em Campinas – O silêncio do arquiteto obrigou Daniela Viana a uma pesquisa exaustiva, como o folhear de todas as páginas da Folha da Manhã no período de 1951 a 1956. Dentre tantas propagandas de empreendimentos assinados por Niemeyer, Daniela selecionou uma sobre o Edifício Itatiaia, no centro de Campinas, mostrando como o nome do arquiteto era difundindo para vender imóveis. Diz o anúncio: “Orgulhosamente, apresentamos o primeiro projeto de Oscar Niemeyer para uma cidade do interior paulista: Edifício Itatiaia, ponto alto da arquitetura campineira”.


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