Pesquisador recorre a IPMs para esmiuçar
militância de intelectuais entre 1958 e 1969
Tese de doutorado traz à tona conflitos entre formadores de opinião e militares
CARMO GALLO NETTO
A ditadura militar instaurada no Brasil na década de 1960 surpreendeu intelectuais, artistas e estudantes que militavam em movimentos de esquerda. As análises históricas dessa época são balizadas em geral por alguns marcos historiográficos, entre os quais as denúncias dos crimes de Stalin por Krushev em 1956, pela Declaração de Março do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1958, pelo golpe militar em 1964 e pela edição do AI-5 em 1968.
Em uma época permeada pela Guerra Fria, setores militares preocupados com a emergência do fenômeno do comunismo internacional, entendiam as ações da intelectualidade de esquerda no Brasil como provenientes de um movimento organizado, liderado por militantes ligados ao PCB, que seria “dirigido e financiado” pelo Partido Comunista em Moscou.
Analisar as origens, motivações e distorções que permearam esses conflitos constituiu o objetivo da tese de doutorado de Rodrigo Czajka, apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. A investigação foi orientada pelo professor Marcelo Ridenti. O título, “Praticando delitos, formando opinião: intelectuais, comunismo e repressão no Brasil (1958-1969)”, alude ao fato dos militares considerarem delitos praticados por comunistas as atividades que os intelectuais e artistas de esquerda concebiam como formadoras de opinião.
Os estudos, financiados pela Capes e pelo auxílio-pesquisa do Departamento de Sociologia do IFCH, baseiam-se em documentação inédita, considerada perdida e até destruída tanto por militares quanto por pesquisadores que têm o tema como objetos de estudo. O pesquisador considera que se trata de um conjunto documental que favorece uma interpretação mais detalhada da formação da esquerda brasileira e o seu contato com o ideário pecebista, resultante de uma discussão travada no PCB em relação à cultura desde meados da década de 1950.
A motivação
As reflexões do pesquisador tiveram início no mestrado, em que abordava a organização de intelectuais e artistas em torno da RevistaCivilizaçãoBrasileira, editada entre 1965 e 1968, e analisava de que maneira seus colaboradores contribuíram com esse projeto da editora Civilização Brasileira – que teve grande penetração nas esquerdas principalmente na década de 1960, em plena vigência da ditadura militar.
Ele investigou como esses intelectuais articularam-se política e ideologicamente a partir da revista para resistir à ditadura e consolidar uma cultura de esquerda. No seu entender, a revista foi um dos sintomas da complexa conjuntura cultural e política da década de 1960, na medida em que a organização da cultura pelos intelectuais foi uma das faces de um amplo contexto de mudanças estruturais da sociedade brasileira, constatadas desde o final dos anos 50 e que perdurou por toda a década seguinte.
Já o objetivo inicial da pesquisa de doutorado de Rodrigo Czajka era, com base em publicações da editora Civilização Brasileira, analisar de que forma a editora construiu um perfil de esquerda no interior do mercado de publicações. Pretendia demonstrar que a chamada “hegemonia cultural de esquerda”, conceito clássico das ciências sociais no Brasil, não representava a homogeneidade dos movimentos de esquerda.
Sustentava que a Civilização Brasileira serviu como polo aglutinador de inúmeras tendências de esquerda que na verdade não se resumiam a um só projeto ou movimento organizado. O que, de certo modo, explica porque uma editora de esquerda, ligada ao PCB, com muitos dos editados ligados ao partido, obteve um sucesso editorial de mercado em plena ditadura militar.
A descoberta
Compulsando os articulistas da RevistaCivilizaçãoBrasileira e suas matérias, o autor deparou-se com Inquéritos Policiais Militares (IPMs), citados de passagem e que, segundo constava, eram processos de investigação militar sobre ação de militantes e intelectuais ligados às esquerdas. Na busca pela localização desses IPMs, consultou vários pesquisadores, pois esse material produzido pelos militares era classificado como “secreto”, ou dado como destruído, ou simplesmente perdido.
Depois de longa pesquisa sobre a natureza e importância desses IPMs, deduziu que poderiam estar depositados em arquivo federal militar, o que o fez procurar o setor de arquivos do Superior Tribunal Militar (STM) em Brasília, quando constatou que os processos lá se encontravam e nunca haviam sido consultados.
Atendendo a disposições legais, o pesquisador solicitou permissões que o possibilitaram acesso a esse conjunto documental que somam aproximadamente 50 mil páginas. Nesses processos estavam envolvidos intelectuais como Leandro Konder, José Artur Poerner, Carlos Heitor Cony, Carlos Nelson Coutinho, Ferreira Gullar, Enio Silveira, Nelson Werneck Sodré, Roland Corbisier, Alceu Amoroso Lima, Álvaro Vieira Pinto, entre muitos outros.
Face a essa documentação, Rodrigo Czajka passou a pesquisar como e porquê esses intelectuais engajados, que foram vistos como constituindo uma unidade, participaram do mercado e se projetaram nele. Intelectuais que em plena ditadura militar atingiram o auge de suas carreiras profissionais e sucesso de mercado sem precedentes. Diz ele que “por maior que fosse a repressão, a visibilidade foi conquistada justamente na associação do engajamento político e a inserção no mercado”.
Novos documentos
Como o pesquisador teve acesso aos documentos apenas nos dois últimos anos da sua pesquisa de doutorado, não lhe foi possível examiná-los todos. Mas da sua investigação preliminar extrai duas conclusões iniciais. A primeira é a de que a ideia de uma “hegemonia cultural de esquerda”, de uma unidade de movimento, nunca existiu nem mesmo entre artistas e intelectuais que tomaram parte daqueles eventos.
A segunda refere-se ao modo como os próprios militares representaram esses intelectuais e artistas nos processos, vinculando-os ao comunismo internacional e à subversão – que consolidava uma visão superficial e consensual sobre o comunismo no Brasil. Ele lembra: “Veja-se o caso de Nelson Werneck Sodré, general reformado. Embora tivesse ligações com o PCB, nunca foi seu militante declarado, mas como tinha amizades no partido e defendia algumas de suas teses, os militares o fizeram comunista. Tentando construir um inimigo, os militares representavam esses intelectuais como se fossem todos ligados a um movimento comunista manipulado pela União Soviética”.
Entretanto, afirma o pesquisador, na contramão desses episódios, desde meados da década de 60, o próprio governo militar patrocinava o movimento intelectual que se manifestava no teatro, no cinema e nas artes em geral. E aí emerge a contradição, pois esses financiamentos eram concedidos a projetos artístico-culturais que, em sua grande maioria, eram assinados por produtores culturais considerados subversivos. Ademais, a indústria cultural no Brasil deu um salto quantitativo nos anos 60 e 70 com mão-de-obra comunista.
Constituem exemplos Dias Gomes e Oduvaldo Viana Filho (Vianinha), que foram para a TV Globo logo no início da década de 1970. Depreende-se daí, constata ele, que se havia repressão de um lado, havia também incentivo de outro. Os posicionamentos dos intelectuais e artistas pecebistas atendiam à política do PCB, que era a de tomar as grandes mídias, penetrar nos grandes veículos de comunicação e reorganizar o espaço público.
A explicação
Mas isso tudo fazia sentido porque a maioria dos militares encarregados dos processos eram intelectuais formados na Escola Superior de Guerra (ESG) e tinham formação humanista sólida. Segundo Rodrigo Czajka, havia um certo respeito, por exemplo, entre o general Golberi do Couto e Silva e o editor comunista Ênio Silveira, a ponto do general convidá-lo para militância nas fileiras do nacionalismo militar. De outro, o mercado era um componente muito forte e presente por toda a década de 1960. A apropriação do ideário esquerdista pelos grandes meios de comunicação expandiu as possibilidades do mercado de bens culturais, bem como as formas de resistência cultural por parte de intelectuais e artistas vinculados às esquerdas políticas. Esse hibridismo favoreceu uma complexidade das organizações culturais de esquerda que simplesmente não era suficientemente apreendida pelos militares.
O que fica
A respeito do estudo, o pesquisador considera que se trata de um trabalho que está por ser finalizado: “Ainda há muitos documentos, muita informação por ser classificada e detalhada. São estudos que não serão continuados apenas por mim, porque agora os pesquisadores que tiverem contato com essas fontes, que até então eram tidas como perdidas, certamente vão contribuir muito com suas formas de ver essas mesmas questões. Afinal, cada um tem um modelo de análise e um determinado tipo de enfoque”.
Para Czajka, os estudos até aqui conduzidos permitem concluir que no Brasil dos anos 50 e 60 houve uma manifestação muito complexa em termos de movimentação cultural, pois foram nos espaços culturais existentes que a política foi feita e, de sobra, essa mesma cultura ganhou visibilidade no mercado. Então, para ele, não dá para simplesmente distinguir o que é efetivamente engajamento e efetivamente mercado, já que são manifestações conjuntas, que convivem, ainda que contraditórias. E acrescenta: “Os documentos nos dão também subsídios para entender como os militantes atuaram nos anos 60. Isso é importante para que não se romantize o período e não se esqueça de lidar com questões de organização das redes intelectuais e os seus meios de subsistência”.
Contribuições
O pesquisador considera que, para as ciências humanas, a importância da pesquisa está no fato de permitir detalhar certas questões, o que antes seria difícil sem a consulta aos IPMs: “Esses processos nos trazem informações importantes para desanuviar um certo momento da história do Brasil, coberto pela mão repressiva militar ou pelo romantismo de esquerda”.
Talvez, diz ele, o ponto mais importante da pesquisa seja trazer uma outra leitura sobre o período, sobre as organizações de esquerda, não necessariamente comunistas, que se organizaram em torno da cultura. Leitura essa que pode dar uma dimensão muito mais complexa sobre os acontecimentos que não são tão simples de analisar.
Conclui que o grande achado nos IPMs, dos quais a pesquisa foi mera decorrência, é trazer uma série de informações e detalhes sobre as organizações de esquerda. Ou seja, mostram a existência de uma rede de intelectuais e suas ligações, estabelecidas pelo perfil investigativo dos militares, o que permite uma outra visão sobre as organizações de esquerda através do olhar militar, sem que se deixe de ressaltar sempre a repressão militar embutida na análise e na argumentação.