MANUEL
ALVES FILHO
No
Brasil, os professores de Ciências Biológicas
com frequência não estão preparados
para sanar as dúvidas dos estudantes do ensino fundamental
sobre temas relativos à sexualidade. Isso acontece
porque ao longo da formação desses profissionais
a educação sexual é baseada quase que
exclusivamente no aspecto biológico, deixando as
dimensões humana e histórica em segundo plano.
A constatação é da educadora Cláudia
Ramos de Souza Bonfim, que acaba de defender tese de doutorado
sobre o assunto na Faculdade de Educação (FE)
da Unicamp, sob orientação do professor Sílvio
Ancizar Sanches Gamboa. Segundo ela, as crianças
e adolescentes de hoje anseiam por informações
que vão além dos aspectos anatômicos
e fisiológicos, e os educadores precisam estar aptos
para preencher essa expectativa.
Atual vice-presidente da Associação Brasileira
de Educação Sexual (Abrades), Cláudia
Bonfim conta que o interesse em pesquisar o tema surgiu
a partir da sua experiência como professora de Ciências
em escolas de ensino fundamental. Ao deparar com as dúvidas
dos alunos acerca de questões ligadas à sexualidade,
ela própria percebeu que não havia sido devidamente
preparada para esclarecê-los.
Quando o assunto é educação sexual,
afirma a autora da tese, os cursos superiores de Ciências
Biológicas costumam se ater quase que exclusivamente
às vertentes anatômicas e fisiológicas
dessa área do conhecimento. "Embora sejam importantes,
elas não são suficientes para dar conta de
explicar todos as nuances envolvidas num assunto tão
relevante e complexo", afirma.
Conforme
Cláudia Bonfim, ao falarem de educação
sexual durante as aulas, os professores de Ciências
normalmente repisam tópicos como métodos contraceptivos,
gravidez precoce e doenças sexualmente transmissíveis.
"É necessário dissociar a sexualidade
dos seus aspectos meramente negativos, como a questão
do pecado ou como um desejo vergonhoso, que precisa ser
profundamente controlado e silenciado. Ao silenciar o prazer,
a potencialidade afetiva e a possibilidade de realização
plena, a sociedade e a escola reforçam uma sexualidade
procriativa, utilitarista, banal e consumista", afirma.
No seu entender, é preciso falar sobre esses tópicos,
mas também é indispensável ir além.
"É fundamental, por exemplo, desenvolver uma
visão mais crítica acerca da construção
da sexualidade, de modo a promover um resgate histórico,
político e filosófico do tema", acrescenta
a especialista.
Nesse sentido, a autora da tese defende a criação
de uma disciplina que trate da sexualidade humana no curso
de Ciências Biológicas. Este, insiste ela,
deve contemplar a construção histórica
da sexualidade desde a Biologia às Ciências
Humanas e da Saúde, com uma maior atenção
à cultura, às políticas e às
cenas contemporâneas, cujos produtos midiáticos
têm produzido "significações"
que influem diretamente na forma com que a sexualidade vem
sendo vivida. "Ademais, por ser um tema transversal,
é desejável que o tema também seja
tratado nos demais cursos de Licenciatura e Pedagogia".
No
entender da vice-presidente da Abrades, a falta de conhecimento
dos professores, somada ao despreparo das famílias
para falar sobre sexualidade, contribui para a desinformação
dos jovens. Estes, por sua vez, tentam esclarecer as dúvidas
em fontes pouco confiáveis, como amigos, sítios
da internet ou televisão. "Os docentes pouco
conseguiram avançar na superação da
visão moralista, repressiva e biologista, o que se
consolida, como já dito, pela falta de formação
adequada desses profissionais. Os educadores encontram grande
dificuldade para abordar um tema tão necessário
como a educação sexual, especialmente em tempos
de globalização e de difusão, por parte
da mídia, de uma avalanche precoce, banal e hedonista
do sexo".
Ao exibir telenovelas com cenas em que as pessoas possuem
vários relacionamentos ao mesmo tempo e reportagens
de adolescentes que vão para as baladas para disputar
quem beija mais, prossegue Cláudia Bonfim, a televisão
banaliza a discussão. "Está faltando
falar de afeto. Falta, ainda, dizer que a sexualidade não
está restrita aos genitais. A sexualidade envolve
a mente e o corpo todo". Na sociedade atual, acrescenta
a autora da tese, a sexualidade foi animalizada em vez de
ser humanizada. "Cada vez mais, busca-se o prazer pelo
prazer. Estamos esquecendo de transmitir com naturalidade
aos jovens que sexo é bom, faz bem, pode ser vivido
plenamente até a velhice, mas tem que ser feito com
respeito, admiração e afeto pelo parceiro".
Passagem
Como tema, a sexualidade sofreu uma passagem histórica
do campo da Biologia para o das Ciências Humanas.
Num primeiro momento, explica Cláudia Bonfim, a sexualidade
não tinha um peso econômico. Sua função
era essencialmente a de perpetuar a espécie. As questões
relativas ao assunto eram analisadas a partir de uma visão
notadamente biológica, fundada nas contribuições
dadas pelas pesquisas de Darwin, Lamarck e Mendel. Entretanto,
com a mudança dos modos de produção,
proporcionada pela Revolução Industrial, outros
aspectos passaram a ser considerados. "A sociedade
patriarcal passou a depositar um grande peso na sexualidade.
A abordagem assumiu um caráter moralista, sempre
em conformidade com o que pregava a Igreja Católica.
Por essa posição, o sexo só poderia
ser vivido dentro do casamento. A Igreja ainda nos condicionou
a uma repressão sexual, não necessariamente
para controlar nossos prazeres, mas para ter controle sobre
aquilo que a sociedade considera fundamental: a garantia
da perpetuação e legitimação
da propriedade privada", detalha a pesquisadora.
A
questão do filho legítimo, segundo ela, é
exemplar nesse sentido. Ele era necessário para que
o patriarca pudesse ter a quem deixar a herança da
família. Ademais, o corpo permaneceu sendo visto
como algo desprovido de sexualidade durante muito tempo.
Era considerado antes de tudo um instrumento de trabalho.
"A sexualidade humana não constituiu objeto
de saber até o século XVII. A moral reinante
prescrevia o silêncio sobre o sexo. Somente nos séculos
XVII e XVIII é que são produzidos, por interesses
diversos, como a expansão colonial, a industrialização
incipiente e a consequente necessidade de povoação
das colônias, novos discursos sobre a procriação
e a sexualidade". O tema somente começou a ser
objeto de uma reflexão humanista e crítica
graças aos trabalhos de Marcuse, Engels, Foucault
e Freud.
Atualmente, reforça Cláudia Bonfim, a sociedade
vulgarizou ao extremo a sexualidade. "Nós ainda
não conseguimos estabelecer um equilíbrio
entre a repressão e a banalidade. Muitos pais vestem
suas filhas de seis ou sete anos com roupas adultas, expondo
precocemente a sua sexualidade, por meio de uma erotização
inconsciente do corpo da criança. Não por
acaso, as adolescentes estão ficando grávidas
cada vez mais cedo. Sem que busquemos uma base histórica,
filosófica e crítica, não conseguiremos
alterar essa situação. Penso que o educador,
com a devida contribuição da família,
deve cumprir um papel central nessa tarefa, mas ele precisa
ser devidamente qualificado para tal. Um integrante da banca
que avaliou minha tese chegou a me perguntar se a minha
visão não seria utópica. O que respondi
é que se trata de uma utopia lúcida e desafiadora",
finaliza a educadora, que trabalha atualmente como docente
no curso de Pedagogia da Faculdade Dom Bosco e na Secretaria
de Educação de Cornélio Procópio,
município do Estado do Paraná.