Na vanguarda das pesquisas em biocatálise
Projeto temático rende descobertas e
artigos em revistas internacionais
ISABEL
GARDENAL
Desde
a década de 80, os químicos da Unicamp José Augusto Rosário
Rodrigues e Paulo José Samenho Moran atuam no front das
pesquisas em biocatálise no Brasil. Esta área se dedica
ao emprego de micro-organismos para promover transformações
químicas de produtos. Com esta tarefa, eles trabalham especialmente
no desenvolvimento de novas metodologias relacionadas aos
fármacos. Em dezembro último, por exemplo, os pesquisadores
concluíram o projeto temático da Fapesp (Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo) denominado “Biocatálise
em síntese orgânica”, que teve duração de cinco anos e foi
coordenado por Rodrigues. O saldo foi altamente positivo,
segundo os pesquisadores, não somente por servir aos propósitos
de fazer avançar a pesquisa, mas pela finalidade social
de capacitar alunos e beneficiar a indústria com novas descobertas.
Em cinco anos do projeto, houve uma média de 15 publicações
em revistas internacionais e, recorrendo às publicações
sobre o tema desde a década de 80 então, foram mais de 50.
Quando iniciou, o projeto
temático teve financiamento da Fundação no valor de R$
500 mil, verba que permitiu comprar reatores e equipamentos
para análise dos produtos gerados. “Ganhamos ainda um
equipamento de infravermelho e um cromatógrafo gasoso,
que vêm sendo utilizados por outros colegas do IQ e de
outros institutos”, conta Moran.
O objetivo, conforme Rodrigues,
vinha sendo produzir intermediários para realizar a síntese
de fármacos. Esses intermediários trazem como característica
a quiralidade. O fato de serem quirais, explica Moran, já
os torna interessantes. “Isso porque o organismo somente
aceita intermediários que sejam reconhecidos pelos nossos
centros receptores. No caso de um racêmico, você praticamente
terá duas substâncias de imagem especular e somente uma
vai interagir com o seu organismo para promover o benefício”,
afirma. A outra, prossegue ele, pode causar até efeitos
tóxicos. Assim sendo, esses intermediários têm sempre
centros quirais com a possibilidade de fazer “enantiômeros”,
que são produtos que possuem imagem especular não-superponíveis.
Moran ensina que essas duas
moléculas têm as propriedades das mãos que, apesar de aparentemente
iguais, são diferentes, pois apresentam a relação de imagem
especular não-superponível. “Se pegarmos uma luva da mão
esquerda e colocarmos na mão direita, o que vai acontecer?
Não vai servir. As luvas parecem iguais, mas não são. A
ideia é que essas biotransformações produzam somente uma
possibilidade. Nesse caso específico, ela somente produziria
a mão direita, não a esquerda – apenas um enantiômero.”
A finalidade seria produzir moléculas oticamente ativas.
“Cada tipo de produto farmacológico precisa de um catalisador
específico para realizar uma determinada reação. Por isso,
temos tentado descobrir novas metodologias cada vez mais
sofisticadas para a triagem de enzimas de interesse”, comenta
Rodrigues. As metodologias desenvolvidas em geral buscam
unir dois aspectos: alto rendimento e pureza óptica elevada.
De acordo com ele, trabalhar
com novas metodologias implica executar reações não apenas
em meio aquoso, mas também em meio onde o micro-organismo
esteja imobilizado em um suporte. Isso é fundamental para
estimular as reações de maneira contínua. E é o que a indústria
deseja, diz. “Na reação em meio aquoso, o processo tem que
ser feito sempre em ‘batelada’: faço uma reação agora, isolo
o produto e o micro-organismo, o qual provavelmente não
conseguirei utilizar novamente”. Quando em processo suportado,
diferencia, “posso reutilizar o micro-organismo em reações
sucessivas e sequenciais. Faço uma reação agora, retiro
aquele micro-organismo que eu utilizei e coloco-o novamente
para fazer uma outra reação, num novo ciclo de processo”.
Fármacos
Muitas das metodologias desenvolvidas pelos dois pesquisadores
do Departamento de Química Orgânica do IQ podem ser utilizadas
na síntese para produção de fármacos. Um exemplo disso foi
que o grupo realizou a síntese de um intermediário na preparação
do indinavir, droga empregada na terapêutica da Síndrome
da Imunodeficiência Adquirida (Aids), um inibidor de protease
que teve a sua liberação para uso em 1996. O grupo teve
ainda participação ativa na parte final da síntese do taxol,
hoje o medicamento mais indicado no tratamento do câncer
de próstata e de mama.
Rodrigues relata que essas
metodologias já davam alguns indícios de que rumo seguir,
pois a indústria já fazia algumas dessas transformações.
No entanto, o grupo do IQ buscou criar metodologias servindo-se
de outras rotas alternativas, abrindo mão dos reagentes
químicos em prol dos reagentes naturais. As reações que
normalmente são efetuadas através de reagentes químicos
são substituídas pelas enzimas, que então fazem as biotransformações.
Como desdobramento do projeto
temático da Fapesp, o professor Sérgio Marangoni, do Departamento
de Bioquímica do Instituto de Biologia (IB), forneceu aos
pesquisadores do IQ o veneno de serpente purificado. O material
foi utilizado como um biocatalizador para efetuar transformações
químicas. O aluno de mestrado do IQ Renan Augusto Siqueira
Pirolla, inclusive, defendeu tese sobre a aplicação de fosfolipase
A2 de veneno de serpentes em biocatálise, orientado por
Rodrigues, e o conteúdo estará sendo publicado em breve.
A expectativa dos autores é que a metodologia desenvolvida
aqui possa ser utilizada não apenas como micro-organismo
mas como enzimas contidas dentro do veneno da serpente.
Função social
Outra metodologia criada no Laboratório de Biocatálise
e Síntese Orgânica foi publicada há pouco no livro Practical
Methods for Biocatalysis and Biotransformations, recém-lançado
e organizado pelos estudiosos John Whittall e Peter W. Sutton.
Tanto Rodrigues como Moran assinam artigo que aborda a hidroxilação
de dois compostos orgânicos – indano e tetralina, empregados
na síntese de produtos farmacêuticos. Para ambos, a interação
com vários especialistas somente tem a contribuir para
a ampliação do tema. Também sempre que podem, eles acompanham
eventos da área como o de Biocatálise e Biotransformação,
além do Biotrans, que acontece na Europa a cada dois anos.
“Esta é a oportunidade de apresentarmos os nossos resultados
e conhecer outros”, destaca Moran.
Ele esclarece que a função social da pesquisa conduzida
no IQ está na formação dos alunos e aplicação no setor
produtivo. “Pretendemos realizar investigações com possível
uso pela indústria, principalmente pelo setor farmacêutico”,
diz. “Ao longo desses anos, tivemos a participação de
alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado e
de pós-doutorado. Esses alunos hoje estão atuando como
docentes em universidades que abriram recentemente concurso
e muitos deles estão adentrando as portas das indústrias,
todos praticamente trabalhando neste campo de biotransformação.
Desenvolvemos aqui pessoas com treinamento para executar
biotransformações e fermentações.”
O próximo passo estudado
por Rodrigues e Moran é dar continuidade a esta linha de
pesquisa, mas agora atuando com biocombustíveis. Dentro
dessa área, deverão ser visibilizadas novas metodologias,
tanto para produzir etanol como outros compostos de amplo
uso pela indústria petroquímica, substituindo esses produtos
por outros não-fósseis, ou seja, renováveis. “Os compostos
preparados, biotransformados, são hoje considerados ‘química
verde’. Todos esses produtos gerados não são derivados da
indústria petroquímica. Trata-se de produtos politicamente
corretos e cujo conjunto de diretrizes é voltado à redução
do impacto ambiental dos processos químicos”, destaca Rodrigues.
Ao falarem de interdisciplinaridade,
os pesquisadores do IQ acreditam que esta será a evolução
natural e que a inter-relação com outros grupos de pesquisa
da Unicamp, como o Departamento de Genética do IB e com
a Faculdade de Engenharia Química (FEQ), poderão ampliar
a discussão de temas como os biocombustíveis e as matérias-primas
para substituir os produtos da indústria petroquímica.
FICHA
TÉCNICA
Pesquisa: “Biocatálise em síntese
orgânica”
Coordenador: José Augusto Rosário
Rodrigues
Modalidade: Projeto temático
Unidade: Instituto de Química (IQ)
Financiamento: Fapesp
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