Untitled Document
PORTAL UNICAMP
4
AGENDA UNICAMP
3
VERSÃO PDF
2
EDIÇÕES ANTERIORES
1
 
Untitled Document
 


Do rito cênico ao diálogo com o humano

MARIA ALICE DA CRUZ

A atriz Evani Tavares Lima, autora da tese: longe do cartão postal (Foto: Antoninho Perri)O teatro negro introduziu elementos novos pouco utilizados no gênero no Brasil, que até então bebia principalmente de fontes europeias. Uma das contribuições foi a exploração do corpo como um elemento vivo em cena, através da performance, técnica que reúne teatro, dança e canto. Outro mérito importante foi a aproximação entre atores e público, ao explorar elementos das pessoas por meio de uma linguagem natural ao seu cotidiano, segundo a atriz Evani Tavares Lima, autora da tese “Um olhar sobre a prática teatral do Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro, e o Bando de Teatro Olodum, em Salvador”, orientada pela professora Inaicyra Falcão, do Programa de Pós-Graduação em Artes da Unicamp. A pesquisadora enriquece a literatura teatral com uma análise dos dois grupos à luz das artes cênicas, já que há uma lacuna de material sobre o assunto no campo teatral. “É comum encontrar material dedicado ao aspecto político do movimento, mas do ponto de vista artístico há pouca literatura”, afirma.

Evani enfatiza que enquanto no TEN, primeiro grupo de teatro de fundo ideológico negro no Brasil, idealizado e implantado por Abdias Nascimento, em 1944, a conotação política sobrepõe a criação artística, o Bando Olodum, criado em 1990 pela Banda Olodum, consegue equalizar melhor sua proposta. Apesar da diferença temporal, as duas iniciativas são marcadores do teatro negro no Brasil, na opinião de Evani, a partir do momento que, no TEN, o teatro aparece como uma das ferramentas da organização política para atividades da militância e no Olodum, a ferramenta teatral é utilizada como via de afirmação da identidade negra, não só pela temática, mas também pela forma e outros elementos próprios da cultura negra.

Evani trabalhou a partir da perspectiva de que a cultura negra por si só é rica em simbologias, ritmo, corpo. A partir desses elementos, ela analisa até que ponto esse teatro costura um discurso próprio ou se vale de referenciais já existentes, como a forma europeia adotada pelo teatro brasileiro. “É um manancial cultural muito grande, principalmente no que diz respeito ao uso do corpo e da voz. Então tento identificar as particularidades desse teatro em relação ao teatro convencional brasileiro”, explica. Ela esclarece que no teatro mais convencionalmente praticado, a prosódia é mais importante que a expressão. Já no teatro negro verifica-se uma tendência mais próxima da performance; sem uma linha divisória de gêneros – teatro, dança, música – definida.

Para a pesquisadora, o principal mérito do teatro negro é a maneira como ele ressignifica a imagem negra que se apresenta no teatro, na dramaturgia e na teledramaturgia. Algo importante trazido pelas artes cênicas negras e perdido no teatro do século 20 é sua humanidade, no sentido de se aproximar do que é humano ao promover o diálogo com o espectador. Esse teatro sofre uma grande influência do universo ritual porque a religiosidade – não enquanto igreja, mas enquanto espiritualidade – é muito forte na cultura negra africana. O batuque e todo um vocabulário rítmico utilizado no terreiro, na religião dos orixás, são aproveitados também em cena. A pessoa se vê presente naquilo e isso permite a interação com a plateia. “No que diz respeito aos personagens, as criaturas, as pessoas que aparecem nesse teatro são muito próximas de uma realidade. Então existe uma comunicação entre as duas partes”, acrescenta.

Evani explica que não só a imagem, mas também os referenciais da cultura negra têm historicamente sido vistos de maneira depreciativa no nosso teatro. Com o teatro engajado negro, aparece outra visão; pois o negro não é necessariamente um escravo, “não é aquele ninguém, que não tem referencial. Não é uma coisa; é humano. Uma pessoa que tem sentimento; uma mãe, um pai... Então, isso, ressignifica. Dessa maneira, esse teatro acaba indo além dos parâmetros do teatro convencional”, explica.

Cena de espetáculo do Bando de Teatro Olodum, grupo nascido em Salvador: via de afirmação da identidade negra (Foto: Marcio Lima)Um exemplo citado por ela é o espetáculo “Ó Paí, Ó”, que se tornou seriado em um canal aberto de TV. Apesar das adaptações para a mídia, as pessoas conseguem vê-lo como uma expressão negra, não só pela ambientação, mas também pelo cotidiano, montado com elementos cunhados nesse universo negro, que vai desde a prosódia - daquilo que fala, como se fala, à intenção de falar sobre o tema, trazer as pessoas e retratá-las. “É outra perspectiva, que não aquela do cartão postal”, reflete.

A tese, na opinião da autora, dá visibilidade aos aspectos artísticos do teatro negro e da cultura negra brasileira. “Existe um teatro que se realiza fora dessa visibilidade, mas sobre o qual poucos ousaram escrever e, portanto, o público desconhece”, enfatiza. Quando se procura saber algo sobre o TEN, por exemplo, é muito comum encontrar muitas informações da perspectiva das ciências sociais, mas nada sobre o aspecto do teatro, segundo a atriz. O TEN, de acordo com a pesquisadora, foi o primeiro no Brasil a assumir uma perspectiva político-racial em seu discurso. “Seu mentor, Abdias do Nascimento, além de estar à frente desse projeto teatral, era um político efetivo. Inclusive, é preciso salientar que o TEN era apenas uma ação dentro de um projeto político que também utilizava outros meios de veicular seu discurso. Na tese, sublinho esse risco – a articulação teatro e política. Você assume um discurso político, mas ao mesmo tempo está fazendo arte. Como lidar com isso?”, acrescenta.

Realidade proibida
“O TEN foi uma ousadia. Só um cara destemido como o professor Abdias poderia ter encarado uma ‘estória’ dessa. Ele e seus colaboradores”, enfatiza Evani. A autora lembra que, enquanto o Olodum se origina de um grupo musical na época já consagrado no Brasil e no mundo, e com aparato cultural, mercadológico e midiático, num momento em que já há maior abertura para discussões como diferença social e raça, o TEN nasce em um período político delicado; em que não se falava em preconceito racial no Brasil. Na época, o Estado brasileiro concebia o Brasil como uma democracia racial. “Era um momento próximo do Estado Novo, também, e falar sobre isso era tido como de ordem separatista. Era o contexto político-social da época”, explica. Por conta de toda essa problemática, eram poucos os negros que conseguiam de alguma forma um nível de educação, segundo a atriz. “Estávamos na base da pirâmide. E ainda estamos, apesar de ter-se começado a discutir, mais efetiva e continuamente, o problema da desigualdade racial no Brasil, e em termos mundiais, desde o início do século 20”, reflete.

De acordo com Evani, o TEN foi o responsável por inserir no mundo das artes atores recrutados do proletariado brasileiro – domésticas, contínuos, pedreiros, entre outros –, todos vindos do curso de alfabetização para negros e outras atividades promovidas pelo TEN.

Encenação do TEN, grupo criado em 1944 por Abdias Nascimento: teatro como ferramenta de organização política (Foto: Divulgação)A proposta de criação de teatro negro, segundo Evani, causou estranheza e resistência a críticos, artistas e intelectuais, como no caso de Paschoal Carlos Magno e mesmo do modernista Mário de Andrade, como também à sociedade e ao próprio governo. Na opinião deles, criar um teatro voltado para a cultura negra era instigar uma situação de separatismo, dissociada da realidade brasileira. E mesmo o governo do então presidente Getúlio Vargas – que apadrinhou a estréia do TEN no Teatro Municipal do Rio de Janeiro – não abarcava a questão racial como pauta a ser discutida. Na concepção do governo, pontua a autora, falar de discriminação racial era algo que não se compatibilizava com a idéia de união. “Ainda que os indicadores apontassem as diferenças, eles achavam a discussão desnecessária”, acrescenta Evani.

De acordo com Evani, o TEN conseguiu resistir, mas encontrou dificuldades em termos de sustentabilidade, projeção e até mesmo de espaço para se apresentar. Os ensaios, inicialmente realizados na sede da União dos Estudantes, tornaram-se incompatíveis com a política da instituição, pois falar sobre questão racial, para entidades de esquerda, significava dividir o povo. “Isso foi bastante difícil”, reflete.

 

FICHA TÉCNICA

Pesquisa:“Um olhar sobre a prática teatral do Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro, e o Bando de Teatro Olodum, em Salvador”

Autora: Evani Tavares Lima,

Orientadora: Inaicyra Falcão

Modalidade: Tese de doutorado

Unidade: Instituto de Artes (IA)

Financiamento: IFP (Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford) e Fulbright (Universidade de Michigan)

 


 
Untitled Document
 
Untitled Document
Jornal da Unicamp - Universidade Estadual de Campinas / ASCOM - Assessoria de Comunicação e Imprensa
e-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP