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Antropologia, ciência e tecnologia
A antropologia, nos últimos anos, tem sido convocada para
pensar uma diversidade enorme de temas para além daqueles
tópicos que lhe são mais tradicionais: sociedades não ocidentais,
povos isolados, ou grupos subordinados. Um desses temas, que
ultimamente tem gerado um grande interesse na disciplina,
é o estudo de temas relacionados à ciência e a tecnologia.
Poucos tópicos, no entanto, poderiam ser pensados como mais
distantes do foco tradicional da etnografia e da antropologia:
a ciência é tida como a forma mais ocidental de pensar o mundo,
sendo na nossa sociedade contemporânea a detentora do monopólio
da verdade sobre a natureza, em detrimento de conhecimentos
tidos como “tradicionais” ou “folclóricos”.
A tecnologia, por sua vez,
é percebida como a legitimadora desse monopólio: a inovação
constante, que gera formas de domar os processos naturais
em favor do homem, é pensada por muitos como a prova de que
a ciência é capaz de compreender e prever a realidade como
nenhuma outra forma de conhecimento. Além disso, a tecnologia
é pensada como a forma de resolução de grande parte dos problemas
humanos, desde a fome até a doença, chegando agora até na
possibilidade de reconstrução total do humano pela via da
genética e na superação da morte.
Na melhor tradição
antropológica, as mais recentes etnografias de
práticas científicas buscam repensar e tornar
mais complexa a nossa
compreensão acerca de como o conhecimento gerado em
laboratório
circula socialmente e ajuda a produzir a própria sociedade
Seriam então a ciência e
a tecnologia temas pouco passíveis de compreensão pela antropologia,
por meio do método etnográfico? Deveríamos então, enquanto
antropólogos, nos ater ao nosso campo já consagrado de estudos?
Gostaria aqui de argumentar que, pelo contrário, a antropologia
tem o potencial de enriquecer drasticamente as nossas compreensões
dos dilemas trazidos pelo desenvolvimento científico e tecnológico.
Com o aumento da relevância e alcance das novas tecnologias,
é cada vez mais necessário incorporar essa temática nas
análises realizadas pelas ciências sociais. Nesse contexto
a antropologia poderá, a partir de seus métodos, trazer
para a discussão uma perspectiva que contribui tanto para
enriquecer nosso conhecimento acadêmico, quanto para auxiliar
nas discussões em torno de políticas e regulação dessas
novas tecnologias.
A antropologia da ciência
e da tecnologia é bastante associada ainda aos chamados “estudos
de laboratório”. O nome de Bruno Latour, o mais conhecido
etnógrafo de laboratório, permanece uma referência obrigatória
para todos aqueles interessados em estudar ciência e tecnologia
nas ciências sociais, e geralmente é tido como a “porta
de entrada” para esse tipo de estudos. Polêmicos, apesar
de cada vez mais populares, os estudos etnográficos da “ciência
na prática” têm renovado o campo conhecido hoje como Estudos
Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT), trazendo cada
vez mais pesquisadores interessados nas complexas relações
entre ciência, tecnologia e sociedade.
Tais estudos geralmente focam
laboratórios de ciências básicas, aquelas conhecidas como
“ciências duras”, mostrando como o conhecimento científico
sobre a natureza, mais do que mera revelação de um real
passível de observação direta, é construído a partir
de um processo que envolve uma variedade de elementos “extra-científicos”,
ou geralmente tidos como relacionados à sociedade ou à cultura.
Desde as opções feitas pelos pesquisadores no decorrer de
suas práticas de laboratório, até os equipamentos que utilizam
e as formas pelas quais interpretam os resultados (números,
imagens) obtidos pelos experimentos, todo tipo de nuança
da prática laboratorial tem sido cada vez mais explorada
por estudiosos ligados aos ESCT. Tal conhecimento tem acrescentado
ao debate das ciências sociais uma gama de novas perspectivas
sobre a ciência, e seu impacto sobre nossa percepção dessas
práticas de conhecimento ainda está sendo digerido dentro
e fora do mundo acadêmico.
Mas o potencial do estudo
antropológico ou etnográfico sobre a ciência não se resume
à perspectiva dos estudos de laboratório, ou a uma “microssociologia”
da ciência, como a vêem alguns. Mais do que focar as micro-práticas
envolvidas na construção do conhecimento e na elaboração de
novas tecnologias, a antropologia traz para o debate o potencial
para compreender as complexas relações entre os laboratórios
e a cultura mais ampla na qual se inserem. c, além de perceber
como nossas concepções culturais interferem na forma pela
qual construímos experimentos e interpretamos seus resultados.
Essa ponte entre o macro e o micro é uma das principais fontes
de conhecimento inovador que a antropologia traz para o debate
público e acadêmico sobre a ciência e a tecnologia.
Dessa maneira, o conhecimento
etnográfico sobre a ciência e tecnologia tem muito a oferecer
para a elaboração de políticas públicas sobre inovação, por
exemplo. Alguns dos temas que podem ser explorados são as
atitudes e percepções de grupos sociais a respeito de novas
tecnologias. Ou mesmo como as atitudes e concepções dos cientistas
são indissociáveis das formas pelas quais analisam e formulam
problemas de interesse (em contraste com aqueles tidos como
pouco interessantes), e a partir das quais desenham e implementam
novas soluções tecnológicas. Dentro dessa perspectiva, a etnografia
da ciência e da tecnologia não busca dizer qual conhecimento
é correto ou incorreto, nem impor um relativismo vazio, do
tipo “nada existe, tudo é construído”. Pelo contrário, a boa
etnografia da ciência ajuda a perceber como determinados conhecimentos
adquirem uma significância particular, em detrimento de outros,
e por quê.
Associado a isso, a etnografia
pode também revelar muito sobre as atitudes de grupos afetados
por políticas públicas ligadas à ciência, tecnologia e inovação,
desde grupos excluídos, agricultores, catadores de lixo e
até empresários. Mais do que simplesmente efetuar um levantamento
de opiniões, a etnografia ajuda a esboçar as formas pelas
quais tais atitudes participam do processo de constituição
das tecnologias e dos saberes, e como elas estão implicadas
também nos efeitos materiais de tais práticas, definindo como
novas técnicas de fato funcionam na realidade.
No tocante a uma compreensão
etnográfica a respeito da construção do conhecimento científico,
tais pesquisas podem colaborar em muito também para um debate
informado sobre tecnologias emergentes, que desafiam nossas
atitudes e percepções a respeito do mundo. Um exemplo recente
são as pesquisas ligadas à biotecnologia, incluindo desde
alimentos transgênicos até o uso de células tronco embrionárias.
Além de desafiarem nossas compreensões a respeito da nossa
relação com o mundo natural, tais pesquisas prometem mudar
nossa relação com a natureza e com a nossa própria biologia.
A antropologia da ciência atual tem se debruçado sobre esses
temas, produzindo conhecimento que nos ajuda a compreender
como tais dilemas afetam a construção do conhecimento nessa
área, além de explorar como tais tecnologias estão reconfigurando
as relações sociais.
De forma mais geral, outra
contribuição da pesquisa antropológica é a de permitir o entendimento
da ciência e da tecnologia enquanto práticas sociais. Nesse
sentido, nem a produção de saberes científicos nem a aplicação
destes em tecnologias são externas às realidades sócio-culturais
nas quais se inserem. Por conta disso, a antropologia nos
auxilia a tomar partido no que diz respeito às direções que
queremos dar para o desenvolvimento científico e tecnológico.
Que tipo de tecnologia queremos?
Devemos buscar tecnologias que diminuam a destruição do planeta,
por exemplo, ou que reduzam as desigualdades sociais? De que
forma podemos alcançar tais objetivos, sem deixar de lado
a necessidade de produzir inovações que melhorem a vida das
pessoas e ajudem a tirar o Brasil de seu atraso relativo ao
resto do mundo industrializado? De que maneira os políticos
que formulam políticas podem ficar mais informados sobre como
pensam os cidadãos a respeito de novas tecnologias? Como são
de fato e na prática implementados os recursos e as políticas
voltadas à inovação? Por que determinadas políticas, apesar
de teoricamente contemplarem os objetivos desejados pela sociedade,
na prática não funcionam da maneira esperada? Enfim, esses
exemplos são alguns dentre a multiplicidade de questões para
as quais a antropologia pode auxiliar a buscar respostas.
Marko
Monteiro é professor do Departamento de Política Científica
e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG)
da Unicamp
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