| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU |Edição 343 - 13 a 19 de novembro de 2006
Leia nesta edição
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Artigo: A festa dos ex-alunos
Cartas
Prêmio Capes de Tese
Países Africanos
Arqueologia da repressão
Ex-alunos: feliz retorno
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Para os países africanos
saírem do deus-dará

O historiador Luiz Felipe de Alencastro e, abaixo, a mesa do colóquio do Instituto de Estudos da LinguagemO colóquio “Caminhos da língua portuguesa: África-Brasil” reuniu na Unicamp, de 6 a 9 últimos, docentes e pesquisadores africanos e brasileiros dos campos da lingüística, da literatura, da história, da sociologia e da antropologia. Além de fortalecer as relações acadêmicas entre Brasil e África, o evento, que integrou a programação dos 40 anos da Unicamp, lançou luz sobre temas que passam a limpo uma história de integração – e diferenças – que ainda não foi devidamente contada.

A conferência de abertura do colóquio, organizado pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), foi proferida pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro, da Universidade Paris IV. Ex-professor da Unicamp, onde atuou de 1986 a 1999 no Instituto de Economia, Alencastro é autor do já clássico O Trato dos Viventes (Companhia das Letras), livro que mostra como Brasil e países africanos desenvolveram um sistema paralelo com o tráfico negreiro no século XIX. Na entrevista que segue, o pesquisador fala de alguns dos temas abordados no seminário, entre os quais o papel dos historiadores nas relações entre os países africanos e o Brasil.

JU – Em sua conferência, o senhor aborda o fato de as línguas africanas, importantes para a constituição do português falado no Brasil, serem praticamente ignoradas pelos dicionaristas contemporâneos. Por que isso ocorre?
Alencastro – É interessante o fato de os dicionaristas de hoje desconsiderarem a presença da linguagem africana na língua portuguesa do Brasil. Não foi sempre assim. No século XIX, por exemplo, havia o dicionário de Macedo Soares, de 1888, que fazia menção. Depois, porém, houve uma coisa surpreendente. Quando se fez o primeiro grande dicionário no Brasil, que foi o “Aurélio” [Buarque de Holanda], essa distorção veio à tona. O “Aurélio” tinha especialistas de várias áreas, até de capoeira, mas nenhum especialista em línguas africanas, tampouco historiadores.

JU – E como fica quando torna-se necessário fazer referências etimológicas?
Alencastro – Ele se limita a classificar tudo o que é presença de vocábulo africano como “africanismo”. É a mesma coisa que criar uma generalidade como “europeísmo” para classificar todas as línguas européias.

JU – Houve um retrocesso?
Alencastro – Exatamente. Essas línguas já haviam sido dicionarizadas desde o século XVI. E eram dicionarizadas em português, e não em latim, alemão, inglês ou francês. Não houve uma renovação e interesse por esse material. O Dicionário Houaiss já dá mais atenção, mas não a devida. Esses dicionários mais antigos são de fácil acesso. A Biblioteca Nacional de Lisboa, por exemplo, tem duas dezenas de dicionários de língua africana, compreendendo um período que vai do final do século XIX até o final do século XX, alguns deles editados inclusive por missionários.

JU – A que o senhor atribui essa distorção?
Alencastro –
Houve uma espécie de desaparecimento da presença africana, não da presença do negro. São duas coisas diferentes. Entendo que isso está relacionado também à historiografia brasileira, que, de uma certa forma, conheceu o mesmo fenômeno. No século XIX, os historiadores eram mais atentos à África, havia mais informação, mais presença. No século XX, houve alguma coisa – Sergio Buarque de Holanda escreveu indiretamente sobre Moçambique e o próprio Gilberto Freyre tocou no assunto.

Depois disso, entretanto, mais exatamente nós últimos 50 anos, a historiografia brasileira ficou muito polarizada no território brasileiro. Ela ficou presa à afirmação da identidade nacional, que é uma herança do varguismo. Isso contaminou tudo. Teve um efeito global sobre a música, literatura, economia etc. As análises ficaram muito presas à idéia do isolamento do Brasil do Império português, para não falar da África em geral.

JU – Qual foi efeito dessa opção para a historiografia?
Alencastro –
Os estudos africanos ficaram ao deus dará. A Cátedra sobre Estudos Africanos, criada agora pela Unicamp, preenche, de uma certa forma, essa lacuna. Não era por falta de material ou por falta de fonte. Sempre houve documentação em língua portuguesa. O Instituto Histórico e Geográfico possui uma vastíssima documentação, já catalogada, sobre a África e a Ásia. A USP, em particular – nem falo da Unicamp que é mais jovem–, e outras universidades paulistas se desinteressaram da história da África. Houve um cochilo.

Não é preciso ir muito longe. Os historiadores simplesmente não se interessaram. A documentação era em português, estava acontecendo coisa nos países – independência, conflitos etc – e, no entanto, ninguém orientava uma tese, até porque eles próprios não tinham sido formados para tanto. O sistema prioriza o auto-recrutamento e o equívoco vai se perpetuando, fazendo com que as gerações seguintes fiquem alijadas da discussão. A coisa vai afunilando, até você ser pego por esse tipo de surpresa.

JU – Trata-se de um problema estrutural?
Alecanstro –
Entendo que priorizar a carreira vertical é um defeito das grandes universidades brasileiras. Você começa como estudante de uma determinada faculdade e ali permanece, da graduação à docência. Isso não existe nas maiores universidades européias ou americanas. No Brasil, isso não só existe como é tido como mérito. Já temos uma massa crítica no país para esperar que as pessoas façam concurso em outro lugar e, depois, voltem. Os estudos – ou a falta de – sobre a África pagaram esse preço.

JU – Em que medida o fato de a história da África ter sido ignorada é um complicador para a melhor compreensão do Brasil?
Alencastro –
Isso ficou patente nas comemorações dos 500 anos. Falava-se que Cabral descobriu o Brasil quando parou numa ilha...Até o século XVII acreditava-se, em alguns círculos diplomáticos europeus, que o Brasil era uma ilha. Nas nossas escolas, professores ensinam que Cabral descobriu o país mostrando o nosso mapa atual, com o Acre, Tocantins... As crianças já aprendem errado, o que é um grande anacronismo, um absurdo total. Isso criou uma polarização em torno do território.

Foi ignorado simplesmente que o Brasil, durante 300 anos, foi xifópago de Angola. Fomos povoados e colonizados por africanos – malgrados, eles também são colonizadores do Brasil. O país foi feito pelos europeus e pelos africanos. Seremos um país majoritariamente negro em, no máximo, 20 anos.

Toda a historiografia brasileira, tanto do ponto de vista político como econômico, foi fundada numa data canônica: 1808-1822, ou seja, a chegada da Corte, a Abertura dos portos e a Independência. É desprezado o fato de o Brasil ter continuado ligado à África portuguesa, pelo tráfico negreiro, até 1850. É aí que ocorre a verdadeira ruptura com o antigo sistema colonial. É aí que o Brasil começa a ser moderno, que passa a ter um perfil autônomo e novo.

JU – Seria exagero dizer que ele começa a ser forjado?
Alencastro –
Não, é isso mesmo. Até então o pulmão estava na África. Entraram no país, de 1831 a 1850, 710 mil africanos. No total, ingressaram 4 milhões. Não é pouca coisa. Tenho procurado no meu trabalho – tanto na livre-docência, que fiz aqui e resultou no livro “O Trato dos Viventes”, como nos artigos que tenho escrito –, mostrar que a Independência e a Abertura dos portos, embora extremamente importantes, estão longe de representar uma nova era. Esses fatos continuam trazendo do passado e do período colonial essa dependência e a pilhagem da África. Isso só vai mudar a partir de 1850.

JU – Seria exagero dizer que essa visão obscurece inclusive a história dos países africanos que se relacionavam com o Brasil?
Alencastro –
Houve um recalque. O que houve foi uma pirataria, mas o assunto é pouco tratado e estudado e nunca foi ensinado, embora não seja exatamente uma novidade – “Navio Negreiro”, de Castro Alves, mostra que havia, já no século XIX, uma consciência muito viva sobre o assunto.

A pilhagem da África nunca foi ensinada nas faculdades com a devida importância. Paradoxalmente, era ensinado no Itamaraty, em razão da implicação diplomática que os fatos tiveram na primeira metade do século XIX. O livro renovador sobre isso foi escrito por um inglês, que apareceu nos anos 70 e foi traduzido apenas dez anos depois. Havia uma bibliografia brasileira mas ela não entrava no circuito.

JU – Em que medida o Brasil poderia ter contribuído mais?
Alencastro –
Há uma dualidade na historiografia africana. Ou você faz a história da África do ponto de vista dos europeus, ou faz do ponto de vista dos africanos. Trata-se de um debate que já dura 50 anos. Mas acho que há hoje, no Brasil, material suficiente para fazer uma história da África portuguesa a partir de um ponto de vista brasileiro, e isso desde a Colônia. Há um ponto de vista do colonato brasileiro sobre a África que está aí no mínimo desde o século XVII. O pessoal do Nordeste e do Rio de Janeiro, por exemplo, estava mais atento sobre o que se passava em Angola do que o que ocorria no Amazonas, que estava fora do mapa. Um exemplo foi a invasão de Angola, em 1648, na primeira expedição militar que saiu do Brasil para atravessar o Atlântico Sul com o objetivo de expulsar os holandeses.

JU – E a contribuição dos países africanos para a cultura brasileira, o senhor acha que é devidamente estudada?
Alencastro –
Acho que isso também está mal equacionado. Há o Museu de Cultura Africana, em São Paulo, mas faltam especialistas em arte africana. Quando falo em especialista estou me referindo àqueles que acompanham o debate, que são formados nisso. Percebo que isso também não é ensinado de maneira estruturada nas universidades brasileiras. Fica parecendo sempre uma coisa meio amadora, de gente que tem experiência apenas sobre uma parte da África. Todos os bronzes do Benin, por exemplo, além de contribuições importantes de outras épocas, não são estudadas de maneira científica.

JU – O que precisa ser feito para mudar esse estado de coisas?
Alencastro –
Acho que já está mudando. Queria dar o outro lado da moeda, mesmo que haja um atraso de 40 anos, já que isso não poderia ter parado em 1960. Há um livro pioneiro, “Brasil e África”, de José Honório Rodrigues, no qual ele já contesta, em 1962, as teses de Gilberto Freyre. Este livro não fez filhotes ainda, o que é uma pena. Entretanto, agora há um interesse crescente neste e em outros resgates, inclusive porque houve uma decisão do governo, em 2003, de a História da África e a História Afro-Brasileira serem ensinadas no secundário. Isso certamente vai suscitar a produção de livros e de manuais.

JU – E no campo diplomático?
Alencastro –
Acho que, hoje, o Brasil está muito atento. De duas maneiras. A primeira com a abertura de embaixadas na África. Temos hoje cerca de 30, o que não é pouca coisa – antes tínhamos três ou quatro. E o Itamaraty tem um sistema de recrutamento de estudantes negros, que já vem desde os tempos do governo de Fernando Henrique Cardoso, de modo que se trata de uma coisa consensual.

 


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