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Receita de armistício para a guerra fiscal
Tese mostra que falta de políticas
nacionais
de desenvolvimento regional acirram embates
Análise feita sobre a guerra fiscal, definida como um fenômeno
que ocorre em países federativos à medida que os Estados intensificam
suas posturas competitivas para a atração de inversões produtivas
por meio da utilização de instrumentos fiscais e orçamentários,
revelou a necessidade de recuperação de uma política nacional
de desenvolvimento regional capaz de articular as diferentes
esferas de poder. De acordo com a economista Soraia Cardozo,
responsável pela pesquisa, a guerra fiscal está intimamente
relacionada às regras do sistema tributário (embora este não
seja o único fator explicativo) e, portanto, a reforma tributária
seria muito importante, principalmente se tivesse a cobrança
do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)
no destino e não na origem. No entanto, observa Cardozo, quando
se fala em alterar a lógica de tributação é preciso lembrar
que muitos Estados não possuem outras ferramentas para atrair
investimentos, além dos incentivos fiscais. “É perceptível
que apenas a reforma tributária não adiantaria nesse caso”,
afirmou a economista. Para ela, em conjunto é preciso investir
na adoção de uma política de desenvolvimento que atenda às
demandas regionais e que seja uma política pública de fato,
capaz de pensar o dinamismo econômico do ponto de vista espacial.
Cardozo, que também é docente
do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), realizou uma abordagem sobre a guerra fiscal dentro
de uma dimensão analítica específica que é examiná-la enquanto
uma possível política de desenvolvimento regional. Toda a
discussão de sua tese de doutorado, orientada pelo professor
Wilson Cano, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, concentrou-se
nas discussões sobre a dinâmica regional da economia brasileira.
A partir dos anos 1990, uma série de importantes processos
são desencadeados na economia brasileira e influenciam no
processo de desconcentração industrial, com novos elementos
surgindo tanto do ponto de vista macroeconômico quanto do
ponto de vista das políticas públicas voltadas para a questão
regional.
A guerra fiscal guarda relação
direta com o sistema tributário brasileiro, no qual o imposto
sobre o valor agregado mais importante, o ICMS, possui características
que possibilitam o acirramento dos conflitos federativos:
além de ser cobrado na origem, o referido imposto pertence
aos governos estaduais, ao contrário da tendência mundial
em que, em sistemas federativos, o Imposto sobre Valor Agregado
(IVA) é de competência do poder central ou está inserido em
um sistema em que tanto o poder central quanto o poder subnacional
possuem competência sobre o imposto, simultaneamente.
Para o entendimento da guerra
fiscal, há a necessidade de agregar outros elementos explicativos
às características do sistema tributário. Nesse sentido, segundo
Cardozo, o acirramento das disputas entre as unidades da federação
(UFs), dentro de um sistema federativo com as características
apresentadas no Brasil, pode ser entendido, em grande medida,
como decorrência da supremacia das forças de mercado, que
negam políticas públicas que coordenem o investimento privado.
Isso leva a uma situação em que as esferas públicas subnacionais
se subordinam às forças do mercado e às exigências do capital
privado. Se um dos elementos essenciais para a ocorrência
da guerra fiscal consiste na falta de regulação das ações
subnacionais por parte da esfera federal de governo, essa
falta de coordenação é interpretada pela economista como conseqüência
de um modelo econômico pautado em uma reduzida intervenção
estatal na promoção do desenvolvimento.
Cardozo mostra em seu trabalho
que a guerra fiscal é fruto de um processo de falta de regulação
das ações subnacionais, consequência da ausência de políticas
nacionais de desenvolvimento regional. Esse processo é também
resultado de um determinado modelo econômico que é pautado
em uma reduzida intervenção estatal na promoção do desenvolvimento
econômico, inclusive no desenvolvimento regional. “As ações
existentes são muito tímidas e os Estados ficam na situação
do salve-se quem puder”, ponderou a pesquisadora. Nesse sentido,
a guerra fiscal é uma das manifestações da guerra dos lugares
que é desencadeada, nos anos 1990, em razão do ideal de que
o poder local é a escala responsável pela promoção do desenvolvimento
econômico.
Metodologia
Recursos provenientes da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp) possibilitaram que Cardozo visitasse
dez Estados pré-selecionados (Amazonas, Ceará, Bahia, Goiás,
Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Paraná
e Rio Grande do Sul). Nesses locais ela manteve contato com
membros das Secretarias da Fazenda, do Planejamento, do Desenvolvimento
Econômico, que atuam diretamente na área de atração de investimentos.
“Fiz entrevistas e coletei dados para minha análise que possibilitaram
verificar a magnitude dos incentivos e as atividades industriais
mais incentivadas em cada Estado”, revelou.
Nos Estados mais periféricos,
no sentido de estarem mais distantes do núcleo da indústria
brasileira, principalmente os estados nordestinos e o do Amazonas,
o peso dos incentivos fiscais sobre a arrecadação do ICMS
é muito maior que o peso dos incentivos fiscais dos Estados
mais ricos e mais próximos ao núcleo da indústria. Além disso,
prossegue Cardozo, é possível perceber dentro da questão da
desconcentração industrial que os Estados, por mais que entrem
na guerra fiscal, não têm a capacidade de atrair os mesmos
tipos de empresas. Isso porque cada grupo de empresas acaba
tendo uma lógica específica de localização. Nesse sentido,
o Estado de São Paulo apresenta perdas de participação nacional
na produção de bens mais complexos que estão dentro de um
grupo de indústrias produtoras de bens de capital e de bens
de consumo durável.
Entretanto, podem se destacar
dois elementos: esse Estado continua concentrando mais de
50% da indústria produtora de bens de consumo duráveis e bens
de capital; as principais perdas de SP nesses segmentos são,
majoritariamente, para outros Estados da região Sul e Sudeste
do Brasil. Os Estados que estão fora do eixo Sul-Sudeste que
apresentaram ganhos nesses segmentos foram Bahia e Amazonas.
Bahia, em razão da atração da Ford e de empresas de informática,
com base em incentivos fiscais; Amazonas em virtude dos incentivos
federais no Pólo Industrial de Manaus aliados a uma série
de benefícios do governo estadual. A continuidade da concentração
dessas atividades mais complexas nas regiões Sul e Sudeste
mostra que a guerra fiscal apresenta-se como um instrumento
limitado para romper com a lógica concentradora de alguns
segmentos industriais. “Há um limite importante, próprio do
sistema capitalista, de concentração de determinados tipos
de atividades industriais e, no caso brasileiro, a guerra
fiscal não tem capacidade de alterar significativamente essa
dinâmica”, disse a economista.
Em outros casos, apresentam-se
evidências de redundância do incentivo fiscal: em alguns,
já havia certa tendência de relocalização dos investimentos
de determinados segmentos, e mesmo assim tais investimentos
foram incentivados; em outros casos, os incentivos consistem
em um fator importante em conjunto com os demais elementos,
mas o elevado grau de competição entre as UFs leva à elevação
das ofertas estaduais. Segundo Cardozo, o incentivo às empresas
do setor calçadista no Nordeste, da agroindústria em Goiás
e de fumo no Rio Grande do Sul são alguns bons exemplos de
redundância do incentivo estadual.
A economista ressaltou que
as empresas deixam de recolher uma parte do ICMS devido, no
entanto, essa parte não volta para os cofres públicos e tampouco
é repassada para os preços cobrados ao consumidor. Dado que
desde a década de 1990 a economia brasileira apresenta um
contexto em que existem baixas taxas de crescimento econômico
e que as taxas de desemprego crescem bastante, a grande argumentação
dos governos estaduais para esses incentivos fiscais sempre
esteve focada na necessidade de geração de empregos. Utilizando
dados oficiais da Pesquisa Industrial Nacional (PIA), do IBGE,
e também da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do
Ministério do Trabalho, Cardozo comparou as projeções de geração
de empregos feitas pelas empresas incentivadas com o total
de empregos gerados em cada segmento industrial. Ela constatou
que a quantidade efetiva de empregos gerados é muito menor
que o número projetado pelas empresas.
Um dos elementos de tentativa
de legitimar essa prática no Brasil foi a bandeira do emprego,
declarou a pesquisadora, mas a geração de empregos está aquém
do esperado, à exceção da atividade calçadista no Ceará e
na Bahia. “Na prática essa argumentação não foi válida porque
essas promessas não necessariamente se concretizaram, pois
a capacidade de geração de empregos não depende apenas dos
incentivos estaduais, mas sim da capacidade de crescimento
da economia”, concluiu Cardozo.
‘FICHA
TÉCNICA
Pesquisa:
Guerra Fiscal no Brasil e alterações
das estruturas produtivas estaduais desde os anos 1990
Autora: Soraia
Aparecida Cardozo
Orientador:
Wilson Cano
Unidade: Instituto
de Economia (IE)
Modalidade: Tese de
doutorado
Financiamento:
Fapesp
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