O professor Geraldo Porto, do Instituto de Artes (IA), doou ao Centro de Memória da Unicamp (CMU) cerca de 300 fotografias feitas por Antonio Roseno de Lima, cujos quadros viraram notícia nos cadernos de cultura dos grandes jornais do país na década de 90. Documentos pessoais do artista também foram doados. Roseno foi levado ao circuito de galerias e salões pelas mãos do próprio Porto, que o descobriu numa exposição coletiva de arte naïf. A obra do fotógrafo e artista plástico ultrapassou fronteiras, foi objeto de reportagens na tevê estatal alemã, ilustrou a sofisticada agenda da grife Forum, chegou a ser cotada em dólar e inspirou, em 1993, a dissertação de mestrado de Porto. As telas marcadas pela originalidade, o reconhecimento tardio mas sempre ambicionado , a superexposição midiática e a tutela de Porto não foram suficientes. Roseno morreu em 1998 como nasceu e da maneira como passou boa parte de sua acidentada trajetória: na miséria. Calcula-se que obras do artista integrem hoje mais de cem coleções particulares.
Roseno vivia em um barraco de madeira na favela campineira Três Marias, onde estava radicado desde 1976. Analfabeto e vítima de toda a sorte de doenças diabetes, hipertensão e problemas psiquiátricos, entre elas , sobrevivia vendendo doces. Chegou a fazê-los, depois de aprender a mexer no tacho com a madrinha no sertão potiguar, onde nasceu em 1926. Nos últimos anos de vida comercializava confeitos industrializados. Nem sempre foi assim. Ao tentar a vida em São Paulo, no final da década de 1950, sobrevivia da cocada e dos quebra-queixos expostos no Viaduto do Chá, depois de abandonar mulher e cinco filhos por motivos não explicados. A receita dos doces era sua. Para engrossar a outra, a doméstica, ingressou num curso de fotografia. Começava aí a iniciação de Roseno no mundo das imagens e do qual ele nunca mais se desvencilhou. Primeiro, com os filmes; depois, com as tintas.
Parte de sua produção fotográfica foi preservada por Porto, que também é artista plástico. Estão ali retratos, álbuns de família, o time de futebol perfilado, imagens de casamento, cenas domésticas, registros pueris. Roseno chegou a ser dono de um estúdio na capital paulista. Não se sabe ao certo porque parou de viver do ofício. De concreto, como revelam as fotos doadas pelo professor, é que as imagens funcionaram como uma espécie de laboratório do que estava por vir. Roseno retocou à tinta boa parte delas.
“Ele usava guache, nanquim e esmalte para colori-las”, diagnostica Marli Marcondes, responsável pela conservação e preservação do acervo fotográfico do CMU. “Acredito que essas fotos sejam, por algum motivo, aquelas que ele não repassou aos clientes”, afirma Porto, lembrando que, a exemplo dos quadros, as fotos de Roseno ganharam as páginas de revistas especializadas, entre as quais a Paparazzi, uma das mais importantes do gênero no país. “Suas pinturas nasceram da fotografia”, revela o docente, que ao longo de dez anos cumpriu um périplo por galerias e redações para difundir a obra do amigo. Marli, com a experiência de quem lida com um acervo de mais de 30 mil imagens, acredita que “Roseno registrava o real e depois o reconstruía por meio da pintura” ao intervir nas fotos.
Ateliê Em 1962, o artista decide deixar São Paulo rumo a Indaiatuba, onde manteve um estúdio e permaneceu até 1976, quando se mudou para Campinas com Soledade, sua companheira por mais de 40 anos. Seu barraco era também ateliê e venda. As tralhas acumuladas, todas recolhidas no lixo, serviam de matéria-prima para a confecção das obras, que em sua maioria traziam animais estampados, além de nomes da história recente do país chamados por ele de “presidentes” e imagens de mulheres Nossa Senhora Aparecida e a sereia do mar eram personagens recorrentes. Outra marca registrada eram os escritos que aparecem no verso de todos os quadros. Roseno tinha fixação por datas sobretudo as relacionadas às fundações de cidades, a inventos e a criação de hospitais. Registrava também, em todas as obras, duas frases que virariam uma espécie de logomarca autoral: “sou um homem que nunca tive um amor na vida” e “queria ser um passarinho para conhecer o mundo inteiro”. Colocava um bilhete, colado com fita crepe, por meio do qual revelava o material usado para fazer a tela. Roseno era um homem singelo. “Ele acreditava nos seus sonhos”, diz Porto.
Sua arte já foi classificada de “bruta” termo derivado da expressão francesa art brut, cunhada pelo artista Jean Dubuffet nos anos 1940. Na opinião de Porto, a originalidade da obra do artista está na “atitude de grande liberdade criativa” do autor. “Ele captava a vida por meio de imagens retiradas do lixo urbano, conferindo um caráter pop ao conjunto de sua obra” avalia o docente, que também se define como um “catador de lixo desde criança”.
A outra parte da garimpagem feita pelo pesquisador no barraco do artista também já tem destino. Porto revela: vai doar também, ao Centro de Memória, a sua coleção de desenhos e pinturas do artista. Ao todo, o CMU vai abrigar cerca de 500 peças originais. Roseno não virou passarinho e tampouco conheceu o mundo inteiro, como desejava. Mas, na Unicamp, sua obra ganhará o mundo.