Do rito cênico ao diálogo com o humano
MARIA
ALICE DA CRUZ
O
teatro negro introduziu elementos novos pouco utilizados
no gênero no Brasil, que até então bebia principalmente
de fontes europeias. Uma das contribuições foi a exploração
do corpo como um elemento vivo em cena, através da performance,
técnica que reúne teatro, dança e canto. Outro mérito importante
foi a aproximação entre atores e público, ao explorar elementos
das pessoas por meio de uma linguagem natural ao seu cotidiano,
segundo a atriz Evani Tavares Lima, autora da tese “Um olhar
sobre a prática teatral do Teatro Experimental do Negro
(TEN), no Rio de Janeiro, e o Bando de Teatro Olodum, em
Salvador”, orientada pela professora Inaicyra Falcão, do
Programa de Pós-Graduação em Artes da Unicamp. A pesquisadora
enriquece a literatura teatral com uma análise dos dois
grupos à luz das artes cênicas, já que há uma lacuna de
material sobre o assunto no campo teatral. “É comum encontrar
material dedicado ao aspecto político do movimento, mas
do ponto de vista artístico há pouca literatura”, afirma.
Evani enfatiza que enquanto
no TEN, primeiro grupo de teatro de fundo ideológico negro
no Brasil, idealizado e implantado por Abdias Nascimento,
em 1944, a conotação política sobrepõe a criação artística,
o Bando Olodum, criado em 1990 pela Banda Olodum, consegue
equalizar melhor sua proposta. Apesar da diferença temporal,
as duas iniciativas são marcadores do teatro negro no Brasil,
na opinião de Evani, a partir do momento que, no TEN, o
teatro aparece como uma das ferramentas da organização política
para atividades da militância e no Olodum, a ferramenta
teatral é utilizada como via de afirmação da identidade
negra, não só pela temática, mas também pela forma e outros
elementos próprios da cultura negra.
Evani trabalhou a partir
da perspectiva de que a cultura negra por si só é rica em
simbologias, ritmo, corpo. A partir desses elementos, ela
analisa até que ponto esse teatro costura um discurso próprio
ou se vale de referenciais já existentes, como a forma europeia
adotada pelo teatro brasileiro. “É um manancial cultural
muito grande, principalmente no que diz respeito ao uso
do corpo e da voz. Então tento identificar as particularidades
desse teatro em relação ao teatro convencional brasileiro”,
explica. Ela esclarece que no teatro mais convencionalmente
praticado, a prosódia é mais importante que a expressão.
Já no teatro negro verifica-se uma tendência mais próxima
da performance; sem uma linha divisória de gêneros – teatro,
dança, música – definida.
Para a pesquisadora, o principal
mérito do teatro negro é a maneira como ele ressignifica
a imagem negra que se apresenta no teatro, na dramaturgia
e na teledramaturgia. Algo importante trazido pelas artes
cênicas negras e perdido no teatro do século 20 é sua humanidade,
no sentido de se aproximar do que é humano ao promover o
diálogo com o espectador. Esse teatro sofre uma grande influência
do universo ritual porque a religiosidade – não enquanto
igreja, mas enquanto espiritualidade – é muito forte na
cultura negra africana. O batuque e todo um vocabulário
rítmico utilizado no terreiro, na religião dos orixás, são
aproveitados também em cena. A pessoa se vê presente naquilo
e isso permite a interação com a plateia. “No que diz respeito
aos personagens, as criaturas, as pessoas que aparecem nesse
teatro são muito próximas de uma realidade. Então existe
uma comunicação entre as duas partes”, acrescenta.
Evani explica que não só
a imagem, mas também os referenciais da cultura negra têm
historicamente sido vistos de maneira depreciativa no nosso
teatro. Com o teatro engajado negro, aparece outra visão;
pois o negro não é necessariamente um escravo, “não é aquele
ninguém, que não tem referencial. Não é uma coisa; é humano.
Uma pessoa que tem sentimento; uma mãe, um pai... Então,
isso, ressignifica. Dessa maneira, esse teatro acaba indo
além dos parâmetros do teatro convencional”, explica.
Um
exemplo citado por ela é o espetáculo “Ó Paí, Ó”, que se
tornou seriado em um canal aberto de TV. Apesar das adaptações
para a mídia, as pessoas conseguem vê-lo como uma expressão
negra, não só pela ambientação, mas também pelo cotidiano,
montado com elementos cunhados nesse universo negro, que
vai desde a prosódia - daquilo que fala, como se fala, à
intenção de falar sobre o tema, trazer as pessoas e retratá-las.
“É outra perspectiva, que não aquela do cartão postal”,
reflete.
A tese, na opinião da autora,
dá visibilidade aos aspectos artísticos do teatro negro
e da cultura negra brasileira. “Existe um teatro que se
realiza fora dessa visibilidade, mas sobre o qual poucos
ousaram escrever e, portanto, o público desconhece”, enfatiza.
Quando se procura saber algo sobre o TEN, por exemplo, é
muito comum encontrar muitas informações da perspectiva
das ciências sociais, mas nada sobre o aspecto do teatro,
segundo a atriz. O TEN, de acordo com a pesquisadora, foi
o primeiro no Brasil a assumir uma perspectiva político-racial
em seu discurso. “Seu mentor, Abdias do Nascimento, além
de estar à frente desse projeto teatral, era um político
efetivo. Inclusive, é preciso salientar que o TEN era apenas
uma ação dentro de um projeto político que também utilizava
outros meios de veicular seu discurso. Na tese, sublinho
esse risco – a articulação teatro e política. Você assume
um discurso político, mas ao mesmo tempo está fazendo arte.
Como lidar com isso?”, acrescenta.
Realidade proibida
“O TEN foi uma ousadia. Só um cara destemido como o professor
Abdias poderia ter encarado uma ‘estória’ dessa. Ele e seus
colaboradores”, enfatiza Evani. A autora lembra que, enquanto
o Olodum se origina de um grupo musical na época já consagrado
no Brasil e no mundo, e com aparato cultural, mercadológico
e midiático, num momento em que já há maior abertura para
discussões como diferença social e raça, o TEN nasce em
um período político delicado; em que não se falava em preconceito
racial no Brasil. Na época, o Estado brasileiro concebia
o Brasil como uma democracia racial. “Era um momento próximo
do Estado Novo, também, e falar sobre isso era tido como
de ordem separatista. Era o contexto político-social da
época”, explica. Por conta de toda essa problemática, eram
poucos os negros que conseguiam de alguma forma um nível
de educação, segundo a atriz. “Estávamos na base da pirâmide.
E ainda estamos, apesar de ter-se começado a discutir, mais
efetiva e continuamente, o problema da desigualdade racial
no Brasil, e em termos mundiais, desde o início do século
20”, reflete.
De acordo com Evani, o TEN
foi o responsável por inserir no mundo das artes atores
recrutados do proletariado brasileiro – domésticas, contínuos,
pedreiros, entre outros –, todos vindos do curso de alfabetização
para negros e outras atividades promovidas pelo TEN.
A
proposta de criação de teatro negro, segundo Evani, causou
estranheza e resistência a críticos, artistas e intelectuais,
como no caso de Paschoal Carlos Magno e mesmo do modernista
Mário de Andrade, como também à sociedade e ao próprio governo.
Na opinião deles, criar um teatro voltado para a cultura
negra era instigar uma situação de separatismo, dissociada
da realidade brasileira. E mesmo o governo do então presidente
Getúlio Vargas – que apadrinhou a estréia do TEN no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro – não abarcava a questão racial
como pauta a ser discutida. Na concepção do governo, pontua
a autora, falar de discriminação racial era algo que não
se compatibilizava com a idéia de união. “Ainda que os indicadores
apontassem as diferenças, eles achavam a discussão desnecessária”,
acrescenta Evani.
De acordo com Evani, o TEN
conseguiu resistir, mas encontrou dificuldades em termos
de sustentabilidade, projeção e até mesmo de espaço para
se apresentar. Os ensaios, inicialmente realizados na sede
da União dos Estudantes, tornaram-se incompatíveis com a
política da instituição, pois falar sobre questão racial,
para entidades de esquerda, significava dividir o povo.
“Isso foi bastante difícil”, reflete.
FICHA
TÉCNICA
Pesquisa:“Um olhar sobre a prática
teatral do Teatro Experimental do Negro (TEN), no
Rio de Janeiro, e o Bando de Teatro Olodum, em Salvador”
Autora: Evani Tavares Lima,
Orientadora: Inaicyra Falcão
Modalidade: Tese de doutorado
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Financiamento: IFP (Programa Internacional
de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford) e Fulbright
(Universidade de Michigan)
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