Jornal da Unicamp O senhor tem dito que a reforma
da Previdência, tal como foi formulada pelo
governo, é um desastre do ponto de vista social
e também fiscal. Por que ela seria ineficaz
do ponto de vista fiscal?
BiasotoPara o servidor ativo vai mudar o cálculo
da aposentadoria, que será feita pela média
dos rendimentos. Uma pessoa que entrou no serviço
público com salário de mil reais e no
final da carreira está com 5 mil reais, na
hora de se aposentar o cálculo será
feito pela média, o que dará algo em
torno de 2,6 mil reais. Um servidor, por exemplo,
com 15 ou 20 anos de contribuição provavelmente
optará por sair da aposentadoria pública
e migrar para um fundo de pensão. Ao fazer
isso, o servidor entrará na justiça
para reclamar aquele valor que foi debitado no seu
contra-cheque, com o qual ele contribuiu durante toda
a sua carreira. Provavelmente, também reclamará
um outro valor, referente à contribuição
patronal. Certamente a justiça atenderá
ao primeiro pedido e muito provavelmente ao segundo.
Isso com certeza provocará um rombo fiscal
e inviabilizará os cofres estaduais e municipais,
que terão de arcar praticamente com uma outra
folha salarial para pagar os valores reclamados. Será
um desastre fiscal.
JU Se os estados
e municípios não tiverem de onde tirar
os recursos, o prejuízo ficará com o
servidor?
Biasoto Provavelmente.
Além disso, as discussões na justiça
deverão prolongar-se através dos anos
e a situação fiscal do município
ou do estado ficará sob judice. Isso levará
a um travamento das máquinas estaduais e municipais
porque, a rigor, isso significa endividamento. Ao
mesmo tempo, o servidor fica sem poder capitalizar.
É uma equação inviável.
Não tem como evitar essa situação.
Se isso acontecer, talvez seja necessário expandir
o programa Fome Zero para os servidores que ficarão
sem a sua aposentadoria.
JU Nesse caso, por
que o governo teria enviado esse texto ao Congresso?
BiasotoFrancamente,
acho que ninguém está entendendo o tamanho
da enroscada em que se está metendo o país
com essa proposta maluca. Jamais imaginei que alguém
teria a coragem de propor uma maluquice como essa.
Essa proposta além de ser muito ruim do ponto
de vista fiscal também desbarata o serviço
público. Há pessoas com 20 ou 25 anos
de serviço público que não terão
sequer tempo para construir uma poupança no
sistema privado. Um trabalhador, por exemplo, na Unicamp,
que tem um salário de 5 mil reais, se aposentará
com 2,5 mil e não terá mais tempo de
fazer uma nova poupança. O governo teve uma
ótica absolutamente fiscalista nessa proposta.
Não se importou com a estrutura do estado.
O grande problema dessa proposta é a sua concepção.
Para mim, ela não se importa com a manutenção
da estrutura do estado. A proposta do governo dá
a possibilidade de que se tenha um sistema complementar
e não identifica a forma como esse sistema
complementar irá se comunicar com o sistema
antigo. No PL9 [proposta de reforma apresentada pelo
governo FHC e arquivada pelo Congresso] se estabelecia
que o sistema complementar se destinava àqueles
que ingressassem na carreira pública depois
da emenda. Os antigos permaneceriam no sistema atual.
Ora, ao se mudar a regra de cálculo da aposentadoria,
usando a média das contribuições,
cria-se um problema de sérias conseqüências.
O trabalhador fez poupança para a sua aposentadoria.
Os seus contra cheques mostram que ele passou quinze
ou vinte anos contribuindo com o sistema. Em minha
opinião, nenhum juiz será capaz de dizer
que esse dinheiro não pertence ao trabalhador.
JU É possível
calcular esse rombo?
Biasoto Do ponto
de vista atuarial, só para os governos estaduais,
haveria um rombo de aproximadamente 700 bilhões.
Pode não ser tudo isso, mas qualquer coisa
como 10, 15 ou 20 bilhões, a ser questionado
na justiça pelas pessoas significa um desastre
fiscal de magnitude inacreditável. Na verdade,
ninguém sabe de quanto será essa conta
porque não é possível prever
se o juiz concederá apenas o que o servidor
tem direito pela sua própria contribuição
ou se concederá uma contribuição
solidária de um para um ou dois para um. Trata-se
de um drama do ponto de vista fiscal.
JU Numa palestra
recente, o senhor minimizou a importância do
déficit atual da Previdência do setor
público. Mas o governo tem trabalhado a opinião
pública com números que impressionam.
Quem está com a razão?
Biasoto É
lógico que há um problema previdenciário
no setor público que se expressa numa séria
de situações. Mas, do ponto de vista
federal, por exemplo, você tem um déficit
que é mais ou menos constante nos últimos
cinco anos. Muitos ensaios realizados nos últimos
anos sugeriram um crescimento exponencial desse déficit.
Isso não tem sido visto. Nos governos estaduais
e municipais temos uma situação que
se comporta muito aos saltos. As máquinas públicas
não foram construídas com cinco mil
pessoas entrando a cada mês. Foram construídas
gradualmente, com aumentos discretos. Isso me permite
dizer que os déficits mudam de patamar, mas
não que tenha uma tendência exponencial
como muitos estão falando. Esse problema poderia
ser enfrentado de outras maneiras.
JU Como, por exemplo?
Biasoto A possibilidade
de se estender um pouco o período de aposentadoria
é algo justo socialmente e bom para o serviço
público. Não acho essa proposta descabida.
JU O senhor considera
necessário haver uma regra de transição?
Biasoto A regra
de transição é uma necessidade
absoluta. Afinal, as pessoas optam pelo serviço
público segundo um conjunto de regras. Então,
no mínimo enquanto essas regras estão
vigentes, o servidor deve ter o seu direito garantido.
Sem isso, teremos uma avalanche de ações
judiciais e muita gente vai ganhar as ações,
o que provocará um rombo fiscal imprevisível.
JU
Se a proposta for aprovada como está,
qual será o impacto nas instituições
públicas?
Biasoto
Em primeiro lugar, é o perigo muito
grande de um pânico entre as pessoas, que
já está ocorrendo porque ninguém
sabe o que vai acontecer durante as votações.
Colabora muito para isso o fato de os jornais estarem
noticiando que há um rolo compressor no Congresso
a serviço do governo para que a proposta
seja aprovada a toque de caixa. Além disso,
a proposta de calcular a aposentadoria pela média
das contribuições é um incentivo
para que as pessoas mudem de profissão. É
verdade que o setor público paga menos que
o privado durante a vida ativa do servidor, mas
em troca oferece uma aposentadoria maior. Algumas
pessoas criticam isso. Mas, francamente, acho que
essa é uma boa conta para o estado. Se o
estado tivesse de buscar o mesmo profissional sem
prometer uma aposentadoria razoável teria
de pagar muito mais a esse profissional. A conta
que o servidor faz é a conta da estabilidade
e garantia de aposentadoria integral. O estado precisa
manter isso se pretende garantir o mínimo
de qualidade no serviço.
JU
O projeto do governo também acena com a instituição
de fundos de complementação através
de leis ordinárias. O senhor diz que isso
não vai funcionar. Por quê?
Biasoto
A constituição de 88 fez um
grande desserviço ao país na hora
em que deu a possibilidade de transformar os antigos
celetistas em servidores estatutários. A
partir daí começaram a ser criados
nos estados e municípios institutos de previdência.
Em Campinas, por exemplo, foi constituído
em 91 o IPMC (Instituto de Previdência dos
Municipiários de Campinas), com um cálculo
atuarial de 55%, sendo 10% do servidor e 45% por
parte da prefeitura. No final, os 55% revelaram-se
inviáveis e baixou-se para 35%. Mesmo assim,
três anos depois o fundo estava quebrado e
teve de ser desmontado. Isso aconteceu no Brasil
inteiro. E aconteceu por falta de regras adequadas
e porque o volume de benefícios concedidos
era maior do que o dinheiro que entrava.
JU
A proposta de reforma na Previdência, tal
como está, reforça esse risco?
Biasoto
O PL9 era a forma de se dar uma institucionalidade
federal e regras de funcionamento para os fundos
municipais e estaduais. Regras para regular a gestão
dos fundos, a maneira como os tesouros estadual
e municipal participam do fundo, como se aplicam
os recursos do fundo, tempo de contribuição,
etc. O PL9 colocava essas regras, que deveriam ser
seguidas por todos os estados e municípios.
Ainda assim, havia um enorme risco de quebradeira
porque a fiscalização nem sempre é
eficiente. Agora, imagine o que pode acontecer com
leis ordinárias municipais e estaduais montando
esses fundos. Cada um vai fazer o que quiser, será
uma salada. Você tanto poderá privilegiar
servidores como roubar o dinheiro das pessoas em
operações que dão prejuízo.
JU
Isso traria riscos do ponto de vista fiscal e social...
Biasoto
Fiscal e social. Do ponto de vista social,
se o fundo quebrar, o servidor fica na rua da amargura.
Do ponto de vista fiscal, se o fundo quebrar e as
pessoas forem para a justiça reclamar seus
direitos, os tesouros municipais e estaduais vão
ter de dar conta do dinheiro. Trata-se, portanto,
de um segundo momento em que se cria uma instabilidade
fiscal enorme.
JU Sua
impressão pessoal é de que o projeto
passa ou os parlamentares vão se conscientizar
de sua inadequação?
Biasoto
Minha grande dúvida está no
fato de o governo atual estar apostando todas as
suas fichas nas reformas. No momento em que ele
afirma que vai fazer as reformas porque são
fundamentais, ele coloca a si mesmo numa camisa
de força. Agora ele terá de jogar
tudo nas reformas. Daí a explicação
para o rolo compressor no Congresso e à censura
aos petistas que têm se colocado contra as
reformas. Por outro lado, estamos assistindo nos
últimos dias a um movimento muito pesado
de reação, tanto dentro do PT quanto
na sociedade civil. A manifestação
dos servidores públicos em Brasília
deixou isso muito claro. Acho que a situação
de recessão em que o país está
aliada à reação dos servidores
tornará mais difícil para o governo
conseguir a aprovação do projeto.
JU
Em que pontos o senhor acha que o texto sofrerá
modificações?
Biasoto
O primeiro ponto, que considero crucial,
é o cálculo da aposentadoria pela
média das contribuições. O
segundo ponto que acho muito difícil manter
é a pensão em 70%, porque o pensionista
estará sofrendo muitas perdas. A primeira
perda é a contribuição do inativo,
a segunda perda é a redução
da pensão em relação à
aposentadoria. No mínimo, o Congresso terá
de alterar essa questão dos 70% para as pensões.